Cultura
“Debaixo do Céu”. O testemunho dos judeus perseguidos que passaram por Portugal
O novo filme do realizador Nicholas Oulman tem estreia marcada esta quarta-feira às 10h30 no Cinema São Jorge, enquanto decorre o IndieLisboa. E volta a ser exibido no dia 6 de maio, último dia do festival de cinema independente. São as histórias íntimas de sete judeus que fugiram da Alemanha nazi durante a II Guerra Mundial, passando por Portugal nos respetivos percursos. Quase 80 anos depois, estes homens e mulheres, na altura crianças, deixam o testemunho de dor, perda, revolta. Para que o mundo não os esqueça.
A preto e branco, as primeiras imagens de “Debaixo do Céu” mostram-nos a cidade de Berlim em ruína quase absoluta. O cenário é do pós-II Guerra Mundial, após a derrota da Alemanha, mas as histórias que chegam ao espetador não contam as grandes batalhas, as vitórias ou as derrotas deste ou daquele país. São antes vários episódios particulares, peripécias da vida, pequenas recordações que pairam na memória de quem sobreviveu.
Somos levados a adotar o ponto de vista de cada um destes testemunhos, judeus perseguidos pelo regime nazi depois da ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933. As imagens abstratas, retiradas dos principais arquivos mundiais dedicados à Shoah, ajudam-nos a imaginar aqueles cenários relatados com a nossa própria mente.
Lolita Goldstein, Pedro Kalb, Henny Porter, Eva Arond, Fred Manasse, Sylvain Bromberger e Ginette Horowitz contam-nos os seus "pequenos destinos". Preciosos, estes testemunhos foram obtidos em corrida contra o tempo. Uma das protagonistas entrevistada por Oulman morreu recentemente, aos 98 anos, ainda antes de ter tido oportunidade de ver o filme.
Estes antigos refugiados que escaparam em crianças - hoje são cidadãos seniores - têm um denominador comum: todos tiveram uma breve passagem por Portugal aquando da sua fuga. Foi essa a história que Nicholas Oulman quis contar, inspirado pelas histórias pessoais da própria família.
“A minha família é judia. Parte da minha família em França esteve em campos de concentração. Alguns familiares que viviam em França vieram para Portugal na altura da guerra. Tive um tio que depois fugiu de Portugal para se alistar nas RAF [Royal Air Force] e foi abatido”, conta o realizador em entrevista à RTP.
Foi durante a realização da primeira película que se apercebeu realmente da riqueza e do potencial do tema. “Ao fazer o filme sobre o meu pai, o Com Que Voz, tive oportunidade de falar mais em detalhe com as minhas tias sobre certos episódios que se passaram em casa”, conta Nicholas Oulman, em referência ao filme que realizou em 2009, em homenagem ao pai, autor de alguns dos principais sucessos da fadista Amália Rodrigues.
Os sobreviventes
Ao falar com a família formou-se a ideia de um filme sobre a passagem de judeus por Portugal, de estilo mais “clássico e documental”. A ideia inicial era trazer os sobreviventes, que agora vivem espalhados pelo mundo, sobretudo nos Estados Unidos, e voltar a fazer com eles os caminhos percorridos há quase 80 anos.
“À medida que fizemos a pesquisa confirmámos que os únicos sobreviventes ainda vivos, capazes de dar o seu testemunho, eram crianças na altura. E sendo crianças, não é que não tenham sofrido tanto, mas a responsabilidade de uma criança não seria a mesma de um pai ou de uma mãe que tem de proteger a família. Por isso, a abordagem de certas situações é feita com uma certa inocência e ingenuidade. Mas mesmo sendo pequeninos na altura, todos têm memórias muito vivas, e foi algo que os marcou para o resto da vida. A forma como eles encaram a vida ou enfrentam as dificuldades é muito diferente da de uma pessoa que não tenha passado por esses traumas", aponta o realizador.

As histórias em volta da II Guerra Mundial e do Holocausto estão amplamente retratadas ao longo das últimas décadas. Tratar esta temática é “um risco” que o realizador reconhece, mas nem isso o desmoveu de contar as vivências particulares destes sobreviventes com a sua própria linguagem.
“O que queria mesmo era contar a viagem dos judeus que saíram da Alemanha, passaram por Portugal e depois fugiram para outras terras. Sobre esse tema em específico não tinha visto nada. Depois comecei a falar com as pessoas e a ouvir as suas histórias, a sentir a energia que transmitiam”, conta o realizador.
Nesse caminho, Nicholas Oulman adotou uma abordagem mais pessoal. Foi a casa das testemunhas, entrevistando-as num enquadramento mais confortável. “Com calma, sem pressas, com uma equipa reduzida”, recorda.
