8 de Março: como as operárias de Petrogrado desencadearam a revolução

por RTP
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A revolução russa de fevereiro não irrompeu graças ao impulso oculto de nenhuma conjura. Pelo contrário, os mais combativos revolucionários viviam um momento de circunspecção e desalento. Foram as operárias de Petrogrado que, inesperadamente, atearam o incêndio.

Cem anos depois, a revolução russa volta a ser objecto de acesos debates, que apenas estão a começar num ano marcado, de fevereiro a outubro, por efemérides do centenário.Uma forma mitigada da teoria da conspiração
O eminente historiador de direita Orlando Figes descreve o desencadeamento da Revolução de Fevereiro em artigo publicado no diário britânico The Guardian como largamente condicionado pela manifestação do Dia Internacional da Mulher, mas inicialmente pouco condicionado pelo carácter operário, classista e reivindicativo das manifestantes.

Segundo Figes, por volta do meio dia "havia dezenas de milhares, principalmente mulheres, a concentrarem-se na Perspectiva Nevsky, a principal avenida no centro da capital russa, Petrogrado, e as bandeiras começaram a aparecer".

Figes realça os slogans de carácter mais "patriótico" ("Pão para os filhos dos defensores da mãe pátria!"; ou "Ração suplementar para as famílias dos soldados!") e realça também os relatórios secretos da polícia que diziam haver "senhoras da alta sociedade, muito mais mulheres camponesas, estudantes do sexo feminino e, em comparação com manifestações anteriores, poucos operários".

Esta descrição é consistente com a análise de Figes sobre as causas motoras da revolução. O historiador minimiza a importância da espontaneidade popular, embora a admita, mas apenas para sublinhar que as manifestações de Petrogrado em 8 de março "tinham uma organização interna própria sob a forma dos membros anónimos da multidão que gritavam palavras de ordem".

Em todo o caso, Figes admite que a partir da tarde "o ambiente começou a mudar quando as operárias do subúrbio de Vyborg entraram em greve para protestar contra a falta de pão". E acrescenta: "Reforçadas pelos seus homens, elas engrossaram a multidão na Nevsky, em que se gritava: 'Pão!' e 'Abaixo o czar!'". A partir do fim da tarde, relata também, já havia 100.000 grevistas - homens e mulheres - e começaram os confrontos violentos com a polícia.
O impulso social que desencadeia a revolução
Um ponto de vista bem diferente é o de um especialista em História russa, Tsuyoshi Hasegawa, que já nos anos 1980 estudara a situação social em vésperas da Revolução de Fevereiro: nesse tempo era comum as operárias têxteis do subúrbio de Vyborg trabalharem até treze horas por dia, perderem várias horas ao frio em filas à espera de pão e terem os maridos ou os filhos nas fileiras do exército. A conclusão é óbvia: "Não era precisa nenhuma propaganda para incitar estas mulheres à acção".

No mesmo sentido, e citando Hasegawa, um outro especialista, Kevin Murphy, da Universidade de Massachusetts, explica em artigo publicado no site norte-americano Jacobin, que mesmo a esquerda mais radical estava a ser ultrapassada pelo desespero e pela ira do povo.

Murphy sublinha que os bolcheviques eram a força mais dinâmica entre os partidos de Petrogrado, mas não deixa de notar que até esse dinamismo empalidecia à vista do ambiente de revolta em gestação. Alguns sinais dessa viragem subterrânea notavam-se ao menos desde 9 de janeiro, quando mais de 140.000 trabalhadores entraram em greve para assinalar o 12º aniversário do "Domingo sangrento" - o massacre ordenado pelo czar contra uma procissão de pacíficos peticionários que vinham apresentar-lhe as suas queixas.

Perante a efervescência dos bairros operários, diz-nos Murphy, o líder operário bolchevique Benyamin Kayurov realizou um comício em 22 de Fevereiro no subúrbio de Vyborg. Importa notar que Kayurov tinha um passado militante muito activo e continuaria, nas jornadas revolucionárias dos dias seguintes e nos anos vindouros, a revelar-se um activista com grande combatividade e espírito de sacrifício.

Contudo, nesse comício, ele discursou às operárias de Vyborg pedindo-lhes que não entrassem em greve no dia 8 de março, considerada imprudente, e que dessem ouvidos às "instruções do partido". Mas no dia seguinte cinco fábricas têxteis paralisaram, como se as operárias nada tivessem ouvido de Kayurov. E este indignou-se por constatar que as próprias militantes bolcheviques tinham ignorado as directivas partidárias.

Os testemunhos que se foram conhecendo ao longo de várias décadas e os registos mais recentemente investigados por Murphy mostram que, não satisfeitas com paralisarem o trabalho, as operárias da fábrica Neva Thread sairam em manifestação e foram agitar os metalúrgicos de fábricas vizinhas, aos gritos: "Saiam! Parem o trabalho!".

E a audácia destas operárias foi tal, que se dirigiram mesmo à fábrica Erikson - onde trabalhava Kayurov. Este reuniu-se rapidamente com outros militantes - bolcheviques, mencheviques, "esse-erres" - e todos acabaram por aderir à greve das fábricas vizinhas. As operárias de Vyborg dirigiam o seu dirigente, arrastavam-no primeiro contra vontade para a greve, depois com crescente adesão e entusiasmo para a revolução.

Os relatórios da polícia referem multidões de mulheres e de jovens operários que reclamam pão e que desfraldam bandeiras vermelhas, arrancando-as das mãos dos homens com um argumento irrebatível: "Hoje é o nosso dia. Nós é que levamos as bandeiras". Nessa noite, uma reunião bolchevique do subúrbio de Vyborg completava a viragem de 180 graus que Kayurov já dera durante o dia e votava lançar o apelo a uma greve geral de três dias, com manifestação na Perspectiva Nevsky.

O partido mais radical da revolução russa precisara de aprender, com a audácia das operárias de Vyborg, como começar uma revolução no Dia Internacional da Mulher.
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