Artistas expõem carne em decomposição e supreendem bairro de Alfama

Vida, larvas, moscas e morte. A associação pode parecer bizarra, mas é o tema de uma peça composta por uma perna de carneiro em decomposição, exposta numa nova galeria de arte em Alfama, que surpreende a população do bairro típico lisboeta.

© 2007 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A. /

"Isto é uma exposição? Ó meu Deus!", afirma Guilherme, merceeiro do bairro.

"Isto" é um cubo de acrílico que contém uma perna de carneiro a ser decomposta por larvas e varejeiras, com um copo de vidro com água ao lado, uma peça colocada à entrada da galeria e que pretende representar a vida e a morte.

"Life" (vida) é o tema da exposição, mas o visitante é também confrontado com o seu contrário, a morte.

"Flie" - que joga com as mesmas letras de "life" e tem, em inglês, o som da palavra "mosca" ("fly") - representa esta antítese, materializada numa outra peça da exposição, um conjunto de quadros em que moscas mortas, coladas à tela, assumem protagonismo.

O jogo de palavras - "Life" e "Flie" - não é inocente.

"Nós, humanos, estamos sempre a matar as moscas. Elas representam a morte", explica à Lusa "Fly", um dos dois artistas que criaram a exposição, que pretende levar o observador a pensar na morte e consequentemente na vida.

"A vida só tem sentido se houver morte", salienta.

A galeria abriu portas na Rua dos Remédios no início de Setembro, estando prevista a sua abertura oficial em Novembro, altura em que as peças expostas estarão disponíveis para venda.

Até lá, indicou o artista inglês "Fly", todos são bem vindos a entrar neste espaço para ter uma ideia daquilo que será a exposição.

Nascido em Londres, "Fly" prefere ocultar a sua verdadeira identidade, mas este inglês cinquentenário não se encontra sozinho neste projecto.

"Pi" (nome representativo do símbolo matemático) é o seu sócio na galeria, e também prefere não revelar a identidade.

Pintor e escultor, "Pi", irlandês com cerca de 40 anos, com as mãos enegrecidas por esculpir uma madeira negra e milenar da sua terra-natal, explica que esse trabalho também representa a vida e a morte.

"Esta madeira tem cinquenta mil anos, já foi uma árvore, já foi viva... e agora está morta", adianta.

Ambos viajaram e expuseram as suas obras em vários países da Europa, mas Portugal e Lisboa acabaram por ser o seu último destino.

Vêem os portugueses como gente "calma" e "amigável", e quando interrogados sobre se têm uma mente mais fechada em relação a outros povos que conheceram, respondem que "não".

A decisão de abrir a galeria em Lisboa é justificada com a maior facilidade de entrar no meio cultural, face a outras capitais europeias.

Moscas, larvas e carne putrefacta podem repugnar quem por ali passa, mas mais importante que tudo, sublinha "Pi", é que "não esquecerão o que viram", o que obrigará sempre as pessoas a reflectir sobre a vida e a morte.

Entre a população, as opiniões sobre a obra dos dois artistas divergem, mas a curiosidade parece ser generalizada entre os moradores de Alfama.

Rosário, moradora, diz que olha "sempre para lá, a ver se lá está a mesma coisa".

Confessa que se assustou a primeira vez que viu a obra, que lhe "parecia um chispe", mas depois ouviu dizer que "era um osso de presunto cheio de bichos".

Agora até já brinca: "Os bichinhos estão fechadinhos na gaiola, não fazem mal a ninguém".

Para João Antunes, biólogo e funcionário numa empresa de percursos pedestres, a exposição "é engraçada, é uma arte feita pelos animais, eles estão ali como personagens, é uma peça de arte viva".

"São os animais que actualizam a obra de arte", afirma.

Ivo, trabalhador no bairro, viu de passagem a obra, que diz ter achado "arrepiante", apesar de defender "a diferença e a originalidade".

"Aquilo faz-me um bocadinho de confusão. Uma varejeira... cultura", ironiza.

Quando confrontado com a reacção dos moradores, "Pi" é lacónico na resposta.

"Isso não me interessa. Arte é mesmo assim", afirma, ao lembrar que o conceito de arte é subjectivo, nunca sendo possível agradar a todos.

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