Autora do livro "Cai a noite em Caracas" diz que quer ajustar contas com o passado

por Lusa

A escritora venezuelana Karina Sainz Borgo disse hoje à agência Lusa que escreveu o romance "Cai a noite em Caracas", porque tinha de ajustar contas com o passado.

"Quero explorar o tema da morte e da memória. Quero construir um ciclo de livros que me permita acertar contas com `os meus mortos` da maneira mais elegante e literariamente possível", disse Karina Sainz Borgo, 37 anos, acrescentando que evitou tratar no romance a atualidade venezuelana de forma panfletária.

"A literatura que me interessa é a que cria problemas e mostra os problemas. Este livro é uma carta de amor ao país, mas eu nunca digo que a Venezuela era uma maravilha, sempre disse que era um país narcisista e que tinha debilidades cosméticas. Eu não estou a dizer: `coitados de nós`. A verdade é que não soubemos ver o que estava para vir", afirma, referindo-se à história recente da Venezuela.

O livro "Cai a noite em Caracas" conta a história de uma mulher cercada de memórias, mortos, pobreza e violência, que tenta fugir do país apoderando-se da identidade de uma emigrante de origem espanhola.

Paralelamente, a autora usa as circunstâncias sociais e políticas construindo uma Venezuela "fantasmagórica" numa história "repleta de alegorias", porque, afirma, podia ocorrer noutro local qualquer "onde se passem coisas semelhantes".

"O poder do governo é uma presença, uma força que está por todas as partes. Quis construir personagens ambivalentes em que os verdugos também são vítimas, de certa forma, e a personagem central termina como um verdugo. Não mata, mas também não ajuda", explica, sublinhando que os que sobrevivem sentem-se sempre culpados e que, por isso, escreve "sobre fantasmas" e sobre os vestígios de um país que já não existe.

"Sempre senti uma sensação de culpa por me ter ido embora. Mas eu vim-me embora há 13 anos, não porque me obrigaram, mas porque o país já não me reconhecia", afirma Sainz Borgo, residente em Espanha, e que encara a situação que se vive na Venezuela com muita preocupação.

"O que se passa hoje na Venezuela é uma tragédia, um inferno. É uma sociedade prisioneira. É um ex-país. Não há medicamentos, não há luz, não há água", lamenta a escritora alertando para a crise humanitária, cada vez mais grave.

"Estive na Colômbia no mês passado e estive na fronteira para ver o que está a acontecer. Há coisas muito graves relacionadas com violência política no meu país. Eu confirmei com várias organizações com quem mantenho contacto, que crianças de 10 anos são presas e que, num hospital, morreram oitenta doentes, porque não havia energia elétrica", afirma.

Para a escritora que começou como jornalista em Caracas, a "presença dos Estados Unidos" parece-lhe "tremendamente indesejável" e acompanha com atenção os esforços do Grupo de Lima, mas considera que a posição da Europa está a claudicar.

"Aquilo não é um conflito, é uma ditadura com vinte anos. Há grupos armados mandados pelo governo para reprimir qualquer manifestação popular, porque quer a todo o custo evitar uma revolta social. Depois temos a polícia política e depois ainda a delinquência, porque não há dinheiro", frisa a autora sobre o "impasse" que se vive no país.

"Gostava de saber qual é a solução, creio que ninguém tem a solução e não saber fazer oposição é também um sintoma das feridas provocadas pelo poder. As pessoas não sabem como opor-se. Uma democracia que não sabe defender-se é uma democracia débil, e eu tenho a sensação de que a democracia venezuelana não soube defender-se e não aprendeu a defender-se", conclui.

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