Uma cidade, um Muro, dois mundos

por Graça Andrade Ramos, RTP
Potsdamer Platz em novembro de 1975 olhando para Berlim Leste Wikicommons

Depois de completo, o Muro estendia-se por mais de 155 quilómetros, cortando estradas e linhas férreas. Expressando a divisão do mundo em dois blocos.

 O fim de semana em Berlim decorria pacato. A noite de agosto de 1961 estava calma. Contudo à 1h45 da madrugada de dia 13, um domingo, soube-se que a circulação do Metro tinha sido suspensa sem razão aparente.

Nas horas seguintes as conexões de trânsito ao longo da linha de demarcação, que separava Berlim Ocidental de Berlim Oriental, foram bloqueadas por forças armadas  da República Democrática Alemã (RDA). Nos postos fronteiriços com os sectores ocidentais surgiram forças soviéticas preparadas para tudo.

Durante toda a madrugada decorreram trabalhos. Milicianos da RDA, conhecidos por Vopos, começaram a estender rolos de arame farpado, de poste em poste, cortando a cidade, rua após rua. Trabalhadores descarregavam camiões e amontoavam tijolos, blocos de betão e sacos de cimento. Alguns, munidos de picaretas, abriam sulcos profundos nas estradas para as tornar intransitáveis enquanto outros preparavam argamassa.

À sua frente perfilavam-se soldados da NVA (Exército nacional do Povo) e das KdA (Grupos de Combate da Classe Trabalhadora), com ordens para abater a tiro qualquer pessoa que tentasse fugir para o lado Ocidental.

Restos do Muro de Berlim visto por uma fresta - Memorial (foto: Pawel Kopczynski/Reuters)
Uma necessidade imperativa

Quando os berlinenses acordaram e o barulho das obras os atraiu às janelas, tinha-se erguido à sua frente, numa questão de horas, uma interminável barreira. Quem a seguisse, quilómetro após quilómetro, iria verificar que contornava o sector ocidental de Berlim a toda a volta, tornando-o uma ilha em plena RDA.Para lá da barreira, dentro de território da RDA, limpavam-se áreas e tapavam-se janelas de edifícios, criando-se uma zona tampão com linha de tiro desimpedida contra quem tentasse atravessa-la.

Para as autoridades da República Democrática Alemã o Muro de Berlim era uma necessidade incontornável. A cidade tinha-se tornado o principal ponto de passagem para o Ocidente para os alemães desagradados com a política e a ideologia da Alemanha comunista.

Em 1961 tinham já abandonado a RDA cerca de 3.5 milhões de pessoas. Cerca de 20% da população alemã de leste, de acordo com estudos posteriores da Universidade de Yale. Eram ainda, na sua maioria, jovens e quadros essenciais: engenheiros, técnicos, médicos, professores, advogados e trabalhadores especializados.

O custo total da transferência de trabalhadores qualificados terá custado à RDA entre 7.000 milhões e 9.000 milhões de dólares, além das perdas em investimentos de educação, estimadas em 22.5 mil milhões de marcos. Para a RDA era essencial deter a fuga de cérebros e de jovens, até por simples viabilidade económica.

Uma linha de tijolos e uma placa marcam os locais onde se erguia o Muro de Berlim (foto: Thomas Peter/Reuters)
O problema era o comboio
A fuga em massa tinha-se tornado notória na década anterior. A 23 de maio de 1949 os territórios alemães ocupados pelo Reino Unido, Estados Unidos e França formaram a República Federal Alemã (RFA). A 7 de outubro de 1949 o território leste da Alemanha, cujo controlo tinha sido atribuído à União Soviética após o final da II Grande Guerra, foi declarado República Democrática Alemã (RDA).

Entre as duas Alemanhas permanecia uma linha de fronteira porosa, a Zonengrenze. E a recuperação da poderosa indústria alemã na RFA e seu consequente milagre económico, iniciado nessa mesma época, agia como um íman para os alemães de leste.

Em 1950, 187.000 alemães de leste emigraram para oeste. Em 1951, mais 165.000. Em 1952, 182.000.

Nesse mesmo ano, as autoridades da RDA começaram a fechar definitivamente a Zonengrenze. Só nos primeiros seis meses do ano de 1953, 226.000 pessoas passaram a fronteira enquanto podiam, de um total anual de 331.000. Berlim tornou-se então o único local em toda a RDA onde se podia passar para o lado ocidental, mesmo que em locais selecionados e sob algumas restrições.



Houve revoltas em 1953, esmagadas pelso tanques soviéticos. E os ocidentais passaram obrigados a possuir um passe especial para circular no lado oriental de Berlim.

