António Lobo Antunes fala da dificuldade de ler
António Lobo Antunes inaugurou quinta-feira o programa literário da 3ª Mostra Portuguesa em Madrid, participando num debate sobre a dificuldade de ler, o papel dos tradutores e o processo de começar um livro.
Perante uma plateia completa, na Biblioteca Nacional, o escritor partilhou cerca de 90 minutos de conversa, onde se falou de tudo e onde Lobo Antunes, traduzido há mais de uma década para o espanhol, usou esta língua para falar de si e da sua obra.
Um debate que saltou de recordações da leitura de poesia de Vítor Hugo, enquanto esperava pelos bombardeamentos na guerra em Angola, para a nova obra em preparação do escritor, centrada nas convulsões que se viveram em França, mas num espaço português.
"Tens obrigação de escrever para os que não têm voz, para os que não conseguem falar, as mulheres casadas, por exemplo, que são as mais infelizes do mundo", disse, ironizando: "Os fins-de-semana são horríveis para os casamentos. Em Portugal resolveram o problema com um jornal enorme, que vem em saco plástico".
Sobre o seu próprio começo como escritor, Lobo Antunes rejeitou o que diz ser a tentativa de muitos escritores citarem grandes nomes como referência e inspiração mentindo com a intenção de "aperfeiçoar o perfil para a eternidade".
No seu caso, a escrita começou quando se viu sozinho em casa, com tuberculose, aos cinco ou seis anos, e sob a influência do Mandrake e do Flash Gordon, e não impulsionado pelos grandes escritores "como o aborrecido Dickens", contou.
"Tinha um avô, num povo do norte que me mandava ao comboio ao meio-dia buscar o jornal. Ele abria-o logo na página da necrologia e ria-se de quem tinha morrido", recorda.
"Olha o idiota, morreu com 30 anos. Olha este, morreu com 50. Era o triunfo quotidiano do meu avô, até ao dia em que se descuidou e também morreu", disse.
Garantindo que escrever envolve mais trabalho que mistério, Lobo Antunes explicou que hoje já não faz planos, que simplesmente escreve, deixando que a mão o conduza.
"O difícil não é escrever, é corrigir. Não há profundidade, o que há são infinitas superfícies. Se consegues uni-las a todas, pode ser que tenhas feito um livro", afirmou, uma receita que considera que deve aplicar- se igualmente a quem lê.
"Um bom livro tem a sua própria chave e o seu manual de instruções", afirmou.
"Os livros de que gosto são os que me deixam doente e que termino como se estivesse em convalescença. Não tens que te preocupar em entender. O texto é mais inteligente (do que o leitor)", disse.
Para si, Lobo Antunes procura textos que "abram portas", especialmente as "que se querem manter fechadas", e livros em que "todas as páginas são espelhos".
"Um bom livro ajuda-te, ilumina-te, dá-te a beleza que não encontras em ti. Agora, por exemplo, já se começa a ler aos doentes enfermos. A arte pode ajudar a salvar-te a vida", comentou.
Lobo Antunes dividiu hoje o palco, e o debate, com o seu tradutor espanhol, Mário Merlino, Prémio Nacional de Tradução de 2004 pela obra "Auto dos Condenados", que explica o escritor português aos espanhóis desde 1995.
Motivo para questões sobre a tradução de obras literárias, que Lobo Antunes, no seu caso, garante não ler, ao mesmo tempo que defende que os tradutores são menosprezados e que o seu papel deveria ser mais dignificado.
Considerando que os seus tradutores "sofrem muito" e que é "impossível traduzir", Lobo Antunes afirmou que um bom tradutor consegue "transformar um livro mau num bom", podendo igualmente acontecer o inverso.
Como exemplo, recordou um momento com uma mulher norueguesa com quem fez amor: "Foi horroroso. No momento do orgasmo, devia-me estar a dizer coisas bonitas, mas parecia que estava na banheira a borbulhar. Como se traduz isso?", questiona.
"Ainda que o tradutor tenha génio, uma tradução é sempre uma foto a preto e branco de um quadro. No caso do espanhol e do português, por serem tão próximas, ainda é mais difícil", disse.
"O trabalho de um tradutor é muito mais criativo do que se pensa e os tradutores não são dignificados como deviam. Não compreendo porque não há mais prémios de tradução. É graças aos tradutores que podemos ler os grandes escritores que, de outra forma nos ficariam bloqueados", acrescentou.
Para Mário Merlino, que recordou os 10 anos de "casamento literário" com Lobo Antunes, a obra do escritor português vai mais além do que a simples busca de prazer na leitura, exigindo um leitor participante, agudo e desperto, "que se deixe hipnotizar pelas palavras".
"Caímos muitas vezes em programas de animação à leitura onde pensamos que tem que predominar o prazer. Isso é verdade, o prazer do texto, mas todo o prazer tem dificuldade. Ler não é fácil", disse.
O programa literário da mostra portuguesa continua no próximo dia 16, com um recital de poesia, coordenado por Gastão Cruz, e com os actores Luís Lucas, Luísa Cruz e Natália Luísa.