Das inúmeras histórias que ouviu ressalta a simplicidade dos pensamentos e situações, a pureza de crianças que, naquela altura, se viam a braços com o lado mais negro da humanidade.
É o caso do pequeno Fred Manasse, que aos três anos está em fuga com o irmão mais velho num comboio alvo de bombardeamentos. A criança vê o cenário através da janela de uma das carruagens e logo acredita que se trata de fogo-de-artifício lançado “só para ele”, à sua passagem. Só muitos anos mais tarde o irmão teve coragem para lhe contar do que realmente se tratava. Da família, apenas os dois irmãos sobreviveram para contar a história.
Muitos destes sobreviventes perderam vários familiares, outros ficaram completamente sozinhos. Em certos casos, nunca chegaram a descobrir o paradeiro de uma irmã ou de um pai, não tendo nunca deixado de procurar por eles.
Em situações de desespero e de privação máxima, sem noção dos perigos reais que corriam, também houve tempo para viver pequenos momentos de deslumbramento, como acontece na chegada de Henny Porter a Lisboa. Era o primeiro porto-seguro ao fim de uma longa viagem, e foi na cidade em que passou “um dos dias mais felizes” ao lado dos pais. Lisboa, a metrópole “cheia de refugiados”, foi a primeira cidade onde encontrou paz, longe das perseguições, onde muitos judeus encontraram a esperança de um recomeço.

Fugir à estrutura clássica
Com o material gravado, a equipa passou à sala de montagem. “Ao início pensei que tinha de pôr as pessoas a falar. Experimentámos isso e chegámos à conclusão que não resultava", recorda o realizador.
Durante o processo criativo, na mesa de montagem, foram várias as experiências e as linguagens testadas até se chegar ao resultado final. Até que se fez luz.
“Queria criar uma viagem, uma história feita por pessoas. E as pessoas são feitas das coisas mais comuns, das coisas mais banais. É um período negro da nossa história, mas estas são histórias humanas. Essas vivências, apesar de serem muito pessoais, podem ser transcritas para um coletivo”, refere o realizador.
É essa universalidade que Nicholas Oulman tentou transpor para os 118 minutos de filme e que o distinguem de um filme com parâmetros clássicos ao nível da imagem, do som, do encadeamento polifónico e misterioso dos testemunhos, que só ficamos realmente a conhecer nos últimos minutos. O filme foi realizado com recurso a imagens dos arquivos de Steven Spielberg e do Museu do Holocausto dos Estados Unidos. As entrevistas completas aos vários sobreviventes foram doadas aeste último.
Nesta película, as imagens que vemos são praticamente todas de arquivo, imagens de época. Ao início, a confusão impera. Qual é a relação da história que ouvimos com as imagens que vemos?
“Quando se começa a ouvir as histórias, cria-se a expetativa de ver a pessoa que a conta. Mas ao fim de cinco minutos, quando percebemos que não a vamos ver, entregamo-nos. Ou então temos uma reação adversa. A utilização de grandes planos pode levar a interrogações. Quem é que eu estou a ver? Mas depois percebemos que é um coletivo, que não é necessariamente a pessoa que está a falar”, refere.
Deixamos de tentar estabelecer uma ligação causal entre todos os elementos. Tal como na literatura, as palavras e as histórias ajudam-nos a criar os cenários contados na nossa mente Como se estivéssemos lá com estes homens e mulheres, na altura crianças. As imagens e o som envolventes ajudam-nos à imersão nesse passado.
“A combinação desses três aspetos traz um efeito fantasmagórico, onírico, surreal. O objetivo é que nos consigamos projetar naquilo que estamos a ler, a sentir, a ouvir. Se essa aposta é bem-sucedida, fico muito contente ”, sublinha ainda realizador.

Berlim de ontem, Alepo de hoje
Em entrevista à RTP, Nicholas Oulman destaca a enorme vontade destes testemunhos em “contar a sua história, fazer com que a experiência seja conhecida pelo grande público, para que isto não caia no esquecimento”.
Ao longo do processo de realização, nos últimos anos, outras catástrofes e tensões ocorriam debaixo do mesmo céu. De repente, as imagens registadas há praticamente 80 anos não estavam assim tão distantes das que apareciam noticiários. A história daqueles refugiados é também a história dos refugiados que hoje fogem das zonas de conflito. As imagens aéreas de Berlim "não são muito diferentes do que hoje nos mostram os drones a partir de Alepo", assinala Nicholas Oulman.
De igual forma, a onda de “populismo e xenofobia” que varre a Europa também esteve presente no início do conflito de há oito décadas. No filme, uma das intervenientes recorda-se da agitação social em 1933, logo após a chegada de Hitler ao poder. “A minha mãe, como todas as pessoas na época, pensou que as coisas não chegariam ao ponto a que chegaram”, lembra.
