Ecuador. Guayaquil e os funerais de papelão

por Marcos Celso - RTP
Gritos de alerta do outro lado do mundo Reuters; EPA

Na cidade de Guayaquil a temperatura ronda os 30 graus e morre-se "provavelmente" de Covid-19. Vive-se a perda e o desespero por ninguém recolher os corpos daqueles que perderam a vida, passadas horas ou mesmo dias.

As redes sociais no Ecuador são utilizadas para apelos desesperados. No Twitter, por exemplo, um homem de Guayaquil, a cidade mais afetada pela pandemia do novo coronavírus, refere que o corpo de sua mãe, envolto num lençol branco, jaz há 80 horas perto dele. “Ninguém vem buscá-lo”, desabafa num sentimento doloroso para pedir ajuda às autoridades sanitárias ou serviços funerários. A irmã deste equatoriano fez saber que os hospitais da cidade não aceitaram o corpo de sua mãe, por estarem “sobrecarregados”, além de serem perigosos nos dias que correm.

Os números no Ecuador, embora incertos, até não são dos mais dramáticos em termos de infeções e vítimas mortais – pouco mais de 3 mil infetados e entre 120 a 180 mortos. Mas o cenário nesta cidade, a par das deficientes condições sanitárias, leva-nos a acreditar que o “inferno” tem o poder de nos surpreender um pouco mais. 

A família dos dois irmãos aqui descritos, pôde, finalmente, encaminhar o corpo da familiar, que esteve na calçada após falecer por deficiência renal, embora a informação dada pela polícia desse conta de que a solução passaria pela cremação, mas sem a devolução das cinzas aos familiares. 

Este drama é replicado um pouco por toda a cidade de Guayaquil, onde cerca de 2,4 milhões de habitantes vivem momentos de pânico e horror, segundo Martha Roldos, diretora da plataforma digital Milhojas.

Oficialmente, as vítimas mortais no Ecuador provocadas pela Covid-19 não passam as duas centenas. Os infetados rondam os 3300 casos. Na verdade, ninguém acredita nessa contagem, nem mesmo Lenin Moreno, o presidente ecuatoriano que confessou recentemente que "as estatísticas oficiais não refletem a realidade", tendo admitido um cenário de " dezenas de milhares de pessoas" infetadas. No entanto, se formos a acreditar nos dados oficiais divulgados pelo Ministério da Saúde, conclui-se facilmente que o panorama no país não deixa antever um bom caminho: em Guayas, a província que integra Guayaquil, regista-se pouco mais de 2 mil infetados e 102 mortes, cerca de 70% do total registado no país.




Preços de funerárias inalcançáveis

Nesta crise, os que mais sofrem da falta de recolha de corpos são os residentes em bairros sociais. Não quer isto dizer que não se morra pela Covid-19 em apartamentos com melhores condições de habitabilidade, incluindo ar condicionado, mas porque são os moradores de bairros pobres a serem obrigados a partilhar o espaço exíguo das habitações com aqueles que partiram.

Nesta realidade, o poder económico pode – uma vez mais – ajudar a sensibilizar os serviços funerários. É esse o sentimento gerado pelo novo coronavírus. Os serviços de materiais fúnebres dão conta de caixões a serem vendidos por 400 dólares, um preço só alcançado por alguns.

Solução: caixões de papelão

Os vídeos nas redes sociais ajudam a perceber, embora seja difícil de compreender, o drama vivido no Ecuador. A solução para dar resposta ao problema de cadáveres espalhados pelas ruas passa pelos caixões de papelão, algo que dificilmente passe no nosso imaginário do horror. As regras sanitárias não são, assim, respeitadas, mas os familiares optam por proporcionar uma despedida “digna” aos seus próximos. 

Sendo Guayaquil a cidade do Ecuador mais castigada pelo novo coronavírus, a Associação de Papeleiros ecuatoriana quis ajudar e doou cerca de mil caixões de papelão a dois cemitérios locais. Assim, a doação até parece “normal”, pois, perante a falta de caixões e perante os preços demasiado altos que estão a exigir por caixões de madeira, o recurso ao papelão vem anestesiar a tragédia que se vive no Ecuador, assume a prefeitura da cidade.


 Governo culpa "irresponsáveis" 

Tendo dificuldade em conter o contágio em massa, o governo do Ecuador fechou escolas, recorreu ao teletrabalho, limitou o tráfego de veículos, decretou o estado de exceção e bloqueou as fronteiras. 

O presidente Lenin Moreno refere que pelo menos 40% das pessoas infetadas pelo Sars-CoV-2 não respeitaram o isolamento imposto aos doentes. Moreno diz que são "pessoas sem consciência do seu estado, em alguns casos, e, noutros casos, são irresponsáveis porque foram declarados positivos por testes médicos ou são suspeitos de terem o coronavírus e deixam as suas casas, não respeitam a quarentena".

Também o vice-presidente ecuatoriano, Otto Sonnenholzner, veio pedir desculpas públicas pela deterioração da imagem internacional do país, apelando a que a população respeite as medidas estabelecidas pelo governo. "Não podemos desrespeitar o recolher obrigatório e o confinamento", sublinhou.

São palavaras que ecoam um pouco por todo o mundo, mas que, no caso do Ecuador, são proferidas em modo de grito de alerta. A população, em desespero, pede ajuda internacional. As imagens dos vídeos nas ruas ajudam a perceber a realidade, embora ela seja difícil de entender e aceitar. 
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