"Com os pés na terra e as mãos no mar". Do Neolítico à atualidade de Quarteira em livro e exposição
"Um hino a Quarteira". Assim começa o livro com quase 700 páginas que juntou cerca de 40 investigadores e a sociedade civil quarteirense para desvendarem a presença humana dos últimos seis milénios no território da freguesia costeira algarvia. O tomo "Com os Pés na Terra e as Mãos no Mar: 6000 anos de História de Quarteira" foi lançado no início de junho, no âmbito das comemorações do 26.º aniversário da elevação da localidade a cidade. Adotou o mesmo nome da exposição patente na Lota de Quarteira e apresenta os resultados mais recentes das investigações pré-histórica, arqueológica, geológica e histórica da região.
Foi na localidade da Retorta que se encontrou um dos testemunhos mais antigos da região de Quarteira.
É um vaso cerâmico com quase 40 centímetros de altura, de “forma ovoide (bojudo), de bordo alto e quatro pequenas asas”, cuja datação aponta para o quinto milénio a.C., no período Neolítico. Esta peça arqueológica com cerca de 6.500 anos marca o início do intervalo de tempo da viagem que o livro “Com os Pés na Terra e as Mãos no Mar: 6000 anos de História de Quarteira” abrange.
Monografia “Com os Pés na Terra e as Mãos no Mar: 6000 anos de História de Quarteira”. Muitos são os testemunhos que ilustram as diversas etapas da presença humana na região, que vão desde a pré-história à marca romana e islâmica, conquista cristã e povoamento, passando pela constituição do reguengo por D.Dinis (séc. XIII), a formação do morgado (1413), a criação da freguesia (1916) chegando a 1999, com a elevação de Quarteira a cidade | Carla Quirino - RTP
O vaso cerâmico do Neolítico junta-se a centenas de outros materiais, fotografias, mapas, documentos e testemunhos que, ao longo de 692 páginas, os autores apresentam o conhecimento científico “mais aprofundado possível” sobre as comunidades humanas que se instalaram, viveram, trabalharam e construíram vivências ao longo de seis milénios na região da atual freguesia de Quarteira. Na outra ponta do intervalo cronológico está 1999, ano em que a vila quarteirense foi elevada a cidade.
A investigação multifacetada envolveu cerca de 40 especialistas, entre geólogos, geógrafos, historiadores e arqueólogos, em torno das coleções do Museu Municipal de Loulé. Contou ainda com o contributo de testemunhos e objetos da comunidade local.
Este conjunto de dados permitiu a constituição de “uma retrospetiva da história local” que aborda não só a área urbanizada de Quarteira “mas também o território natural que está compreendido entre várias fronteiras geográficas” explica o investigador Rui de Almeida à RTP, arqueólogo municipal que integra a equipa responsável pela conceção e construção tanto da exposição como da coordenação editorial do catálogo “Com os Pés na Terra e as Mãos no Mar: 6000 anos de História de Quarteira”.
Assim, o território onde se fixa esta investigação vai desde: "A nascente, a Ribeira de Carcavai que marca a divisão com zona da Ria Formosa, a norte, a primeira linha de cerros que está compreendida entre a estrada nacional 125 e a Via do Infante e a poente, a Ribeira de Quarteira que é a principal linha de água estruturante do território – isto faz uma espécie de um semicírculo" relativamente à costa descreve este investigador.
Denominador comum entre comunidades ao longo de 6.000 anos
Rui de Almeida sublinha que este título surgiu de algo que pretendia “definir como era a vivência naquele ambiente e território” e nesse conceito deveria ser possível “descrever o que era ser uma pessoa de Quarteira.
"Portanto, para onde quer que nós olhássemos, nós víamos sempre alguém ligado à terra com os pés bem assentes nela (…) e com as mãos sempre ligadas ao mar – gente trabalhadora à procura das várias formas de sustento – por isso pareceu-nos que esta ideia coroava todos os pontos fortes e todos os sentimentos que queríamos retratar com a vivência daquele território”, sustenta o investigador.
Ou seja, para além da exploração dos recursos marinhos, as comunidades estabelecidas em terra também se dedicam à "componente agrícola" até porque "à volta, essas zonas são compostas por bons terrenos agrícolas, férteis. E na história mais recente é esse mesmo território que vai também servir de sustento a partir do que é o desenvolvimento turístico", acrescenta.
Catálogo e exposição na antiga Lota de Quarteira. "É muito mais que um catálogo. No fundo foi escrever e fazer uma atualização, ou mais ambicioso ainda, fazer um ponto de situação, à data presente, em termos de conhecimento de todas estas épocas desde a pré-história até ao presente" argumenta Rui de Almeida | Carla Quirino - RTP
Papel da investigação museológica: a importância das coleções
Para Rui de Almeida, a exposição visitável na antiga Lota de Quarteira antecipava uma edição em monografia pois está arrumada como se de um livro se tratasse: "De um ponto de vista gráfico parece que estamos dentro de um livro de pé, como se estivéssemos num álbum de recortes de memórias – que são de há 20 anos até há 6.000 anos, onde vamos passando páginas e vendo esse fluxo de informação, e imagens".
A valorização do património material e imaterial desenvolvido através de políticas públicas na área da museologia impressa nesta monografia, foi um dos pontos que a diretora da Rede Portuguesa de Museus, Fátima Roque exaltou, sublinhando a importância da investigação em museus e dos seus acervos e na partilha com a comunidade.
"A investigação museológica, sobretudo em museus de território como é o Museu Municipal de Loulé, pode e deve ser encarada como alavanca para tantas outras linhas de pensamento e estudo partindo desse embrião gerador de conhecimento que são sempre as coleções" que preservam e salvaguardam o património, realça Fátima Roque.