“Vemos fotografias do que está a acontecer na Síria, e depois aquelas imagens de Berlim completamente destruída. Não podemos comparar este momento da história a qualquer outra coisa, mas muitas vezes, na feitura do filme, houve alturas em que parecia que estávamos a lidar com coisas atuais”, assinala o realizador.
É com o intuito de preservar a memória que este filme nos interroga, nos interpela, nos leva a comparar o incomparável e perguntar se a história se pode repetir. “A história repete-se. E as pessoas têm tendência para esquecer e para se conformarem”, refere Nicholas Oulman.
Somos levados a adotar o ponto de vista de cada um destes testemunhos, judeus perseguidos pelo regime nazi depois da ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933. As imagens abstratas, retiradas dos principais arquivos mundiais dedicados à Shoah, ajudam-nos a imaginar aqueles cenários relatados com a nossa própria mente.
Lolita Goldstein, Pedro Kalb, Henny Porter, Eva Arond, Fred Manasse, Sylvain Bromberger e Ginette Horowitz contam-nos os seus "pequenos destinos". Preciosos, estes testemunhos foram obtidos em corrida contra o tempo. Uma das protagonistas entrevistada por Oulman morreu recentemente, aos 98 anos, ainda antes de ter tido oportunidade de ver o filme.
Estes antigos refugiados que escaparam em crianças - hoje são cidadãos seniores - têm um denominador comum: todos tiveram uma breve passagem por Portugal aquando da sua fuga. Foi essa a história que Nicholas Oulman quis contar, inspirado pelas histórias pessoais da própria família.
“A minha família é judia. Parte da minha família em França esteve em campos de concentração. Alguns familiares que viviam em França vieram para Portugal na altura da guerra. Tive um tio que depois fugiu de Portugal para se alistar nas RAF [Royal Air Force] e foi abatido”, conta o realizador em entrevista à RTP.
Foi durante a realização da primeira película que se apercebeu realmente da riqueza e do potencial do tema. “Ao fazer o filme sobre o meu pai, o Com Que Voz, tive oportunidade de falar mais em detalhe com as minhas tias sobre certos episódios que se passaram em casa”, conta Nicholas Oulman, em referência ao filme que realizou em 2009, em homenagem ao pai, autor de alguns dos principais sucessos da fadista Amália Rodrigues.
Os sobreviventes
Ao falar com a família formou-se a ideia de um filme sobre a passagem de judeus por Portugal, de estilo mais “clássico e documental”. A ideia inicial era trazer os sobreviventes, que agora vivem espalhados pelo mundo, sobretudo nos Estados Unidos, e voltar a fazer com eles os caminhos percorridos há quase 80 anos.
“À medida que fizemos a pesquisa confirmámos que os únicos sobreviventes ainda vivos, capazes de dar o seu testemunho, eram crianças na altura. E sendo crianças, não é que não tenham sofrido tanto, mas a responsabilidade de uma criança não seria a mesma de um pai ou de uma mãe que tem de proteger a família. Por isso, a abordagem de certas situações é feita com uma certa inocência e ingenuidade. Mas mesmo sendo pequeninos na altura, todos têm memórias muito vivas, e foi algo que os marcou para o resto da vida. A forma como eles encaram a vida ou enfrentam as dificuldades é muito diferente da de uma pessoa que não tenha passado por esses traumas", aponta o realizador.
As histórias em volta da II Guerra Mundial e do Holocausto estão amplamente retratadas ao longo das últimas décadas. Tratar esta temática é “um risco” que o realizador reconhece, mas nem isso o desmoveu de contar as vivências particulares destes sobreviventes com a sua própria linguagem.
“O que queria mesmo era contar a viagem dos judeus que saíram da Alemanha, passaram por Portugal e depois fugiram para outras terras. Sobre esse tema em específico não tinha visto nada. Depois comecei a falar com as pessoas e a ouvir as suas histórias, a sentir a energia que transmitiam”, conta o realizador.
Nesse caminho, Nicholas Oulman adotou uma abordagem mais pessoal. Foi a casa das testemunhas, entrevistando-as num enquadramento mais confortável. “Com calma, sem pressas, com uma equipa reduzida”, recorda.
Das inúmeras histórias que ouviu ressalta a simplicidade dos pensamentos e situações, a pureza de crianças que, naquela altura, se viam a braços com o lado mais negro da humanidade.
É o caso do pequeno Fred Manasse, que aos três anos está em fuga com o irmão mais velho num comboio alvo de bombardeamentos. A criança vê o cenário através da janela de uma das carruagens e logo acredita que se trata de fogo-de-artifício lançado “só para ele”, à sua passagem. Só muitos anos mais tarde o irmão teve coragem para lhe contar do que realmente se tratava. Da família, apenas os dois irmãos sobreviveram para contar a história.
