A Revolução de Outubro foi há cem anos

por RTP
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Chamam-lhe Revolução de Outubro, mas aconteceu em 7 de Novembro. Ficou na memória da posteridade como uma revolução socialista, mas fez-se com um programa muito mais modesto - pão, paz e terra.

As palavras não retratam a coisa de forma fidedigna. Na Rússia, vivia-se então sob o calendário ortodoxo e era 25 de Outubro. O calendário gregoriano em vigor no ocidente tinha 13 dias de avanço e marcava, nesse momento, 7 de Novembro. E foi nesse momento que a guarda vermelha entrou no Palácio de Inverno, para pôr fim ao Governo Provisório chefiado por Kerensky."Pão, paz e terra"
Tinham passado oito meses desde a Revolução de Fevereiro, que afinal aconteceu em Março. No dia internacional da mulher, 8 de Março, a comemoração da efeméride fora tomada em mãos por multidões que protestavam contra a guerra, com o seu cortejo de perda de vidas e de penúria alimentar.

Nas filas para a compra de víveres, foram as mulheres que elevaram o clamor pelo pão. Para o dia 8 de Março tinham preparado, além disso uma manifestação. Juntaram-se-lhes cada vez mais operários das áreas industriais de Petrogrado. A guarnição militar enviada para reprimir começou a passar-se para o lado dos manifestantes. As manifestações pelo pão ganhavam uma cor política ao tornarem-se também manifestações pela paz. Em breve caía o regime czarista.

Para a imensa Rússia camponesa, nascia também a expectativa de uma distribuição da terra. A revolução que nascera nas cidades, a começar por Petrogrado, abria as portas a uma velha aspiração dos mujiques. A tríade de reivindicações mais populares do momento era "pão, paz, terra". Não havia aqui nada de socialista e era natural esperar que um Governo republicano burguês pudesse satisfazer todas essas reivindicações mínimas e elementares.

Outra expectativa elementar que se juntava a essas três bandeiras essenciais era a convocatória de eleições para uma Assembleia Constituinte, que proclamasse formalmente a República e que reconhecesse o direito à autodeterminação de nações submetidas até então ao império czarista.

Mas a expectativa era ilusória. Os sucessivos governos provisórios queriam manter a "palavra dada" aos aliados ocidentais e obstinavam-se em manter o esforço de guerra. Invocavam, para suscitar esse esforço, o "dever patriótico" do povo, a partir do momento em que fora derrubada a autocracia czarista. A transformação democrática não era instrumental para impor a paz e sim para continuar e exacerbar a guerra.

Do mesmo modo, os governos provisórios remetiam para uma decisão da Constituinte a entrega da terra aos camponeses e o reconhecimento dos direitos de autodeterminação nacional. E, ao mesmo tempo, adiavam sucessivamente a convocatória das eleições. A pescadinha de rabo na boca exasperava as nações "alógenas" e os camponeses, que começaram a ocupar as terras sem esperarem leis para isso."Todo o poder aos sovietes"
O crescendo da exasperação começou a dar mais crédito e mais eco, a uma voz que em Abril surgira, quase isolada, a pregar no deserto. Lenine, vindo do exílio suíço, advertira logo no seu discurso à chegada a Petrogrado que os governos provisórios não trariam "pão, paz e terra". Quem alimentasse as aspirações nascidas da revolução, mesmo as mais mínimas e elementares, deveria tomar distâncias do governo de turno e lutar por um governo dos sovietes - os representantes eleitos dos operários, soldados e, já então, de um número crescente de camponeses.

Nas "Teses de Abril", Lenine deu forma mais elaborada às ideias desse discurso pronunciado à saída do comboio e deixou claro que, mesmo sendo aquela uma revolução por pouca coisa, só teria êxito se à tríade "pão, paz, terra" se acrescentasse uma fórmula política decisiva: "todo o poder aos sovietes".

