A primeira Guerra Mundial, chamada a Guerra para acabar com todas as guerras, espalhou um rasto de destruição avassalador, sobretudo pelos países europeus, engalanados até poucos anos antes numa aparentemente imparável via de desenvolvimento científico.


Em agosto de 1914, os exércitos da Europa mobilizaram cerca de seis milhões de homens e lançaram-nos contra seus vizinhos. Os exércitos alemães invadiram a França e a Bélgica. Os exércitos russos invadiram a Alemanha. Os exércitos austríacos invadiram a Sérvia e a Rússia. Os exércitos franceses atacaram pela fronteira da Alsácia-Lorena alemã. 
Os britânicos enviaram uma força expedicionária para ajudar os franceses, esperando confiantemente chegar a Berlim pelo Natal".
(HOWARD, 2010, p. 49)

Os Impérios envolvidos no início da guerra – o britânico, o russo, o alemão e o austro-húngaro - eram oficialmente cristãos. E o cristianismo era a religião seguida pela maioria da população europeia, vivesse ela em França, na Alemanha, nos territórios do Império austro-húngaro, em Itália, ou na Rússia.

Antes de partir para qualquer batalha eram comuns as Missas, de ambos os lados, pedindo a bênção de Deus para os soldados e perdão pelos atos que iam tirar vidas e encher de cruzes os campos. Que destruíam capelas, igrejas, catedrais.






Apesar da violência e da destruição, a religiosidade mantinha-se a argamassa que unia os inimigos europeus. Ao longo dos anos da guerra, no meio dos caminhos enlameados e esburacados, cada cruzeiro sobrevivente aos combates servia de pretexto para o recolhimento e para a oração.






Ficou célebre o episódio – que muitos acreditam nunca se ter passado – em que inimigos saíram das respetivas trincheiras num dia de Natal e confraternizaram, voltando por algumas horas a ser homens e não máquinas de matar.

Todos os regimentos eram acompanhados de capelães que providenciavam acompanhamento espiritual, partilhando todas as agruras da frente de combate. França, por exemplo, tinha nas suas fileiras 25.000 sacerdotes. A Inglaterra providenciava ministros de três denominações religiosas.



Em Portugal, a questão era outra: o Governo de Afonso Costa, ferozmente republicano e anticlerical, opunha-se à participação de sacerdotes nas fileiras do Corpo Expedicionário Português. A questão era discutida publicamente.

O jornal “A Capital” refere em maio o exemplo francês, para defender a necessidade dos soldados portugueses terem acompanhamento espiritual.
Organizavam-se iniciativas pró e contra a participação dos sacerdotes.

Acabou por ser a Inglaterra a forçar a mão do Governo e do próprio episcopado que, de forma algo inesperada, fazia eco da decisão republicana – exceção feita ao Cardeal Patriarca e ao Bispo de Beja - mas que acabou por ter de autorizar os sacerdotes que se ofereciam como capelães militares.

O Governo capitulou perante a pressão social e internacional. Mas de má vontade. Só a 30 de Novembro de 1916, quando estava concluída a instrução do CEP, foi finalmente assinado, por Bernandino Machado e Norton de Matos, o Decreto 2869 que deu permissão aos comandantes das forças militares em operações de guerra para incorporarem ministros portugueses das diversas religiões. 


Apenas a 18 de Janeiro de 1917, poucos dias antes de se iniciar o grosso do transporte do contingente para França, foi concretizada a regulamentação de assistência religiosa em operações de guerra com a publicação do Decreto 2942, pelos mesmos signatários.

Esta impunha condições terríveis: por exemplo, os sacerdotes que se voluntariassem para acompanhar os regimentos eram equiparados ao posto de alferes mas não tinham direito a pré. 

Foi necessário criar uma Comissão Central de Assistência Religiosa, presidida pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, que angariava fundos para subsidiar os capelães e custear as despesas do culto e de assistência religiosa.


Acabou por se formar um pequeno corpo de capelães. “Para a Igreja, através da Comissão Central de Assistência Religiosa em Campanha (CCARC), era evidente que deveria existir um capelão que superintendesse a missão espiritual em França, tendo sido escolhido entre os voluntários o Cónego da Sé da Guarda, José do Patrocínio Dias, para chefiar a missão”, lembra o historiador Carlos Alves Lopes.  

E acrescenta logo as dificuldades criadas a cada passo aos capelães. Que, nalguns casos, duraram anos a resolver.