Em 1955, o sector soviético da cidade passou a ser governado pelas autoridades da RDA, as quais, de início, disponibilizaram alguns passes de visita para o sector ocidental. Muitos “visitantes” aproveitavam contudo para não regressar.

Em 1956, todo o trânsito de alemães de leste para a área ocidental de Berlim ficou sujeito a restrições severas. Em 1957, foram mesmo decretadas punições, incluindo três anos de cadeia, a quem tentasse abandonar o lado comunista sem autorização. Mas, sem barreiras visíveis e com as linhas de Metro a ligarem toda a cidade sem restrições, o controlo da fuga era quase impossível.

Berlim era então ainda um centro incontornável das ligações ferroviárias da RDA. As autoridades comunistas tinham iniciado em 1951 obras para tornar essa ligação desnecessária. Mas as obras só ficaram completas em 1961. Erguer uma barreira definitiva em Berlim tornou-se então a resposta óbvia.
A primeira vítima

Todo o planeamento da obra decorreu em segredo ao longo de vários meses. As autoridades da RDA desmentiam rumores do que se preparava e que, entre os serviços de informação ocidentais, se reduzia ao cerco da cidade de Berlim mas não à sua divisão efetiva."Não tenho conhecimento de um plano desses, já que os operários da construção estão ocupados a construir casas e toda a mão-de-obra é necessária para isso. Ninguém tenciona construir um muro", garantia Walter Ulbricht, chefe de Estado da RDA, dois meses antes de 13 de agosto.

A barreira foi construída dentro dos limites territoriais da RDA. Depois de completo, o Muro estendia-se por mais de 140 quilómetros, cortando estradas e linhas férreas. Separando famílias, impedindo alemães de leste de ir trabalhar ao ocidente. Expressando a divisão de um mundo em dois blocos.

A barreira começou a ser reforçada a 17 de agosto, entre protestos oficiais das potências ocidentais que, contudo, nada fizeram para impedir a sua construção. Nesse mesmo dia morreu o primeiro alemão, Peter Fetcher, de 18 anos, abatido a tiro quando tentou passar a barreira. Esvaiu-se em sangue na ‘zona da morte’, como ficou depois conhecida.

Chocados, os berlinenses ocidentais protestaram junto à barreira, liderados pelo Presidente da Câmara da cidade, Willy Brandt, que criticou severamente a inércia dos Estados Unidos.

O então presidente norte-americano, John Kennedy, estava no entanto demasiado aliviado pelo facto dos soviéticos, através dos alemães de leste, não terem tentando antes anexar todo o sector Ocidental de Berlim.
A resposta dos EUA

No dia 16 de agosto, denunciando o Muro, Kennedy ordenou o reforço das forças militares ocidentais, as Brigadas Aliadas (três, uma de França, outra do Reino Unido e outra dos EUA). Kennedy enviou para Berlim o general na reserva Lucius D.Clay, com o grau de embaixador. Clay tinha sido Governador Militar da zona ocupada da Alemanha sob os Estados Unidos e era considerado um herói pelos berlinenses, por ter inciado a Ponte Aérea que os abasteceu durante um ano em resposta ao cerco ordenado por Stalin em 1948.

Por sua vez o 1º batalhão, 18ªinfantaria, comandada pelo coronel Glover S. Johns Jr, recebeu ordens para se dirigir a Berlim o mais rápido possível, por terra, numa demonstração dos direitos dos aliados.

No domingo seguinte ao início da construção do Muro, uma coluna de 491 veículos e camiões transportando 1500 soldados americanos, divididos em cinco unidades de marcha, entrou na RDA por Mannheim, vindos da RFA a caminho de Berlim.

Os guardas fronteiriços da RDA fizeram o que puderam para contrariar os americanos e contaram os soldados, um a um. A coluna, pronta para o combate, estendia-se ao longo de 160 quilómetros de autoestrada. Foi observada pela polícia alemã ao longo de todo o trajeto até Berlim, onde a aguardava uma imensa multidão.

Mas os berlinenses que esperavam auxílio ocidental para recuperar a sua antiga cidade foram defraudados. Nada sucedeu, além da posterior substituição regular das tropas americanas, do mesmo modo.

Ao longo do ano de 1961 sucederam-se os incidentes e episódios diplomáticos que acabavam em horas de tensão entre tropas de ambos os lados do muro prontas para o combate.

John F. Kennedy junto ao Muro de Berlim em 1963 (Foto: Robert Knudsen, Casa Branca, Wikicommons)

O Muro de Berlim foi um desastre para a imagem da RDA e do comunismo. Mas a sua eficácia justificou-o do ponto de vista dos seus responsáveis. Problemas de moeda e o mercado negro de produtos ocidentais praticamente cessaram assim como a drenagem de cérebros e de jovens. E a economia da RDA começou a recuperar.
Um Muro em quatro fases

Os muros de tijolos e arame farpado com dois metros de altura, construídos em 1961 ao longo da linha de demarcação que dividia Berlim foram apenas a primeira de uma série de barreiras cada vez mais sofisticadas.

