Voz de prisioneiro português na Primeira Guerra Mundial foi gravada no cativeiro

por RTP

O documentário da RTP "Portugueses nas trincheiras", sobre a Primeira Guerra Mundial, foi para o ar em 2008 e começa com estas imagens, que apresentam um pequeno achado de arqueologia musical: a voz de um soldado português, a cantar, gravada há quase um século no campo de prisioneiros de Merseburg, na Alemanha. A gravação é possivelmente, segundo o musicólogo Manuel Deniz Silva, na altura ouvido pela RTP, a primeira de um cantor português não-profissional.

A voz do soldado foi uma entre muitas gravações feitas por uma comissão de cientistas alemães – etnólogos, linguistas, musicólogos – que percorreram 70 campos de prisioneiros, para registarem os modos de falar e de cantar de vários povos estrangeiros, alguns deles de países distantes e algo exóticos para os padrões da época. A oportunidade era única, porque nos campos de prisioneiros controlados pelos alemães se falava mais de 250 línguas e dialectos.

À comissão presidia Alfred Doegen, que incluiu no plano de trabalho a realização de radiografias para determinar em que medida a produção de determinado tipo de sons condicionava a forma das cordas vocais dos prisioneiros. Dos trabalhos de gravação, das radiografias, das medições antropométricas realizadas pela comissão, conservaram-se fotografias que se encontram reproduzidas, algumas delas, no documentário. Alfred Doegen viria mais tarde a ser afastado do seu cargo na comissão, logo no início do regime nazi.

A comissão, de seu nome "Königlich Preussische Phonographische Kommission", fôra criada em Outubro de 1915, mas a sua grande oportunidade para proceder às gravações já veio na fase final da guerra, quando o número e a variedade de origens dos prisioneiros tinha aumentado exponencialmente. Foi em 1918 que gravou quase todos os seus 1.650 discos, que hoje se encontram à guarda do Berliner Lautarchiv, uma instituição ligada à Humboldt Universität, de Berlim.

A história do arquivo encontra-se resumida num artigo do seu responsável, Jürgen Mahrenholz, que a pedido da RTP procurou os registos de gravações feitas com prisioneiros portugueses.

Entre os 1.650 discos gravados pela comissão, Mahrenholz encontrou dois que foram gravados com dois prisioneiros portugueses. A comissão não só gravara uma canção e vários poemas declamados pelos dois prisioneiros, como também registara escrupulosamente em fichas individuais os seus dados biográficos.

Por essa via, ficamos a saber que ambos são camponeses e alfabetizados, o que era relativamente raro no Corpo Expedicionário Português e poderá ter contribuído para a sua selecção. Um deles, Agostinho Martins, tinha na altura 23 anos e era natural da freguesia de Barreiros, concelho de Viseu. O outro, João Neves, tinha 27 anos e nascera no lugar de Cagido, concelho de Santa Comba Dão.

Ambos tinham sido capturados no dia 9 de Abril de 1918, no ataque alemão às linhas portuguesas que a nossa História militar designa como "Batalha de La Lys". Ambos tinham sido internados no campo de prisioneiros de Merseburg, um dos locais mais importantes de concentração dos 6.500 portugueses capturados. Desse total, cerca de 2.000 portugueses estiveram em Merseburg.

Os dois prisioneiros recitam vários poemas e João Neves canta um desses poemas. Aparentemente, terá sido ele próprio a escrevê-lo, porque a primeira das duas quadras cantadas é alusiva a uma situação de cativeiro.

Letra da canção cantada por João Neves

As grades desta prisão,
Lá de fora metem medo.
Que fará quem está cá dentro,
A cumprir o seu degredo.

As cordas da minha guitarra
São de ouro acastanhado,
São cabelos que eu roubei
Das tranças da minha amada.
Na versão cantada, João Neves engana-se e substitui "grades" por "cordas". O sentido geral do poema e o queixume pela sua situação de prisioneiro mantêm-se, contudo, intactos.

João Neves sobreviveu à guerra, regressou à sua aldeia natal e viveu até idade avançada na aldeia vizinha de Pinheiro de Ázere.

Graças à ficha guardada no Berliner Lautarchiv, a RTP pôde encontrar-lhe a pista e saber alguma coisa do seu destino posterior. Nisso teve a ajuda da Junta de Freguesia de Óvoa, que localizou os seus familiares ainda vivos. A tarefa não parecia fácil, porque o soldado vindo da Alemanha e sua mulher não tiveram filhos. Um sobrinho-neto e alguns vizinhos entrevistados para aquele documentário, da autoria de Sofia Leite e António Louçã, recordam-se ainda do homem que cantava em línguas doutros países representados nos campos de prisioneiros e que, em momentos de desvario aparentemente atribuíveis a stress de guerra, praguejava com palavras alemãs.
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