“O número de capelães no teatro de guerra demonstrou ser proporcionalmente diminuto, comparando com os efectivos de assistência religiosa no exército britânico, ideia também partilhada pela CCARC. A contenção de efectivos na assistência religiosa portuguesa foi em parte devido à grande desconfiança que os políticos republicanos tinham sobre o trabalho efectuado pelos capelães, ao ponto de ter sido emitida a seguinte ordem aos Serviços Postais de Campanha (SPC):

"Ordem Serviço SPM, nº 49, de 27 de Agosto de 1917,

Por ordem de Sua Ex.ª o General [Tamagnini de Abreu], em virtude do determinado por sua Ex.ª o Ministro da Guerra [Norton de Matos], as forças que fazem parte do CEP não podem receber os seguintes livros: O livro do Soldado Português, pelo Padre José Lourenço de Mattos; O Manual do Soldado Português, adoptado pela Comissão Central de Assistência Religiosa em Campanha. Porque o primeiro contém doutrina contra as Instituições vigentes e à Constituição Política da República e o segundo porque o seu título quase indica que todos os soldados portugueses são católicos o que não é verdade. V.Ex.ª aprenderá e remeterá a esta secretaria [Quartel-general do CEP] todos os exemplares que aí dêem entrada." (FPC/EHS/CX1, Arquivo CEP - Serviço Postal de Campanha)

A Comissão Central de Assistência Religiosa em Campanha tinha conhecimento de outros padres que se encontravam em França inseridos no contingente do CEP, razão pela qual exerceu pressão junto do Ministro da Guerra para que esses homens fossem colocados no Corpo de Capelães Voluntários, evocando falta de capelães nas Brigadas e ambulâncias da primeira linha. Conseguiu em Janeiro de 1918, quando Sidónio Pais acumulava o Ministério da Guerra, que o General Tamagnini de Abreu admitisse um aumento de efectivo de capelães voluntários, o qual foi autorizado em 16 de Maio de 1918, com a publicação do Ofício n.º 141.

Em Junho de 1918, foi publicado o Decreto 4489, de 4 de Junho de 1918, que integrou no Exército os capelães voluntários com os vencimentos correspondentes ao posto de alferes e que abriu o âmbito da assistência religiosa aos hospitais, navios, asilos ou qualquer estabelecimento onde existissem doentes, feridos, mutilados ou repatriados de guerra. Este Decreto concretizou as pretensões da CCARC ao permitir ao comandante do CEP, sob proposta dos comandantes das unidades, autorizar a transferência para o serviço de assistência religiosa dos oficiais e praças necessários. O Corpo de Capelães Voluntários chegou a ter um efectivo máximo de 36 padres.”

O padre Avelino de Figueiredo, um dos primeiros sacerdotes a embarcar voluntariamente para França, acabou por deixar o testemunho do que foi a Assistência Religiosa no CEP, num extenso artigo publicado em 1936 na revista “Defesa Nacional” e que a seguir reproduzimos. 

“Pelo Decreto n.º 2:942, de 18 de Janeiro de 1917, foi criada a Assistência Religiosa junto do Exército Português na Grande Guerra.

Os termos deste Decreto eram tais, que o Governo português julgou não haver no país clero, que se oferecesse. Este era convidado para o sacrifício da sua tranquilidade, da sua saúde, para a morte, sem uma única garantia, ou remuneração! Nem pré de soldado lhe concedia o governo!

Permitia-se a incorporação do clero no C. E. P. sem garantias de espécie alguma.

As enfermeiras eram equiparadas, para o efeito de soldo e subvenção, ao posto de alferes; os capelães equipararam-nos a alferes sem vencimento.

Os capelães de qualquer exército em campanha, na Grande Guerra, tinham o ordenado e subvenção correspondente ao seu posto, que ia desde tenente até general.
Uma excepção havia para os pobres capelães portugueses!

Um dia fui visitado em Lestrem, quando chefe dos serviços religiosos da 1.ª Divisão, pelo meu colega inglês duma Divisão do V Exército. Ele mostrou a sua indignação por me ver equiparado a alferes, pois os capelães ingleses nas minhas condições eram tenentes-coronéis.

Ignorava ele, que o chefe geral era alferes equiparado, sem vencimento. Quando os Hospitais ingleses se transferiam de Air-sur-la Lis para Merville, fui visitar os doentes portugueses que ali havia.

O capelão inglês e um seu doente, disseram-me, que não saísse, sem lhes falar. Que queriam?! Dar-me uma esmola. Como português senti-me vexado, mas não pôde rejeitá-la, tal a caridade com que a ofereceram; «para missas», por suas intenções.

Porquê esta excepção?! O Governo português nunca calculou, que houvesse bastante patriotismo e fé ardente, que levasse aos campos de batalha o clero de Portugal, em condições tão desvantajosas. Verdade seja, que o episcopado do nosso país, num erro de visão, tinha resolvido opor-se à ida do seu clero para a guerra, na qualidade de capelães.

