Em 2011 dava-se a conhecer ao mundo um achado arqueológico que revelou o cenário de uma das mais sangrentas batalhas entre duas tribos
residentes no atual Vale do Tollense, no norte da Alemanha.
Restos de crânios fraturados, ossadas de alguns cavalos, assim como
alguns utensílios bélicos de madeira, foram os primeiros sinais do que
viria a ser mais tarde um verdadeiro graal na descodificação
arqueológica do que terá sido uma grande batalha entre humanos.
As lesões dos crânios encontrados no leito do rio
desta região sugeriam um combate homem a homem numa batalha travada,
talvez, entre tribos rivais.
Nessa altura, há quatro anos, foram encontrados fragmentos de cerca de
100 corpos, dos quais oito sofreram lesões ósseas. A
maioria aparenta ser jovem.
As lesões incluíam danos causado por golpes maciços ou
pontas de flechas.
Os arqueólogos não encontraram nenhuma cerâmica, ornamentos ou
superfícies pavimentadas, o que poderia sugerir um túmulo coletivo
formal ou um ritual de enterro, daí a tese de batalha ser ainda mais
vincada.
Um acaso em 1996
Nos finais dos anos 90, um arqueólogo amador que passeava no vale de
Tollense, a cerca de 120 quilómetros a norte de Berlim, encontrou por
acaso um osso pertencente à zona superior do braço junto à margem do
rio.
Foi primeira pista para um dos mais importantes achados arqueológicos desta região junto ao mar Báltico.
O que este arqueólogo não adivinhava era que este osso, que continha cravada na
sua extremidade uma ponta de flecha de pedra,
era apenas a ponta do icebergue de uma das mais sangrentas batalhas
travadas naquele vale na Idade do Bronze.
A notícia rapidamente chegou a esta comunidade científica, levando os
arqueólogos a efetuar uma pequena escavação de teste. Que rendeu mais
ossos.
Todos os artefactos foram examinados e datados através de
radiocarbono, indicando que os mesmos datavam de um período pertencente
ao ano 1250 a.C. Estes achados teriam assim resultado de um
único episódio durante a Idade do Bronze.
Desde então as escavações continuaram, revelando mais dados e uma história mórbida.Novas escavações
O cenário aponta para uma batalha de grandes proporções entre dois grupos rivais há cerca de 3200 anos.
Dois exércitos, munidos de muitos homens, armas e alguns cavalos,
enfrentaram-se junto à travessia de um rio perto do Báltico, na
atual região do Tollense.
Restos de um confronto que não se podia encontrar em nenhum livro de História -
visto nesse período não existirem na Europa registos escritos que pudessem mencionar tal façanha épica.
Centenas de guerreiros terão travado ali uma luta brutal,
possivelmente num único dia, usando armas trabalhadas a partir
da madeira, pedra e bronze. Um metal que nos períodos históricos
seguintes se tornou uma ferramenta essencial da tecnologia militar.
Perante os achados dos últimos anos, os arqueólogos descrevem esta luta de forma brutal.
"Lutando para encontrar fundamento sólido nas margens do Rio Tollense,
uma fita estreita de água que flui através dos pântanos do norte da
Alemanha, em direção ao mar Báltico, os exércitos lutaram corpo a corpo,
mutilando e matando com facas, lanças, espadas e ferramentas de guerra,
todos os opositores que lhes faziam frente, na conquista territorial
barbara e sangrenta", lê-se num artigo publicado pela revista Science.
“Flechas com pontas de bronze e de pedra foram disparadas à
queima-roupa, sendo cravadas nos crânios e nos ossos de homens jovens.
Cavalos pertencentes aos mais altos guerreiros atolavam-se na lama das
zonas pantanosas que fatalmente eram lancetados pelo inimigo. Nem todos
tinham a coragem de continuar a luta e enfrentar o inimigo corpo a corpo
e fugiam. Mas a ferocidade do inimigo não tinha complacência sobre os
demais, obrigando-os a vergarem-se perante a brutal força inimiga e eram
chacinados pelas costas".
"Quando já poucos restavam e a luta estava no seu término, centenas de
corpos estropiados, esventrados e mutilados jaziam ao longo do vale
pantanoso. Muitos dos corpos foram despojados dos seus bens, balançando
outros nas águas rasas das lagoas existentes, ao sabor da brisa; outros
desapareciam, mergulhados e protegidos das pilhagens por um metro ou
dois de água".
"A turfa lentamente se estabeleceu sobre os seus ossos. Os séculos
passaram e o tempo encarregou-se de fazer esquecer a dura e sangrenta
batalha travada naquele campo junto ao mar Báltico".
Como os guerreiros se equipavam
Crédito imagem: Landesamt für Kultur e Denkmalpflege
Nas escavações foram encontrados os restos mortais de cinco cavalos no campo de batalha. Ossos que pertencem a uma raça pequena como o cavalo islandês. Os guerreiros podem ter usado estes animais para uso em batalha ou como cavalos de carga. Provavelmente os detentores destes animais pertenciam à parte de uma classe de guerreiros de elite que utilizava e carregava armas de bronze.
Crédito Imagem: Bill Price III/DR
Sabe-se que foram usadas espadas no campo de batalha de Tollense. Mas encontrar uma é mesmo um achado. Provavelmente porque elas foram recuperadas ou roubadas pelos saqueadores. Mas muitos dos ossos encontrados, tais como a costela humana, que a foto mostra, que foi cortada em dois lugares, sugere que os combatentes exerciam espadas.
