Administração Trump encerrou em 2019 gabinete que avaliava segurança de vacinas

por Inês Moreira Santos - RTP
Kim Hong-Ji - Reuters

Donald Trump voltou a prometer aos norte-americanos uma vacina contra a Covid-19 em "em poucas semanas". Alguns especialistas têm negado a possibilidade do Presidente dos Estados Unidos cumprir essa promessa e, agora, foi revelado que a Administração Trump encerrou no ano passado o gabinete dedicado à avaliação da segurança a longo prazo de vacinas, o que pode atrasar os planos de rastreamento de um tratamento para a infeção provocada pelo novo coronavírus.

Espera-se que no futuro próximo cheguem as primeiras doses de uma vacina contra a Covid-19, mas os especialistas receiam que os Estados Unidos tenham mais um desafio pela frente: avaliar a segurança do medicamento e monitorizar a saúde de centenas de milhões de norte-americanos para garantir que a vacina não causa efeitos secundários adversos. O problema, segundo avançou o New York Times, é que a Administração Trump encerrou no ano passado o Gabinete do Programa Nacional de Vacinação.

Fundada pela Administração Trump para a produção de vacinas e tratamentos contra o novo coronavírus, a Operação Warp Speed tenta desenvolver vacinas através de testes clínicos em tempo recorde e quer produzi-las o quanto antes. Mas depois de haver uma vacina os desafios continuam.

Seja nas próximas semanas ou só em 2021, será preciso avaliar os efeitos e as respostas das pessoas sujeitas à inoculação, assim como determinar se os efeitos, as doenças ou até possíveis causas de morte dessas pessoas estão associadas à vacina ou não.

Essa monitorização da segurança das vacinas, assim que estiverem disponíveis à população, pode vir a ser mais demorada do que o esperado, uma vez que a Casa Branca  dissolveu no ano passado o gabinete responsável por estas funções, transformando-o num departamento centrado em doenças infecciosas.

Ao New York Times, os especialistas afirmaram que a eliminação deste gabinete fragmentou o esforço de garantir a segurança de longo prazo das vacinas contra o Sars-Cov-2 entre as várias agências federais e sem uma gestão central.

"Estamos a perder a bola", disse Daniel Salmon, que atuou como diretor de segurança de vacinas naquele gabinete de 2007 a 2012 e supervisionou a coordenação durante a pandemia da gripe H1N1 em 2009. "Nem sabemos quem está no comando", continuou.

Já o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (HHS na sigla em inglês) garantiu ao jornal que o gabinete em causa não estava fechado: "o gabinete não foi 'fechado', foi fundido com o Gabinete de Políticas de Doenças Infecciosas e HIV/AIDS e foi melhorado".

"Todas as funções continuam nesta nova estrutura organizacional", esclareceu um porta-voz num comunicado.

Um outro representante do HHS disse ainda que a Operação Warp Speed ​​estava a trabalhar em estreita colaboração com os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças "para sincronizar os sistemas " envolvidos na monitorização dos dados de segurança da vacina.
Especialistas apelam à criação de sistemas de dados

Os cientistas do CDC e da Food and Drug Administration (FDA) têm décadas de experiência no rastreamento da segurança de longo prazo das vacinas, tendo criado programas informáticos capazes de analisar grandes bancos de dados. Contudo, consideram que monitorizar dados de centenas de milhões de norte-americanos, que podem vir a receber diferentes vacina contra a Covid-19 e de várias farmacêuticas, é como rastrear "uma tempestade".

A situação mais semelhante aconteceu na primavera de 2009, quando uma nova estirpe da gripe H1N1 apareceu e os investigadores tentaram desenvolver em tempo recorde uma nova vacina - de outubro de 2009 a janeiro de 2010, foram vacinadas mais de 82 milhões de pessoas nos EUA.

À medida que iam desenvolvendo a vacina, os cientistas preparavam um sistema para monitorizar a população de forma a determinar possivies efeitos colaterais graves e para poder divulgar os resultados imediatamente ao público.

"Reunimos todas as diferente agências, criamos uma forma de gestão dos dados, criamos um plano de monitorização regular e um plano de comunicação pública", explicou Jesse Goodman ao NYT, cientista-chefe do FDA durante a epidemia do H1N1. "Eu acho que desenvolver algo muito parecido é ainda mais necessário agora. E ainda não vimos isso ser criado".

Aliás, estes sistemas de dados não são recentes. Já na década de 1970, a Casa Branca criou programas em grande escala para monitorizar a segurança das vacinas. Na altura, havia um sistema para que os pais descrevessem os sintomas que os filhos apresentavam após a vacina.

Mas este tipo de ferramenta tem limites: as pessoas podem não relatar certos sintomas que deviam ser investigados ou podem associar outros problemas à inoculação mesmo que não estejam relacionados.

E quando surgiu a gripe H1N1 em 2009, Daniel Salmon reconheceu que estes métodos não eram suficientes para rastrear tantas pessoas e detetar sintomas dversos rapidamente. Então, em colaboração com investigadores de Harvard tento criar um novo sistema, que veio a ser conhecido como PRISM - com este sistema vários investigadores e agências federais associadas conseguiam monitorizar os dados e, a cada duas semanas, reunir para discutir a fundo as informações recolhidas e invetigar os sintomas mais raros após a inoculação.