Em 1962, dentro do território da RDA, começou a ser erguida uma segunda linha a cerca de 100 metros da primeira barreira. As casas e árvores entre as duas foram arrasadas e o terreno liberto foi coberto de gravilha e de areia, tornando fácil detetar eventuais intrusos.

A área ficou conhecida como ‘zona da morte’, pelo número de alemães abatidos quando tentavam atravessa-la. A sua amplitude variava consoante a área da cidade e sob muitos aspectos era ela o verdadeiro 'muro' inultrapassável.

Muro em Liesenstraße e Nordbahnhof no cemitério de St. Hedwig (1980) (Foto: Alexander Buschorn Wikicommons)

A operação ficou concluída em 1965 e nesse mesmo ano o arame farpado e os muros de tijolo e cimento começaram a ser substituídos por placas de betão, ao longo de um período de 10 anos.

Em 1975 iniciou-se a fase final com a construção do Muro de Quarta Geração, que demoraria cinco anos a completar. Foi a Quarta Geração do Muro que perdurou até 1998 e foram pedaços dela que se espalharam pelo mundo, após a sua demolição.

Era feita de 45.000 seções separadas de betão reforçado, cada uma com 6.6 metros de altura por 1.2 metros de comprimento.

Exceto em algumas seções estratégicas, deixadas mais fracas para possibilitar a passagem de carros armados soviéticos em caso de guerra, o betão evitava que pessoas em fuga lançassem carros para passar as barreiras.

No topo do Muro foram colocados canos, para dificultar a escalada. Havia ainda, ao longo das 'zonas da morte', cercados de rede e de arame farpado, trincheiras antitanque, patrulhas com cães, camas de pregos sob os balcões projetados sobre a área. Existiam ainda 116 torres de vigia e 20 bunkers.

Enquanto durou o Muro, cerca de 5.000 pessoas conseguiram fugir para Berlim Ocidental.

Um Muro interrompido

O Muro incluía nove passagens entre Berlim Leste e Berlim Ocidental, o mais famoso dos quais era Check Point Charlie. Quatro autoestradas ligavam ainda os dois lados da cidade.

Antes do Muro, três linhas de Metro ocidentais possuíam trajetos sob Berlim Leste que se mantiveram operacionais apesar das antigas estações a oriente se manterem encerradas. Friedrichstraße, o ponto de convergência dos transportes públicos ocidentais e orientais, tornou-se um dos pontos naturais de passagem, sobretudo para berlinenses ocidentais com passe para o lado oriental.

O acesso a Berlim Ocidental era também possível a partir da RDA, através de vários pontos de passagem que incluíam quatro linhas férreas e transporte fluvial.

Após acordos em 1971, a entrada de ocidentais em Berlim Oriental passou a ser permitida através de visto, pedido com antecedência na Embaixada da RDA. Existiam ainda vistos de visita de um único dia. Mas as autoridades da RDA podiam negar a entrada sem qualquer razão. Em 1980, os visitantes ocidentais tinham de pagar 25 marcos da Alemanha Federal (DM) por outros tantos marcos da RDA (OST), apesar da diferença de câmbio, sendo proibido levar DM para território da RDA. E os turistas tinham ainda de pagar 5 DM para entrar em Berlim Oriental.

Excluídos de vistos e de quaisquer pagamentos estavam apenas as tropas e o pessoal diplomático, tanto ocidental como de leste.

Contudo, as potências aliadas não reconheciam a autoridade da RDA, mas apenas as soviéticas, para regular o seu trânsito, pelo que foram estabelecidos protocolos complicados para evitar qualquer vestígio de reconhecimento inadvertido.

Os movimentos entre os dois blocos estavam ainda restritos ao Check-point Charlie, entre os dois lados de Berlim, e à autoestrada Helmstedt-Berlin, vigiada por soviéticos e a determinados comboios oficiais, entre a RDA e Berlim Ocidental.

Já os movimentos dos alemães de leste eram muito mais restritos. A partir de 1965, pensionistas idosos podiam visitar o lado ocidental. Eram abertas exceções a quem tinha de tratar de assuntos de família muito importantes ou a quem visitava o Ocidente por razões profissionais (o que abrangia artistas, escritores ou músicos e condutores de camião).

As autorizações de passagem eram escassas e a quantidade de OST que os cidadãos da RDA podiam trocar por DM era muito limitada. A RFA criou por isso um fundo de boas-vindas de DM para facilitar as visitas dos alemães de leste.
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