Créditos imagens: Landesamt für Kultur e Denkmalpflege Mecklenburg-Vorpommern, Landesarchäologie, S. Suhr
As roupas dos homens que morreram na batalha de Tollense foram despojadas por saqueadores após a luta, ou então completamente deterioradas ao longo dos milênios. Mas outros achados raros de peças de vestuário sugerem que homens provavelmente usavam mantos e outras peças de vestuário envoltório como os kilt, bem como cintos de couro. Alguns poderiam também ter usado tampões ou elmos de bronze para proteção.
Créditos imagens: Russell Cheyne
Alguns dos guerreiros usavam anéis de ouro, em espiral, provavelmente usados para decorar o cabelo. Outros corpos encontrados da idade do Bronze seguram anéis semelhantes, bem como pentes, sugerindo que estes guerreiros teriam algumas posses e iam bem preparados (esteticamente) para o campo de batalha.
Crédito Imagem: Landesamt für Kultur e Denkmalpflege Mecklenburg-Vorpommern, Landesarchäologie, S. Suhr
- Setas letais (6)
Crédito imagem: V. Minkus - The Tollense Valley research project
Dez mil ossos em 12 metros quadrados
O cenário já descrito mostra que o conflito foi brutal, mas ganha contornos ainda mais dantescos se forem acrescentados outros elementos descobertos pelos arqueólogos.
Segundo relatos dos investigadores que estudam este local na Alemanha, só num espaço com 12 metros quadrados foram encontrados cerca de dez mil ossos, pertencentes aos homens que morreram na batalha no Vale do Tollense.
Estes restos mortais, entre os quais 20 crânios, foram encontrados de forma densa e compactada.
Os arqueólogos acreditam que os corpos ficaram alojados ou foram despejados em lagoas rasas, onde o movimento das águas, com o passar do tempo, misturou os ossos de indivíduos diferentes.
Pela contagem específica e singular dos ossos — crânios e fémures, por exemplo — os antropólogos forenses UG Ute Brinker e Annemarie Schramm identificaram um mínimo de 130 indivíduos, quase todos os homens, com idades compreendidas entre os 20 e 30 anos.
O número sugere a escala da batalha.
"Temos 130 pessoas, para já, e cinco cavalos. E só abrimos 450 metros quadrados", explica Detlef Jantzen, arqueólogo, durante a visita ao local de estudo de um jornalista.
"Se nós escavássemos toda a área, talvez viéssemos a encontrar 750 pessoas. Isso é incrível para a Idade do Bronze."
Brinker, antropóloga forense responsável por analisar os restos, diz que a composição química e a humidade do solo do vale Tollense preservou de forma perfeita os ossos.
"Podemos reconstruir o que aconteceu", diz ela, pegando numa costela com dois cortes minúsculos, em forma de V, de um lado.
"Estas marcas de corte na costela mostram que foi esfaqueado duas vezes no mesmo lugar. E nós temos um monte deles, e muitas das vezes encontramos várias marcas na costela mesma".
Com a digitalização dos ossos e usando um sistema de microscópico computadorizado no Instituto de Ciência dos Materiais em Berlim em conjunto com a Universidade de Rostock, conseguiu-se produzir imagens detalhadas, em 3D, das lesões apresentadas nas ossadas.
Estes recursos permitem aos arqueólogos identificar como foram feitos os cortes e com que tipo de armas, combinando as imagens de scanner das armas encontradas em Tollense.
Organização e preparação militar
Os escudos e armaduras corporais surgiram no norte da Europa séculos antes do conflito de Tollense e este tipo de equipamento implica diretamente uma classe de guerreiro.
"Se você luta com armadura e capacete e espartilho, precisa de treino diário ou então não se consegue mover", diz um dos antropólogos.
É por isso que, por exemplo, David, o pastor bíblico, se recusa a vestir armadura de bronze e capacete antes de lutar com Golias.
Em Tollense, os guerreiros que empunhavam bronze, montados em cavalos, podem ter sido uma espécie de classe oficial, enquanto os outros ostentavam as armas mais simples, como espadas, arcos e flechas.
Mas como é que tanta força militar converge num vale estreito de um rio no norte da Alemanha?
A antropóloga Kristian Kristiansen, da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, diz que este período parece ter sido de significativa mudança do Mediterrâneo ao Báltico.
"Na Grécia, a sofisticada civilização micénica entrou em colapso na época da batalha de Tollense; no Egito, os faraós vangloriavam-se de superar o povo do mar, carrascos de terras distantes derrubavam os hititas vizinhos".
E não muito tempo depois, na zona de Tollense, as fazendas dispersas do norte da Europa abriam caminho para assentamentos concentrados, fortificados, algo que apenas acontecia mais a sul.
"Por volta de 1200 a.C. há uma mudança radical nas sociedades e culturas. A batalha de Tollense encaixa-se perfeitamente neste período em que as guerra aumentam em todos os lugares".
Perante a escala e a brutalidade da batalha, bem como a presença de uma classe de guerreiros empunhando armas sofisticadas, os acontecimentos daquele dia estão ligados a conflitos recentes e mais familiares.
Para a arqueóloga dinamarquesa Helle Vandkilde, Tollense "poderá ser a primeira prova de uma viragem na organização social e da guerra na Europa".