À medida que foram surgindo novas epidemias, novos tratamentos e vacinas, os especialistas iam tentando melhorar os sistemas de rastreamento e monitorização de segurança. Em 2016, o Barack Obama criou um gabienete de segurança de saúde global no Conselho de Segurança Nacional. Mas em 2018, a Administração Trump fechou esse gabinete, alegando que estava a simplificar "a burocracia".

No ano seguinte, o Gabinete do Programa Nacional de Vacinação teve o mesmo destino. Alex M. Azar II, secretário da Saúde e dos Serviços Humanos, afirmou numa carta dirigida à senadora Patty Murray, membro graduado de um subcomité de saúde, que a fusão, como parte de uma reorganização mais ampla do departamento, "aumentaria a eficiência operacional ao eliminar redundâncias e redução dos custos do programa".
Rastreamento da segurança das vacinas sem gestão central

Segundo assessores do Secretário Adjunto da Saúde, os gabinetes foram fundidos "após um estudo que recomendava ao Secretário Adjunto de Saúde que esta era a melhor maneira de melhorar a função de ambos os gabinetes, criando sinergias e eliminando chaminés", disse o almirante Brett Giroir, secretário assistente da Saúde.

"Concordei de todo o coração com esta recomendação porque fortalecer a eficácia e a confiança da vacina e acabar com a epidemia de HIV são duas das minhas prioridades mais críticas. Qualquer pessoa que esteja a afirmar que fechamos este gabinete não tem ideia do que está a falar".

Por seu lado, Nicole Lurie, antiga secretária assistente para a preparação e resposta no HHS durante a pandemia de 2009, disse que o encerramento do gabinete de segurança de vacinas foi especialmente prejudicial com o aparecimento da pandemia da Covid-19.

"A gestão coordenada para coisas como esta provavelmente viria do Gabinete do Programa Nacional de Vacinação", afirmou a agora conselheira da Coalition for Epidemic Preparedness Innovation.

Lurie afirma que juntamente com os investigadores continua à espera, mês após mês, que surja uma liderança coordenada do governo federal sobre a segurança de vacinas a longo prazo.

"Há muitas pessoas que estão realmente preocupadas com isto", lamentou.

Embora a FDA afirme que na ausência do gabiniete responsável pela avalaição de segurança das vacinas, tanto a FDA como o CDC estavam a contar que a gestão partisse das relações entre as agências federais, que discutem regularmente os seus próprios projetos de rastreamento. Mas a falta de uma gestão central preocupa Lurie que garante que "não há nenhum tipo de coordenação ativa para reunir todas as informações".

Mas há ainda um outro problema que preocupa os especialistas: a desinformação e a falta de um plano de comunicação pública.

Ao NYT, alguns investigadores afirmam estar preocupados com o facto de não haver nenhum plano abrangente para comunicar os resultados ao público e que isso é fundamental para fomentar a confiança pública no programa de vacinação.

"Acho que a preparação para as campanhas de desinformação russas deve fazer parte da preparação para o lançamento de uma vacina Covid", disse Steven Wilson, cientista político da Universidade de Brandeis.

Já Grace Lee, professora da Escola de Medicina da Universidade de Stanford e membro do comité do CDC, concordou que estes planos eram urgentes: "uma estratégia e um plano de comunicação nacional são muito necessários".
AstraZeneca e Johnson & Johnson retomam testes da vacina
Mas também há boas notícias no avanço do desenvolvimento da vacina contra a Covid-19: as farmacêuticas AstraZeneca e Johnson & Johnson vão retomar os testes.

As duas farmacêuticas anunciaram na sexta-feira a retoma dos testes das suas potenciais vacinas contra a Covid-19 em voluntários nos EUA. Os testes da AstraZenecaforam foram interrompidos no início de setembro e os da Johnson & Johnson no início da passada semana, depois de ambas terem tido casos de voluntários participantes no estudo a desenvolver problemas sérios de saúde, o que exigiu a revisão dos processos de segurança.

As duas vacinas contra o novo coronavírus estão entre as várias candidatas já na fase final dos testes, a última etapa antes de tentar a aprovação regulatória. As farmacêuticas anunciaram que obtiveram sinal verde da Food and Drug Administration para reiniciar os testes.

Os testes da vacina da AstraZeneca, desenvolvida com a Universidade de Oxford, já recomeçaram no Reino Unido, Brasil, África do Sul e Japão. Este estudo da AstraZeneca envolve 30 mil pessoas nos EUA, com algumas a receberem o ensaio de vacina e outros um placebo.

"O reinício dos testes clínicos em todo o mundo é uma ótima notícia, uma vez que nos permite continuar os nossos esforços para desenvolver esta vacina para ajudar a derrotar esta terrível pandemia", disse Pascal Soriot, CEO da AstraZeneca.

Já a Johnson & Johnson anunciou, em comunicado, que vai reiniciar em breve o recrutamento nos EUA para o seu estudo da vacina, acrescentando que está em negociações com outras autoridades reguladoras para retomar os ensaios em outros países.

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