Quando o Governo português fez o oferecimento do nosso exército aos ingleses, resolveu enviá-lo sem capelães. O Governo inglês,-que tinha em cada batalhão ou hospital três capelães! Um católico, um anglicano e um prisbeteriano, ou seja um capelão de todas as religiões seguidas na Inglaterra – fez-lhe ver, que não aceitava os nossos soldados sem capelães; fossem eles de que religiãofossem; mas que fossem da religião dos nossos soldados.

Os povos civilizados admitem, que os seus soldados tenham uma religião mas não os admitem sem religião, e assim os ingleses, franceses, alemães, austríacos e italianos tinham capelães junto dos seus exércitos.

Se o nosso Governo quisesse enviar capelães, não precisava, de princípio, criar o corpo de capelães-voluntários; bastava-lhe fazer seguir, com os nossos soldados os capelães, que tinha no exército, e que ainda lá estão, mas empregados em tudo menos no serviço religiosos e aperfeiçoamento moral dos nossos soldados.
Ele, porém, pretendeu simplesmente criar os capelães-voluntários, para inglês ver. Não havendo oferecimentos, não haveria capelães.

Mas Deus, que se serve da mais fraca argila, para as suas obras, sugeriu a ideia do oferecimento de alguns padres, os quais tiveram a ampará-los o carinho desse alto espírito, que foi o cardeal Belo. Sua Eminência depois de lhes mostrar os inconvenientes do não oferecimento do clero para a guerra, dispensou-nos toda a sua benevolência.

Dois bispos estiveram sempre em espírito com os capelães militares - o Cardeal Patriarca e D. Sebastião, bispo de Beja.

Com o meu oferecimento para capelão do C. E. P. e a propaganda a favor dos capelães-militares começaram os oferecimentos, e formou-se o corpo dos capelães, embora tão diminuto, que não chegou para que cada unidade tivesse um capelão.

O que de heroísmo, de fadigas e de trabalhos suportaram os capelães é assunto, que não cabe nos limites dum artigo. A sua acção com os olhos em Deus, não esperava recompensa humana.

O que é indubitável é que os capelães portugueses se equipararam em patriotismo e zelo apostólico ao clero francês, em prudência e valentia ao inglês e alemão.
Para mostrar o prestígio dos nossos capelães, basta citar um facto passado em Brest.

Um dia os aliados resolveram fazer uma festa com grande pompa na catedral de Saint Louis. Para essa festa foram convidados generais, almirantes, o perfeito marítimo de Brest, e tudo que de grande havia na capital da Bretanha.

Igualmente foram convidados os exércitos aliados. Havia ali 200 000 americanos, muitos franceses, ingleses e portugueses em pequeno número. Havia 8 capelães católicos americanos, vários franceses e alguns ingleses. Só Portugal tinha um único capelão para ali mandado, com sacrifício do front, para combater 5 capelães protestantes, que, dentro em pouco, abandonavam a cidade, e deixavam toda a acção religiosa dos nossos soldados na mão do nosso capelão.

Quem presidiu a festa tão selecta? O capelão português; tal o prestígio que o nosso padre obteve em terras de França!

O pobre pequeno núcleo de capelães portugueses em toda a parte soube impor-se pela sua linha moral, pela sua conduta, pelo seu sacrifício, pela sua ilustração, pelo seu zelo, o que nunca lhe foi reconhecido nem por gregos nem por troianos.

O Corpo de Capelães Portugueses é a unidade mais citada e condecorada do C.E.P.; ganhou as suas condecorações pelos actos de abnegação, heroísmo e desprezo da vida, que praticou*.

O maior factor moral do nosso C.E.P. foi o capelão português! Para provar esta afirmação, tenho muitos casos.

Quantos espíritos abatidos pela sua prolongada permanência nas trincheiras se não fortificaram e se transformaram em heróis, devido à acção do capelão? Quantos, sem religião, não encontraram, no irmão capelão, o animador do seu espírito abatido, o enfermeiro zeloso dos seus males, o lenitivo para as suas lágrimas e dores?

A história dos capelães no C. E. P. há de fazer-se para bem do nosso esforço na guerra, para honra da religião e estigma de alguns fariseus.

O capelão era o pai de todos os que sofriam, o companheiro das suas mágoas, o participante das suas tristezas, o irmão mais velho, que para todos sorria, a todos aconselhava e por todos se sacrificava.

No fragor da batalha era o primeiro a dar um passo em frente, para animar e socorrer os soldados; nos postos avançados era o cura das almas, o enfermeiro, o representante dos antes queridos distantes, que a todos confortava.

Nas horas da bonança, nos templos improvisados ou ao ar livre, era o representante de Deus, que a todos animava, o pai benévolo que a todos perdoava, o patriota que a todos insuflava amor à Pátria, à família, e respeito pela farda, que todos vestíamos. 

