"Como se toda a vida tivéssemos sido unha e carne". O curioso reencontro de Saramago com o meu avô - Crónica

por Joana Raposo Santos - RTP
José Saramago faria esta quarta-feira 100 anos. À data do seu centenário, é o único vencedor português do Nobel da Literatura. Foto: João Francisco Vilhena via Fundação José Saramago

A 7 de março de 1994, José Saramago entrou num táxi em Lisboa sem imaginar que a viagem até à editora, cuja morada deu ao motorista, seria um momento de evocação de memórias de infância e da terra onde tinha nascido. Em entrevista à RTP, a mulher do escritor - que nesse dia o acompanhava - conta como Saramago gerava "correntes de afeto" e valorizava a gente "levantada do chão".

“Entro num táxi para ir à editora e o motorista pergunta-me (outra vez) se eu sou quem ele julga. Respondo-lhe que sim, longe de adivinhar o que estava para acontecer”, escreveu o até agora único Nobel português da Literatura no segundo volume dos Cadernos de Lanzarote.

O taxista era Manuel Veríssimo Nunes, meu avô, conhecido desde criança e até à velhice como Manuel Campestre – alcunha com que se apresentou a Saramago e que refletia as raízes ribatejanas e as origens modestas partilhadas pelos dois homens.

O escritor foi assim surpreendido pelo conterrâneo e contemporâneo, nascido na Azinhaga apenas dois anos depois de Saramago, também ele filho de camponeses. “Julgando pela idade que aparentava, poderia muito bem ter sido um dos meus companheiros de jogos infantis e descobertas adolescentes”, relatou o autor.

“O dever e o gosto mandavam que me interessasse pela vida de um patrício que tanto parecia saber da minha”, continuava. “Perante a risonha curiosidade de Pilar, passámos à evocação dos velhos tempos”.
“Como se durante toda a vida tivéssemos sido unha e carne”
José Saramago e Manuel Campestre – que viria a falecer em 2019, com 94 anos – trocaram “umas quantas memórias comuns, ainda que não coincidentemente vividas” antes de o taxista dar a conhecer ao escritor um episódio no qual entrava o avô paterno do último: João Saramago.

“Foi o caso que este misterioso avô (misterioso, digo eu, porque se contam pelos dedos as vezes que falei com ele) era guarda de uma grande propriedade, pelo que, sempre que havia algo para defender da cobiça dos furtivos, tinha de pernoitar numa cabana no meio do campo”, conta o Nobel. Os Cadernos de Lanzarote, ilha das Canárias para onde Saramago foi viver em 1993, relatam em formato de diário os pensamentos do autor entre esse ano e o de 1998.

João Saramago, “por preguiça de levantar-se a meio da noite para verter águas”, usava uma cana comprida “que atravessava o enramado da cabana e por ela, aliviado, fazia escorrer para fora a mijada”.

Conta o escritor que Manuel Campestre, então criança, quando deu pela habilidade do guarda, “tapou o orifício de saída da improvisada conduta e o resultado foi ter-se mijado todo o João Saramago quando a cana começou a devolver à origem o que já não lhe cabia dentro”.

"Os rapazes são uma peste, nem o diabo quis nada com eles", comenta Saramago no livro, sem saber que Manuel continuava, até na velhice, a pregar partidas com a dedicação de uma criança.

“Este levou uma sova do pai, a quem o ofendido e molhado patriarca se foi queixar, e nós, aqui, sessenta anos mais tarde, dentro de um táxi em Lisboa, rimos a bom rir com esta antiga e saborosa história, de um tempo mítico que a distância, milagrosamente, parecia ter tornado inocente”.
Livro oferecido por Saramago ao meu avô Manuel. “Ao Manuel Campestre, que está neste livro – com um grande abraço do José Saramago. 6 de Julho de 95”

Quando chegaram à editora, José Saramago ofereceu a Manuel Campestre dois livros e autografou-os, a pedido do taxista. “E ele, por sua vez, não quis que eu lhe pagasse a corrida”, escreveu. Mais tarde voltariam a cruzar-se e mais livros o escritor ofereceria ao conterrâneo, sempre com dedicatória.