Muitos destes sobreviventes perderam vários familiares, outros ficaram completamente sozinhos. Em certos casos, nunca chegaram a descobrir o paradeiro de uma irmã ou de um pai, não tendo nunca deixado de procurar por eles.
Em situações de desespero e de privação máxima, sem noção dos perigos reais que corriam, também houve tempo para viver pequenos momentos de deslumbramento, como acontece na chegada de Henny Porter a Lisboa. Era o primeiro porto-seguro ao fim de uma longa viagem, e foi na cidade em que passou “um dos dias mais felizes” ao lado dos pais. Lisboa, a metrópole “cheia de refugiados”, foi a primeira cidade onde encontrou paz, longe das perseguições, onde muitos judeus encontraram a esperança de um recomeço.
Fugir à estrutura clássica
Com o material gravado, a equipa passou à sala de montagem. “Ao início pensei que tinha de pôr as pessoas a falar. Experimentámos isso e chegámos à conclusão que não resultava", recorda o realizador.
Durante o processo criativo, na mesa de montagem, foram várias as experiências e as linguagens testadas até se chegar ao resultado final. Até que se fez luz.
“Queria criar uma viagem, uma história feita por pessoas. E as pessoas são feitas das coisas mais comuns, das coisas mais banais. É um período negro da nossa história, mas estas são histórias humanas. Essas vivências, apesar de serem muito pessoais, podem ser transcritas para um coletivo”, refere o realizador.
É essa universalidade que Nicholas Oulman tentou transpor para os 118 minutos de filme e que o distinguem de um filme com parâmetros clássicos ao nível da imagem, do som, do encadeamento polifónico e misterioso dos testemunhos, que só ficamos realmente a conhecer nos últimos minutos. O filme foi realizado com recurso a imagens dos arquivos de Steven Spielberg e do Museu do Holocausto dos Estados Unidos. As entrevistas completas aos vários sobreviventes foram doadas aeste último.
Nesta película, as imagens que vemos são praticamente todas de arquivo, imagens de época. Ao início, a confusão impera. Qual é a relação da história que ouvimos com as imagens que vemos?
“Quando se começa a ouvir as histórias, cria-se a expetativa de ver a pessoa que a conta. Mas ao fim de cinco minutos, quando percebemos que não a vamos ver, entregamo-nos. Ou então temos uma reação adversa. A utilização de grandes planos pode levar a interrogações. Quem é que eu estou a ver? Mas depois percebemos que é um coletivo, que não é necessariamente a pessoa que está a falar”, refere.
Deixamos de tentar estabelecer uma ligação causal entre todos os elementos. Tal como na literatura, as palavras e as histórias ajudam-nos a criar os cenários contados na nossa mente Como se estivéssemos lá com estes homens e mulheres, na altura crianças. As imagens e o som envolventes ajudam-nos à imersão nesse passado.
“A combinação desses três aspetos traz um efeito fantasmagórico, onírico, surreal. O objetivo é que nos consigamos projetar naquilo que estamos a ler, a sentir, a ouvir. Se essa aposta é bem-sucedida, fico muito contente ”, sublinha ainda realizador.
Berlim de ontem, Alepo de hoje
Em entrevista à RTP, Nicholas Oulman destaca a enorme vontade destes testemunhos em “contar a sua história, fazer com que a experiência seja conhecida pelo grande público, para que isto não caia no esquecimento”.
Ao longo do processo de realização, nos últimos anos, outras catástrofes e tensões ocorriam debaixo do mesmo céu. De repente, as imagens registadas há praticamente 80 anos não estavam assim tão distantes das que apareciam noticiários. A história daqueles refugiados é também a história dos refugiados que hoje fogem das zonas de conflito. As imagens aéreas de Berlim "não são muito diferentes do que hoje nos mostram os drones a partir de Alepo", assinala Nicholas Oulman.
De igual forma, a onda de “populismo e xenofobia” que varre a Europa também esteve presente no início do conflito de há oito décadas. No filme, uma das intervenientes recorda-se da agitação social em 1933, logo após a chegada de Hitler ao poder. “A minha mãe, como todas as pessoas na época, pensou que as coisas não chegariam ao ponto a que chegaram”, lembra.
“Vemos fotografias do que está a acontecer na Síria, e depois aquelas imagens de Berlim completamente destruída. Não podemos comparar este momento da história a qualquer outra coisa, mas muitas vezes, na feitura do filme, houve alturas em que parecia que estávamos a lidar com coisas atuais”, assinala o realizador.
É com o intuito de preservar a memória que este filme nos interroga, nos interpela, nos leva a comparar o incomparável e perguntar se a história se pode repetir. “A história repete-se. E as pessoas têm tendência para esquecer e para se conformarem”, refere Nicholas Oulman.