"Caim": Do relato bíblico à critica do Livro Sagrado
Está instalada nova polémica a propósito de mais um livro do prémio Nobel da Literatura, José Saramago. O autor de "Caim" afirma a propósito da apresentação mundial do livro que "a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana". Operação de Publicidade acusa o porta-voz da Conferência episcopal, "visão unilateral" diz teólogo.
"Caim" é o último livro do único português laureado com o prémio Nobel da literatura. Teve apresentação mundial ontem em Penafiel, numa sessão integrada no festival literário "Escretaria 2009" que homenageia o autor de "Memorial do Convento"
Saramago falou durante uma hora e meia sobre o seu livro em que regressa à religião como tema contando de forma jocosa e irónica a história de Caim.
"Não é que este livro seja mal comportado, mas é, sem dúvida uma insurreição, um apelo a que todos se animem a procurar ver o que está do outro lado das coisas", disse o escritor.
De acordo com o Velho Testamento, Caim terá sido o filho primogénito de Adão e Eva, que matou Abel, seu irmão mais novo, num acesso de ciúmes, após verificar que Deus mostrara preferência por este.
"Nada disto existiu, está claro, são mitos inventados pelos homens, tal como Deus é uma criação dos homens. Eu limito-me a levantar as pedras e a mostrar esta realidade escondida atrás delas", afirmou o escritor.
"Na Igreja Católica não vai causar problemas porque os católicos não lêem a Bíblia, só a hierarquia, e eles não estão para se incomodar com isso. Admito que o livro possa incomodar os judeus, mas isso pouco me importa", disse o Nobel.
Para além da polémica do livro, Saramago aprofunda ainda uma outra polémica quando fala sobre a Bíblia, livro sagrado dos católicos.
"Sobre o livro sagrado, eu costumo dizer: lê a Bíblia e perde a fé!", diz o escritor. "A Bíblia passou mil anos, dezenas de gerações, a ser escrita, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável. É uma loucura!", afirma o Nobel da Literatura de 1998, para quem não existe nada de divino na Bíblia, nem no Corão.
"O Corão, que foi escrito só em 30 anos, é a mesma coisa. Imaginar que o Corão e a Bíblia são de inspiração divina? Francamente! Como? Que canal de comunicação tinham Maomé ou os redactores da Bíblia com Deus, que lhes dizia ao ouvido o que deviam escrever? É absurdo. Nós somos manipulados e enganados desde que nascemos!" afirmou.
Saramago relembra que "as guerras de religião estão na História, sabemos a tragédia que foram".
"O teólogo Hans Kung disse sobre isto uma frase que considero definitiva, que as religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros. Só isto basta para acabar com isso de Deus", afirmou.
Salientou ainda que "no Catolicismo os pecados são castigados com o Inferno eterno. Isto é completamente idiota!".
"Nós, os humanos somos muito mais misericordiosos. Quando alguém comete um delito vai cinco, dez ou 15 anos para a prisão e depois é reintegrado na sociedade, se quer", disse.
"Mas há coisas muito mais idiotas, por exemplo: antes, na criação do Universo, Deus não fez nada. Depois, decidiu criar o Universo, não se sabe porquê, nem para quê. Fê-lo em seis dias, apenas seis dias. Descansou ao sétimo. Até hoje! Nunca mais fez nada! Isto tem algum sentido?", perguntou.
Para o polémico escritor "Deus só existe na nossa cabeça, é o único lugar em que nós podemos confrontar-nos com a ideia de Deus. É isso que tenho feito, na parte que me toca".
Operação de publicidade, acusa Conferência Episcopal Portuguesa
O porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), Padre Manuel Morujão, classificou o novo livro de José Saramago como uma "operação de publicidade" considerando que não fica bem a um Prémio Nobel entrar em tom de "ofensa".
Para o Padre Manuel Morujão e falando sobre o livro afirma que "parece-me ser uma operação de publicidade porque dizer bem da Bíblia, os grandes e os sábios o dizem como livro religioso, mas também como livro cultural. Ter uma opinião diferente e dizer que é um livro de maus costumes e onde se dizem coisas que não têm sentido nenhum causa impacto".
O porta-voz da Conferência Episcopal considera que, "um escritor da craveira de José Saramago deveria ir por um caminho mais sério". Poderá fazer as suas críticas, mas entrar num género de ofensa não fica bem a ninguém, sobretudo quem tem um estatuto de prémio Nobel", referiu.
Ler o livro "Caim" não é uma prioridade para este Padre. "Não está nas minhas prioridades a leitura desse livro, porque pela apresentação que aparece na Comunicação Social acho que é de alguém que não entende os géneros literários da bíblia", justificou.
Saramago fez leitura "completamente unilateral" da Bíblia
O teólogo Anselmo Borges afirmou que José Saramago fez uma leitura "completamente unilateral" da Bíblia, que tem, como qualquer livro, de ser lida como um todo para se apreender o sentido, que é o da salvação.
Sacerdote católico, teólogo e filósofo, professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de Coimbra, Anselmo Borges alerta: o escritor "só apresentou um dos aspectos da Bíblia".
"Na Bíblia também se encontra o que Saramago disse: um apelo à violência, à crueldade e à imoralidade e por vezes surge um Deus cruel, mesquinho, ridículo e mesmo imoral", referiu Anselmo Borges.
Mas lida no seu todo, a Bíblia "é a grande resposta à pergunta ‘'quem é que tem salvação para a Humanidade?'' A resposta é Deus".
O teólogo recorre a Ernst Bloch, um filósofo ateu, comunista e marxista, professor na Universidade de Leipzig, "um camarada seu" (de Saramago), para lembrar que sublinhou a importância da Bíblia, sem a qual, dizia, não se podia compreender nada da cultura.
"Bloch, que teve problemas com o regime comunista da Alemanha Oriental, tendo sido forçado a deixar o país e ensinar na Universidade de Tubingen, dizia mesmo que a Bíblia é o maior livro de esperança para a Humanidade", acrescentou.
"A Bíblia foi escrita ao longo de mil anos porque relata a relação da Humanidade com Deus, o modo como os homens foram tomando consciência de Deus", explicou.
"E repare-se que a Bíblia termina com Jesus Cristo a dizer 'amai os vossos inimigos'. Isto é, Deus é amor e nós, Humanidade, precisamos de amor", acentuou.