“Despedimo-nos com um abraço fortíssimo, como se durante toda a vida tivéssemos sido unha e carne”. Assim termina a entrada de 7 de março de 1994.
Pilar del Río: “Gente levantada do chão, isso é que era importante para ele”
Confrontada com esta memória, Pilar del Río conta que Saramago era um homem que gostava de falar com gente desconhecida, gerando facilmente “correntes de afeto”.

Saramago era uma pessoa que gerava muitas correntes de afeto. Ia ao México e era como se sempre lá tivesse vivido, ia à Argentina e estava com as mães de filhos assassinados. E também havia uma corrente de familiaridade. Ele tinha essa capacidade de se pôr no lugar do outro. E se calhar nunca se colocava no lugar do triunfador”, conta à RTP.

“Isso era barulho para ele. Mas punha-se no lugar de colegas, de gente levantada do chão”, recorda. “Gente levantada do chão, isso é que era importante para ele”.

Além disso, Saramago acreditava que o leitor era tão heroico como o escritor. “Havia uma relação de respeito mútuo”, explica a presidenta da Fundação com o nome do autor.

Questionada sobre de que forma o marido retribuía o carinho que a gente lhe mostrava, como aconteceu com Manuel Campestre há 28 anos, Pilar responde que Saramago retribuía, também, ao partilhar.

“Escrevia porque partilhava as suas dúvidas, as suas inquietações, o que tinha por dentro. O seu pensamento, a sua emoção”. Gostava de partilhar e era por isso que escrevia. “Para partilhar com outras pessoas”, diz Pilar.

A autora espanhola relembra ainda como o marido ficava “horas e horas” a assinar livros a filas de pessoas, algo que conta também no seu recente livro A Intuição da Ilha. “Ele dizia: se eu entro nas casas das pessoas e elas ficam horas e horas a ler os meus livros, eu não havia de ficar umas horas a assinar livros? Claro que sim”.
Azinhaga, a terra natal onde regressou no final da vida
Saramago manteve durante vários anos uma relação distante com a Azinhaga. Algo que mudou quando lá regressou numas férias e foi recebido por Vítor Guia, ainda hoje presidente da Junta dessa freguesia ribatejana, que lhe abriu de novo as portas da terra.

“Ele durante bastantes anos não foi à Azinhaga. Foi no final da vida que voltámos”, recorda Pilar. E “Vítor Guia merece uma homenagem absoluta”, pois “recuperou José Saramago, que tinha passado anos e anos e anos sem pôr os pés na Azinhaga”.

“Saramago tinha deixado de ir [à Azinhaga] nos anos 40, 50. Tinha passado muito tempo, e entretanto muitas pessoas tinham deixado de lá morar ou já tinham morrido. Só Vítor Guia recupera a relação de Saramago com a Azinhaga”, explica a presidenta da Fundação José Saramago, dizendo que o marido, quando regressou à terra natal, lhe dizia: “Pilar, ninguém me conhece!”.

Questionada sobre se essa terra era uma fonte de inspiração nas obras do autor, Pilar não hesita: “não”.

“Era um lugar que ele recupera já na madurez. Quando está em Lanzarote, recupera a Azinhaga”, lugar que “não está no Memorial do Convento, não está n’O Ano da Morte de Ricardo Reis, não está n’O Evangelho segundo Jesus Cristo”.

Para Pilar del Río, “não podemos ser patrióticos e confundir as coisas: a Azinhaga reaparece quando Saramago deixa de viver em Lisboa, a cidade grande, e regressa a um lugar pequenino e escreve As Pequenas Memórias”.

José Saramago faria esta quarta-feira 100 anos. À data do seu centenário, é o único vencedor português do Nobel da Literatura, visto como o prémio literário de maior prestígio do mundo.
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