Lei da selva. Países ricos continuam a monopolizar entregas das vacinas covid

Catorze meses depois e pouco mudou na distribuição de vacinas pelo mundo. As campanhas de vacinação contra a covid-19 arrancaram um pouco por todo o mundo a janeiro de 2021. Nos países desenvolvidos, entenda-se. Um pomo de discórdia foi desde logo a escassez de vacinas para os países mais pobres, que recebiam quantidades residuais de doses que, mais do que constituintes de um programa de vacinação, eram vistas como sobras das nações ricas.

Paulo alexandre Amaral - RTP /
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O aviso foi feito por cientistas e epidemiologistas: não fornecer vacinas aos países pobres e deixar o novo coronavírus em roda livre era o cenário ideal para o surgimento de estirpes que tanto poderiam ser mais infecciosas como mais mortais. Democratizar a vacinação era, para lá de uma questão de humanidade, a estratégia certa para cortar caminho à evolução do novo coronavírus para fórmulas que podiam revelar-se ainda mais incontroláveis do que já estávamos a assistir.

Esse temor não obteve a atenção que os cientistas exigiam e as variantes sucederam-se. Com sorte, a Ómicron, mais infecciosa do que a Delta, revelar-se-ia por outro lado muito mais aceitável para o organismo humano, vindo a impor-se como estirpe dominante e, num golpe de pura sorte, ajudando assim a aliviar os custos humanos da pandemia.

No campo da vacinação, porém, as campanhas continuam a enfrentar as mesmas dificuldades quanto aos países pobres e em desenvolvimento, o que mantêm em aberto esse laboratório de recombinação de vírus e potencial aparecimento de novas estirpes com características imprevisíveis. Os países pobres continuam a debater-se com a escassez de doses, enquanto os países ricos desviam todos os carregamentos que entendem necessários para repor a normalidade na vida social e, mais importante, na sua economia.

Nada mudou quanto a esta situação e voltou a suceder. A COVAX – iniciativa da OMS, Aliança Gavi e CEPI que angaria vacinas para posterior distribuição nos países mais pobres – esperava ter disponíveis 250 milhões de doses Novavax este mês, mas já admitiu que apenas será possível distribuir as vacinas em Abril ou mesmo Maio.

A CEPI – parceria entre organizações públicas, privadas, filantrópicas e da sociedade civil para o desenvolvimento de vacinas – terá entregado 388 milhões de dólares à COVAX para garantir o direito preferencial sobre essas vacinas, mas o acordo apenas se aplica a fábricas na Chéquia (antes República Checa), Coreia do Sul e Espanha. Nas fábricas que escapam a este acordo, as vacinas estão a voar para outros países que não os países mais pobres.

O Serum Institute of India, maior fabricante de vacinas do mundo, produziu milhões de doses da Novavax, mas a maioria voou para países mais ricos, ao invés do desejado pela COVAX: em Janeiro e Fevereiro foram enviados 28,9 milhões para os Países Baixos, período em que a Austrália recebeu 6 milhões, e já anteriormente, em Dezembro do ano passado, a Indonésia tinha garantido 9 milhões de vacinas.

“Seja qual for a razão, uma vacina que se acreditava ser perfeitamente adequada para países pobres está agora, em grande parte, a ir para países ricos”, afirmou Zain Rizvi, especialista em política de medicamentos da ONG norte-americana Public Citizen.

“É trágico que no terceiro ano da pandemia não consigamos ainda obter os recursos, a atenção e vontade política para resolver a desigualdade da vacina”.

Críticas que ecoam as palavras do director-geral da Organização Mundial da Saúde, quando no ano passado Tedros Adhanom Ghebreyesus apelidou esta diferença de tratamento entre países ricos e países pobres de “fracasso moral catastrófico”. Apesar da melhoria nos rácios de vacinação dos países pobres, de acordo com dados da Universidade de Oxford, apenas 14% das pessoas das pessoas que vivem em países de baixos rendimentos receberam [pelo menos] uma dose da vacina.

Zimbabué, República Centro Africana e Kiribati – refere a Associated Press – são três dos países que estavam apontados para receber para receber vacinas agora em Março, mas que não irão beneficiar para já do programa da COVAX.

Outra questão que está a preocupar responsáveis de saúde pública tem a ver com o súbito desaparecimento da urgência de cobrir o mundo com um plano vacinal contra a covid à medida que o dossier é substituído nos media pelo tema da guerra.

“Os países ricos deixaram a covid e estão fixados na guerra na Ucrânia, mas a covid-19 continua a ser uma crise aguda para a maioria das pessoas no mundo”, alertou Ritu Sharma, vice-presidente da instituição de caridade CARE, alertando para esses números que ilustram a dificuldade sentida pela COVAX, além de que, a este ritmo, o mundo ainda tem “anos e anos pela frente” até que estejam imunizadas pessoas em número suficiente para evitar novas vagas da pandemia.
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