Myanmar. Liderança militar "está a usar a covid como instrumento de repressão"

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Reuters

Negar tratamentos a apoiantes do movimento da oposição democrática e vedar a distribuição de material de protecção contra a covid-19 ao pessoal médico alegadamente envolvido nos movimentos de contestação à nova liderança militar são apenas duas das denúncias de que está a ser alvo o governo de Myanmar. Yanghee Lee, birmanesa ligada às Nações Unidas, acusa a junta que chegou ao poder em Fevereiro último de estar a aproveitar as contingências da pandemia para consolidar o golpe militar. Um dos grupos particularmente visados pela nova liderança birmanesa será o dos médicos, que terá entre o seu pessoal elementos que apoiaram o movimento de desobediência civil que se organizou após Aung San Suu Kyi ser deposta.

Num momento em que Myanmar ultrapassou a Indonésia e a Malásia para se tornar no país asiático com a taxa de mortalidade mais alta do Sudeste Asiático, o já de si depauperado sistema de saúde birmanês rapidamente ficou sobrecarregado com a nova vaga de doentes covid com necessidade de tratamento hospitalar. Face à escassez de oxigénio, o Governo restringiu entretanto a sua venda privada sob o pretexto de que está a tentar evitar o açambarcamento, o que desde logo levou a acusações de que os fornecimentos estão a ser desviados preferencialmente para apoiantes do Governo e hospitais geridos pelos militares.

Da mesma forma, surgiram relatos de que elementos do pessoal médico têm sido alvo das acções da junta militar, que estará assim a castigar o seu envolvimento no movimento de desobediência civil que instou profissionais e funcionários públicos a não cooperarem com o novo poder.

“Deixaram de distribuir equipamento e máscaras de proteção pessoal e não deixam que pessoas suspeitas de apoiar o movimento democrático sejam tratadas nos hospitais”, denunciou Yanghee Lee, antiga especialista em Direitos Humanos das Nações Unidas”, para acrescentar que os militares “estão a prender médicos que apoiam o movimento de desobediência civil”.

Yanghee Lee acusa os militares de estarem “a instrumentalizar uma coisa que pode salvar a vida das pessoas. Os militares estão a fazer da covid uma arma contra o povo”.

Com a desobediência civil a crescer logo após a destituição de Aung San Suu Kyi, a anterior líder do país, os hospitais públicos começaram a encerrar progressivamente devido à falta de médicos e funcionários, que se recusaram a trabalhar sob a nova administração militar, passando a prestar cuidados em clínicas improvisadas, uma situação que os colocou nas listas da junta militar.

Alguns destes médicos acabariam por regressar aos hospitais públicos, mas trata-se de uma decisão que não era pacífica, já que se mantinha o risco de retaliação do regime, como assinalou à Associated Press um dos profissionais que integrou o movimento de desobediência civil: “Eu poderia ser preso pela junta a qualquer momento, caso voltasse ao hospital”, explicou este médico, sublinhando que prefere continuar a tratar doentes com meios próprios.

Junta nega aproveitamento da covid

Os militares negaram entretanto estar a impor um regime de selecção para os cuidados de saúde e apontaram os esforços desenvolvidos para a normalização do fluxo de oxigénio nos hospitais.

Numa manobra de propaganda do regime, o jornal estatal Global New Light of Myanmar publicava esta semana vários artigos destacando esses alegados esforços e, em particular, o que o jornal qualificou de impulso para robustecer a campanha de vacinação, a par do aumento nos fornecimentos de oxigénio.

Numa declaração à publicação, o general Min Aung Hlaing, líder da junta militar, apontava estarem a ser feitos esforços para garantir o apoio da Associação das Nações do Sudeste Asiático e de “países amigáveis” na luta contra a pandemia: “Esforços para garantir uma melhor saúde do Estado e do povo”, sublinhou.

Um cenário inteiramente diferente foi entretanto descrito por Tom Andrews, membro do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas em Myanmar. Segundo este perito independente da ONU, as forças governamentais birmanesas realizaram pelo menos 260 ataques contra pessoal e instalações médicas que resultaram na morte de 18 pessoas, tendo 67 profissionais de saúde sido detidos e estando outros 600 na condição de “procurados”.

No início da semana, Andrews lançava um apelo ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e aos membros da ONU para que insistissem num “cessar-fogo desta guerra covid”: “As Nações Unidas não podem dar-se ao luxo de ser complacentes quando a junta ataca impiedosamente o pessoal médico e quando a covid-19 se espalha sem controlo. Devem agir no sentido de acabar com esta violência para que médicos e enfermeiros possam prestar cuidados que salvam vidas e para que as organizações internacionais possam ajudar com fornecimento de vacinas e cuidados médicos”.

Pandemia descontrolada em Myanmar

Não havendo números sólidos sobre o programa de vacinação covid em Myanmar, acredita-se que apenas três por cento da população terá recebido até agora as duas doses, um número em linha com muitos países asiáticos e africanos, mas muito longe dos objectivos apontados pela Organização Mundial de Saúde.

Certo é que, após o afastamento de Aung San Suu Kyi, os hospitais enfrentaram fortes problemas de operacionalidade e o programa de vacinação abrandou até ao completo apagamento já esta semana. É neste contexto que Joy Singhal, chefe da delegação de Myanmar da Cruz Vermelha, aponta um escalar da covid “extremamente preocupante, em particular face à disponibilidade limitada de serviços de saúde e fornecimento de oxigénio”.

Uma catástrofe que apenas poderá ser debelada com uma acção pronta das autoridades: “Há uma necessidade urgente de mais testes, rastreios de contactos e vacinas covid para ajudar a conter a pandemia”, propugnou Singhal, alertando que “esta última vaga é um golpe amargo para milhões de pessoas em Myanmar que estão já a lidar com o agravamento das dificuldades económicas e sociais”.

Esta quinta-feira, Myanmar reportou mais 342 mortes e 5.234 novas infeções, com a média de mortes em sete dias por milhão de pessoas a subir para 6,29 – mais do dobro da taxa de 3,04 registada pela Índia no pico da sua crise, no último mês de Maio. Acresce ainda ser esta uma contabilidade muito precária, fruto da incapacidade de testagem e da ausência de relatórios independentes.

“Há uma grande diferença entre o número de mortes por covid-19 assumido pelo Conselho Militar e a realidade”, sublinhou à Associated Press um médico do Hospital Geral de Mawlamyine, quarta maior cidade do país. Falando sob anonimato por medo de represálias governamentais, este clínico garantiu à AP que “há muitas pessoas na comunidade que morreram da doença e cujos casos não puderam ser contabilizados”.

E uma perspectiva mais global dos perigos que representam situações como a que se vive em Myanmar surge nas declarações de Phil Robertson, subdiretor asiático da Human Rights Watch: “Ao permitir que a covid fique fora de controlo, a junta militar está a falhar ao povo birmanês, bem como à região [do Sudeste Asiático] e ao mundo, que podem ser ameaçados por novas variantes alimentadas pela propagação não controlada da doença em lugares como Myanmar”.

“O problema é que a junta [militar] se preocupa mais em agarrar-se ao poder do que em parar a pandemia”, lamentou Phil Robertson.
Tópicos
pub