Para cumprir esta missão, "não basta expor, é preciso conhecer, estudar, questionar, interpretar". A investigação museológica tem ainda outra dimensão – "liga as pessoas às suas raízes", deixa claro a responsável da Rede de Museus.
"É na qualidade de agente facilitador de múltiplas perspetivas e interpretações que o museu se assume também como tradutor e embrião para uma cidadania ativa e interventiva", acrescenta.
Fátima Roque insiste que a investigação em museus tem um papel de "motor que transforma uma simples coleção em conhecimento estruturado, que confere sentido aos objetos, que os insere em narrativas coerentes e que nos permite compreender o mundo à nossa volta – ontem, hoje e amanhã".
Na mesa do Mar, as ânforas com conchas são doações de pescadores | Carla Quirino - RTP
Participação da população
Para este projeto, a comunidade civil, a par dos investigadores, contribuiu de várias formas. Rui de Almeida explica: "Tivemos sempre um papel de escuta – uma intenção de ouvir as pessoas. Sobretudo sobre a história recente os mais velhos contribuíram com o conhecimento detalhado que tinham do território".
Para este projeto, a comunidade civil, a par dos investigadores, contribuiu de várias formas. Rui de Almeida explica: "Tivemos sempre um papel de escuta – uma intenção de ouvir as pessoas. Sobretudo sobre a história recente os mais velhos contribuíram com o conhecimento detalhado que tinham do território".
E para retratar essas vivências, estas gentes da terra falaram em objetos que tinham guardados acabando muitas vezes por doar, acrescentando e enriquecendo o espólio exposto.
A narrativa que conduz esta exposição e a monografia editada permitiu à comunidade juntar-se e apresentar-se também como fonte de informação "potenciando discursos positivos" com o "outro a sentir-se sujeito ativo e não meramente contemplativo, ou seja, [esta população] passou a agente e não apenas visitante", descreve Fátima Roque.
"A exposição e este catálogo são prova disso – assentes no trabalho científico feito a várias mãos e com a participação ativa da população de Quarteira - e mostram-nos como é que a investigação pode ser inclusiva, afetiva e socialmente relevante", continua.
Para Fátima Roque, "este projeto é um legado de memória e um convite à valorização identitária de Quarteira" e demonstra ainda "que a história não é estática nem distante, é partilhada, é questionada, é feita por todos".
O investigador Rui de Almeida relembra que ainda há muito trabalho pela frente porque "nós não temos o mesmo conhecimento e a mesma quantidade de dados" relativamente às várias presenças humanas. "É essa descoberta – do lado menos conhecido – que acaba por ser a grande novidade" e o "que ainda podemos conhecer, é o nosso horizonte".
Recuo da linha de costa, uma constante
A erosão e o recuo da linha de costa é também um assunto tratado na monografia. De acordo com os investigadores, entre 1971 e 2001 esse recuo foi de 22,7 metros na área do Forte Novo, provocando o desmoronamento desse equipamento militar pela falésia abaixo até à praia.
A erosão e o recuo da linha de costa é também um assunto tratado na monografia. De acordo com os investigadores, entre 1971 e 2001 esse recuo foi de 22,7 metros na área do Forte Novo, provocando o desmoronamento desse equipamento militar pela falésia abaixo até à praia.
Materiais Arqueológicos do sítio costeiro romano de Loulé Velho e do Mar de Quarteira | Carla Quirino - RTP
No mesmo troço de costa, junto à ribeira de Carcavai, encontra-se o sítio arqueológico romano de Loulé Velho. Aqui, para além do estudo arqueológico, o sítio, quase desaparecido, é um dos exemplos locais que também testemunha a destruição devido ao recuo de linha de costa.
Neste caso, a maioria dos materiais arqueológicos (mais de quatro mil fragmentos e peças inteiras) que compõe o acervo do sítio romano é proveniente de doações de pessoas que encontraram peças na praia sempre que o mar destruía as arribas onde a comunidade romana esteve implantada entre os séculos I e VI, sublinham os investigadores.
"Herança que estava por escrever"
O investigador Rui de Almeida relembra que ainda há muito trabalho pela frente porque "nós não temos o mesmo conhecimento e a mesma quantidade de dados" relativamente às várias presenças humanas. "É essa descoberta – do lado menos conhecido – que acaba por ser a grande novidade" e o "que ainda podemos conhecer, é o nosso horizonte".
O turismo que veio a partir dos anos 50 trouxe com ele uma outra camada de história “destrutiva", relembrou Vitor Aleixo, presidente da Câmara Municipal de Loulé. "E as memórias afetivas dos quarteirenses ficaram soterradas depois de tanto empreendimento turístico e com tanta coisa a ser construída a uma velocidade vertiginosa", acentuou.
"A comunidade quarteirense tinha uma herança que não conhecia, tinha uma herança que estava por escrever e por contar". Porém, ao mesmo tempo "muitos homens e mulheres quarteirenses tiveram a inteligência de guardar objetos, mapas, chumbadas, desenhos – e foi graças a essas pessoas que a exposição e agora o livro, recupera essa herança". E destaca: "Estas pessoas são os guardiões do património".

Imagem de Nossa Senhora da Conceição, uma das raras estátuas produzidas em terracota policromada e dourada | Carla Quirino - RTP
Vitor Aleixo acredita que "este livro marca um ponto de viragem na memória coletiva e na história e autoestima na povoação e na vida dos quarteirenses" e afirma: "Esta história que vos deixamos é um hino a Quarteira e às gentes, ao longo de 6.000 anos".