Nessas primeiras semanas da revolução, Lenine não tinha consigo mais do que um partido de uns 20.000 militantes. E mesmo esse partido ouvia a proposta política do seu líder com acentuado cepticismo. Mas a experiência dos meses seguintes foi demonstrando que os interesses coligados nos sucessivos governos provisórios se opunham de forma intransigente a qualquer solução de fundo.

Lenine ganhou, assim, a maioria do partido bolchevique e o partido bolchevique em breve ganhou a maioria dentro dos sovietes. Em 7 de Novembro, constituiu-se portanto o primeiro governo sovietista, que politicamente não era um governo monopartidário e sim de coligação entre os dois partidos que aceitaram participar: os bolcheviques e os socialistas-revolucionários (esse-erres) de esquerda.
As primeiras medidas do poder soviético
Para os dirigentes bolcheviques, era óbvio que só se poderia falar em socialismo se as grandes potências industriais, a começar pela Alemanha, entrassem entretanto em processos revolucionários equivalentes. Só onde havia capitalismo desenvolvido o socialismo teria alguma hipótese. Só nesse quadro generalizado de transformações sociais a nível continental, a Rússia poderia fazer parte de um processo de transformação socialista.

Não surpreende, portanto, que as medidas iniciais do governo soviético, embora audazes, tenham sido completamente alheias a qualquer programa socialista. Nâo colectivizou a terra, antes decretou a sua distribuição aos camponeses - provocando o clamor dos esse-erres de direita contra o "plágio" do seu programa, tal como é descrito pelo perspicaz jornalista norte-americano John Reed no seu clássico "Os dez dias que abalaram o mundo".

Também não apelou à revolução socialista internacional, e sim à paz com os povos que então se massacravam entre si. Decretou imediatamente um cessar-fogo e abriu negociações com a Alemanha. Essas negociações foram dirigidas, em Brest-Litovsk por Trotsky, o comissário do povo para os Negócios Estrangeiros, e rompeu-as a delegação alemã, impaciente por não conseguir a assinatura dos seus interlocutores soviéticos para um acordo de paz que libertasse as forças alemãs para uma guerra concentrada na frente oeste.

O governo soviético lançou uma série de decretos reconhecendo os direitos nacionais dos povos sob domínio russo, publicou os tratados secretos com os aliados ocidentais, França e Inglaterra, cumprindo a promessa de abolir a diplomacia secreta, e instituiu a regra de que os comissários do povo, a começar pelo próprio Lenine, ganhassem o equivalente ao salário de um operário qualificado.

Convocou depois as eleições para a Constituinte, e perdeu-as, porque os cadernos eleitorais continuavam a apresentar ao eleitorado um partido esse-erre unificado, quando este já se havia dividido entretanto. E convocou a própria Assembleia, sabendo que ela iria ser-lhe desfavorável.
A guerra civil e o "comunismo de guerra"
Já então começava a desenhar-se o mapa de forças que iriam enfrentar-se na guerra civil. Para a maioria da Constituinte, o importante era impedir a ruptura com a política de guerra e anular a distribuição das terras; para o governo soviético o importante era que nenhuma dessas decisões elementares fizesse marcha atrás. Quando a Constituinte votou contra as decisões fundamentais do poder soviético, foi dissolvida.

A revolução russa ganhou fama de socialista num primeiro momento por ter sobreposto as suas políticas sociais às votações formais da Constituinte. Ganhou-a num segundo momento porque, em plena guerra civil, procedeu a uma ampla política de expropriações dos inimigos e de requisições de excedentes aos camponeses.

Mas mesmo isso, que foi impropriamente designado como "comunismo de guerra", era um conjunto de medidas de emergência, mais militares que políticas, e certamente sem relação com uma aposta política mais vasta, ela sim "socialista", que fazia depender o futuro da revolução na Alemanha. Quando a revolução na Alemanha foi derrotada, em 1923, sobreviveram na Rússia as políticas expropriadoras, mas já muito pouco de alguma via apontada ao socialismo.
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