O capelão português pode dar, aos capelães de todos os exércitos, exemplos de sacrifício, de sofrimento sofrido estoicamente.

Quem sustentou a «Casa do Soldado» de Lavantie, destruída no 9 de Abril?! O capelão. Um capelão a organizou e sustentou do seu bolso. Ali encontravam os soldados e sargentos portugueses um refúgio à intempérie da Flandres.

Tinham fogões para se aquecer, instrumentos para tocar, jogos diversos, jornais portugueses de todas as cores para ler, livros, cigarros, bolos e vinhos portugueses. No fim de cada semana, os que se distinguiam tinham camisolas ou ceroulas de lã, etc.. Nunca esse capelão recebeu da Assistência Religiosa qualquer auxílio para tal benefício.

A tolerância do clero português e sua imparcialidade foram várias vezes postas à prova. Eis um caso: Em Vieille Chapelle, pela retirada do exército inglês, ficou uma igreja e uma cantina protestantes. Um dia vem-me dizer, que acabara de chegar do Brasil um missionário protestante para pregar aos nossos soldados. Pouco depois o padre protestante veio convidar-me para, na igreja protestante, presidir à primeira conferência do tal missionário. Se não aceito, nunca mais lá entrava, se aceito havia o perigo do desconhecido e do que iria passar-se. 

Aceitei, pedi ao sr. coronel Reis e Silva, comandante da 3.ª Brigada, para comparecer com o seu Estado Maior e mandar a música do 14. Tudo correu conforme os meus desejos. À hora marcada iniciou-se a sessão pelo discurso do pastor protestante, que se referiu elogiosamente à minha acção. 

Depois levantei-me para apresentar à assembleia o missionário protestante. Este falou largamente sobre o Brasil e a acção protestante; mas de forma a não me magoar. Terminado o discurso levantei-me para falar. Sei simplesmente, que depois do meu discurso, na igreja protestante, nunca mais ninguém ali fez conferências instrutivas, senão eu. Ali como em Brest, onde fui levado por uma missão delicada e difícil, as relações entre católicos e protestantes foram sempre as mais cordiais. Muitos serviços prestei às cantinas protestantes, que, sem auxílio do C. E. P., não poderiam cumprir a sua missão.

Fomos pessimamente recebidos em França, vigiados, espionados, e a princípio perseguidos; mas acabamos por triunfar e provar que o clero português sabe sacrificar-se pela sua Pátria e pela sua Religião.

A nossa acção foi tão evidente, e tão apreciada, que foi a grande alavanca, com que se construiu a união entre a Igreja e o Estado em Portugal. É devido ao nosso trabalho e porte no C. E. P., que a política e a religião vivem no nosso país, de mãos dadas, e ajudando-se mutuamente. A má vontade, pois, que nos recebeu, transformou-se em amizade, e a benevolência de todos até dos irreligiosos. Os capelães do C. E. P. jamais esquecerão as provas de estima e amizade, que receberam dos oficiais e soldados portugueses.

Só um facto, para terminar, para provar esta afirmação.

Quando desembarquei no Entreposto de Santos, um motorista militar e desconhecido, acercou-se de mim e perguntou se trazia bagagem ou coisas sujeitas a alfândega. Respondi-lhe que trazia a minha mala, a bicicleta, recordações da guerra, tais como granadas de diversos formatos, uma arma alemã, etc. Ele foi ao meu camarote, carregou tudo aos ombros e pôs no camião do Estado. Dali foi levar, o que me pertencia, única riqueza, que me deixou a guerra à Ordem Terceira de S. Francisco da Cidade, onde fui recebido por esmola e onde comi sopa dos pobres, durante oito meses até ganhar para poder comer e alugar um quarto. 

No dia seguinte voltei ao Entrepostos de Santos, para gratificar o gentil motorista. Quando me dispunha a abrir o dólman, para gratificar este filho do povo, que eu não conhecia, perfilou-se, fez-me a continência e exclamou: «Ó meu alferes, vai ofender-me, não aceito nada, porque sei o que fez por meus irmãos em França!»

O seu reconhecimento pagou de sobra tudo, o que eu possa ter feito pelo meu país e pelos meus queridos e inolvidáveis soldados, sempre tão obedientes e valentes”.

Padre Avelino de Figueiredo
In: Revista “Defesa Nacional” de 1936

Manuel Ribeiro Rodrigues recorda no blog Operacional que “outros sacerdotes portugueses receberam igualmente recompensas aos seus altos feitos e foram ainda condecorados com a Cruz de Guerra os reverendos Manuel Caetano, pelo seu assombroso sangue frio na batalha do 9 de Abril, e o cónego Álvaro dos Santos, pelo mesmo motivo. Também receberam louvores mais alguns padres portugueses e entre eles o reverendo padre Avelino Simões de Figueiredo.”