54 mil anos. Homo sapiens terá chegado dez mil anos mais cedo a territórios de neandertais

Evidências arqueológicas da gruta francesa de Mandrin, no vale do Rio Ródano, reescrevem a pré-história, antecipando a chegada dos homens anatomicamente modernos ao atual território europeu cerca de dez mil anos antes do que se postulava até agora. A equipa de arqueólogos que investigou o abrigo argumentou que os dentes humanos de uma criança associados a ferramentas em pedra talhada encontrados correspondem à marca temporal de 54 mil anos, momento em que outros hominídeos, os neandertais, circulavam nas mesmas paragens.

Carla Quirino - RTP /
Escavação arqueológica na Grotte Mandrin Ludovic Slimak | Universidade de Toulouse

A comunidade científica está genericamente de acordo com várias cronologias estabelecidas para a evolução da espécie humana.

O homo sapiens surgiu em África há mais de 300 mil anos. Estes caçadores recoletores deram origem aos humanos anatomicamente modernos - de quem a atual espécie humana descende - e acabaram por se expandir para lá do Continente Africano. As marcas mais antigas conhecidas fora de África estão enquadradas entre 194 a 177 mil anos atrás e localizam-se em território israelita.

Na Europa, os primeiros vestígios situavam-se na barreira dos 45-43 mil anos, "com base em cinco restos dentários isolados de três locais italianos, Grotta Cavallo no sul da Apúlia, Riparo Bombrini nos Alpes da Ligúria ocidental e Grotta di Fumane nas Montanhas Lessini ocidentais", afirmam os especialistas.

Por sua vez, o outro grupo de hominídeos, os neandertais, surgiram na Europa há 400 mil anos e ter-se-ão extinguido por volta dos 40 mil anos. A Península Ibérica teria sido o último reduto neandertal com vestígios que rondam os 32 mil anos, na Caverna de Gorham em Gibraltar, segundo alguns investigadores.

Contas feitas, o período de coexistência entre os neandertais e o homem moderno teria sido relativamente curto.

Com a descoberta da equipa de investigadores liderada pelo arqueólogo Ludovic Slimak, da Universidade de Toulouse, a teoria da sobreposição temporal destes dois ramos humanos parece ter recuado dez mil anos.
Grotte Mandrin
O abrigo conhecido por Grotte Mandrin, localizado nas encostas do vale do Ródano, relevou-se uma janela para o passado quando trabalhos arqueológicos encontraram - entre nove fragmentos de dentes de hominídeos - um dente de leite associados a um conjunto de ferramentas líticas diferentes, dos testemunhos que são atribuídos aos neandertais.

Os investigadores conseguiram distinguir as várias camadas correspondendo-as às diversas ocupações de grupos humanos e Mandrin passou a "documentar a primeira ocupação alternada de neandertais e humanos modernos", recuando essa sobreposição para os 54 mil anos.

"Agora somos capazes de demonstrar que o homo sapiens chegou 12 mil anos antes do que esperávamos e essa população foi alternando por outras populações neandertais. Isto literalmente reescreve todos os nossos livros de história", afirma Ludovic Slimak.


Ludovic Slimak

Chris Stringer, especialista em pré-história do Museu de História Natural de Londres, diz que os novos dados desafiam a visão atual, assente na possibilidade dos homens modernos terem superado rapidamente os neandertais.

Em vez dos cerca de quatro mil anos de coexistência, o intervalo aumenta agora para 12 mil. "Não foi uma substituição da noite para o dia por humanos modernos", argumentou Stringer, ouvido pela BBC. "Às vezes os neandertais teriam vantagem, outras vezes seriam os humanos modernos a tê-la".
A camada E
Na estratigrafia do abrigo - na camada por de baixo da E - estão identificados fragmentos de dentes e instrumentos de pedra lascada correspondentes a 20 mil anos de ocupação Neandertal.

Na camada E, os materiais arqueológicos são totalmente diferentes e o fragmento do dente de criança com idade entre dois e seis anos está datado por um conjunto de análises, nomeadamente por radiocarbono: "dente único da camada E, uma coroa decíduo do segundo molar superior" aponta para 54 mil anos.


Fragmento de dente de leite que pode mudar a leitura pré-histórica do Homo sapiens | Ludovic Slimak

As camadas que se sobrepõe à E documentam que, cerca de dois mil anos mais tarde, a ocupação neandertal volta à gruta e deixa novos vestígios, até que cerca dos 44 mil anos os grupos humanos modernos regressam de vez.

O conjunto de de instrumentos da camada E revela que grupos humanos modernos "parecem ter grandes vantagens tecnológicas sobre os grupos neandertais contemporâneos" e a matéria-prima usada era de qualidade superior, claramente selecionada e trazida de longe, comparando com os artefactos das restantes camadas atribuídas aos neandertais.


Testemunhos em pedra lascada encontrados da camada Mandrin E

Muitos investigadores especulam sobre as formas das ferramentas líticas mais pequenas. Caso fossem pontas de seta, os humanos modernos teriam uma maior vantagem.

Stringer acredita na tese da organização: "Funcionávamos melhor em rede, os nossos grupos sociais eram maiores, estávamos a armazenar o conhecimento e a construir mais conhecimento".

Se uma tese inicial terá apoiado a possibilidade de os hominídios arcaicos terem sido extintos pelos homens modernos, o tempo de coexistência alargado poderá sustentar a hipótese de que terão sido antes "absorvidos pelo sapiens".

Para os autores deste estudo, colocam-se mais perguntas. Mas defendem que será fundamental continuar a investigar "para entender a natureza das interações entre neandertais e homens modernos e o que levou ao desaparecimento dos hominídeos arcaicos".
O caso português
O abrigo do Lagar Velho, no vale do Lapedo, em Leiria, começou a ser escavado no final de dezembro de 1998. Foi encontrado um enterro de uma criança com cerca de 27 a 25 mil anos. O esqueleto bem conservado estava deposto num leito de cinzas com adornos feitos com conchas perfuradas.

Os ossos apresentavam vestígios de cor ocre, possivelmente por terem sido envolvidos numa pele de animal tingida. A criança ficou conhecida pelo menino do Lapedo.

A escavação dirigida por Cidália Duarte e João Zilhão veio contribuir para o debate da miscigenação entre homens modernos e populações neandertais.


Cidália Duarte (2002)

As investigações da sequenciação do genoma neandertal vieram a confirmar que os dois grupos humanos cruzaram-se e não apenas como vizinhos. Nasceram crianças dessas interações, o que resultou na herança genética do homem do século XXI com uma percentagem de ADN neandertal.
Tópicos
PUB