Ana Margarida de Carvalho regressa ao romance com olhar crítico sobre panorama literário
A escritora Ana Margarida de Carvalho regressa ao romance seis anos depois, com "A chuva que lança a areia do Saara", lançando um olhar crítico sobre o estado atual da literatura e da criação artística.
A multipremiada autora de obras como "Que importa a fúria do mar" e "Não se pode morar nos olhos de um gato" acaba de publicar um novo romance seis anos depois de "O gesto que fazemos para proteger a cabeça", e olha para trás recordando tempos difíceis.
Em entrevista à agência Lusa, a autora recordou que esteve "totalmente embrenhada" durante a pandemia de covid-19 num projeto coletivo que reuniu 26 escritores, artistas plásticos e ilustradores.
"Foi uma coisa muito louca, que me ocupava das nove às nove. Cada autor escrevia um capítulo por dia, uma espécie de cadáver esquisito literário", contou.
A pausa prolongada entre romances deveu-se, em parte, a essa dedicação e também a um contexto pessoal difícil.
"Se calhar o facto de eu estar desempregada há 10 anos, isso sim eu diria que passaram 10 anos, porque eu saí forçadamente do dia para o outro do sítio onde trabalhava, me obriga a ir seguindo coisas que me surgem, mas que dão algum retorno. É tão triste quanto isto".
Formada em Direito, Ana Margarida de Carvalho iniciou-se no jornalismo ainda durante o curso, escrevendo crónicas e crítica de cinema.
"O Direito não tinha nada a ver comigo. Acho que esse sentimento de `despertença` [que marca o tom do seu último romance], de não pertencer a lado nenhum, também vem daí", comentou, recordando que a transição para a ficção surgiu quando recebeu uma proposta para transformar um guião de cinema em livro.
Reconhecendo o valor simbólico dos prémios literários que recebeu, a escritora procura relativizar o seu peso, porque está consciente que o facto de ter escrito um bom romance não a habilita para escrever o seguinte.
"Os prémios foram muito importantes para mim, até porque eu nunca tive apoios nenhuns, sou uma escritora muito solitária, não pertenço a tribos, não pertenço a grupos, não tive nunca o apadrinhamento de um escritor mais velho, não tive", afirmou.
Além disso, os prémios consolidaram o seu trabalho e "obrigaram alguns que não queriam, que desviavam o olhar, a olhar para mim".
"O facto de ser jornalista também não me ajudou muito, porque alguns poderiam conhecer o meu nome, e quando se transita de uma coisa para outra, de uma profissão para outra, os jornalistas às vezes torcem o nariz, mas não hipervalorizo. Um prémio é uma conjunção de gostos, e há livros excelentes que não ganham nada e livros banais que ganham tudo", afirmou.
Ana Margarida de Carvalho considera que o atual panorama literário vive um empobrecimento de exigência e vê "com preocupação a `scrollização` da literatura", em que "o grau de atenção dos novos leitores está a diminuir, e aquilo que exigem do escritor é muito baixo".
"O escritor pode fazer uma coisa que já foi feita muitas vezes, e os leitores consomem como se fosse uma novidade", lamentou.
A autora contrapõe a essa tendência o seu próprio método criativo: "Eu faço exatamente o contrário. Complexifico, não simplifico. Acho mais interessante as coisas confusas, acho que se o leitor se irritar por não perceber exatamente onde está e demorar algum tempo a entrar dentro da personagem e dentro do enredo, se calhar depois o sentimento do reencontro é bom".
"Mas vejo com preocupação, o grau de atenção vai diminuindo, o grau de exigência, como eu disse, vai diminuindo totalmente", disse, referindo-se à velocidade da Internet e à dependência das redes sociais que conduzem os seus utilizadores através de algoritmos, numa "perda de controlo" que considera "assustadora".
A este propósito referiu o impacto da inteligência artificial na escrita, alertando para a facilidade com que hoje se pode "fazer um conto carregando apenas em poucas palavras, e fazer apenas uma revisão a seguir".
"É preciso muita capacidade de discernimento do leitor para não se deixar enganar. Não é a mesma coisa uma criação feita por uma máquina, que é uma coisa fantástica, mas que por outro lado é a aglutinação de tudo aquilo que está `online` e que já se fez, do que é produzir uma coisa que se pretende nova e com alguma exigência".
Com "A chuva que lança a areia do Saara", publicada pela Cavalo de Ferro, Ana Margarida de Carvalho retoma o romance com uma escrita densa e simbólica, marcada por personagens exaustas e comunidades em colapso --- temas que prolongam a reflexão sobre o desencantamento e a resistência presentes em toda a sua obra.