Escritor Alberto Manguel lamenta que a tecnologia retire importância aos livros

Lisboa, 26 out 2019 (Lusa) - O escritor e bibliófilo argentino Alberto Manguel, autor de "Monstros Fabulosos", afirma que a literatura transforma as pessoas e lamenta que a evolução tecnológica tenha retirado importância aos livros, conduzindo a uma valorização do "rápido e fácil".

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Alberto Manguel falava na sessão de lançamento de "Monstros Fabulosos", editado pela Tinta-da-China, que decorreu na noite de sexta-feira, livro para o qual o autor recuperou as personagens imaginárias que conheceu nas suas leituras de infância e as apresenta aos leitores, com ilustrações feitas por si mesmo.

Numa sessão que contou com a presença do poeta e crítico literário Pedro Mexia e do humorista e comentador Ricardo Araújo Pereira, que fizeram uma elogiosa introdução à obra, Alberto Manguel começou por agradecer aos dois por terem inventado um livro que ele não escreveu, e explicou que o seu livro "é um livro de leitor", que espelha um vicio de infância com que quer "contagiar os outros".

Desta forma respondia a uma brincadeira de Ricardo Araújo Pereira, que aludiu ao facto de a cerimónia de lançamento decorrer no Museu da Farmácia, por ser o lugar indicado para alguém que é um viciado e também um "traficante", que tenta passar a sua droga a outros.

Para Alberto Manguel, o livro interpela o leitor, instigando-o a acreditar nele, na história que conta, acabando por se refletir na infância e no crescimento de quem lê, como foi o seu caso.

"A literatura transforma-nos porque somos animais que contam histórias (...) Eu encontro-me na desobediência civil do Capuchinho Vermelho. A minha visão da Alice [no País das Maravilhas] mudou quando entrei na juventude. O efeito da Alice em mim reflete a minha posição política", afirmou.

Por outro lado, diz sentir que se identifica com a personagem do Frankenstein, na medida em que não sabe por que é perseguido, sabe que é vítima, mas não sabe porquê, e nas estratégias de Capuchinho Vermelho encontra os perigos e os males que existem.

"Fui uma criança muito solitária e invejava o Noddy [personagem de Enid Blyton] porque tinha muitos amigos", confessa o escritor, para quem os "companheiros de brincadeiras" da sua geração foram a Pipi das Meias Altas e o Pinóquio, o pirata Sandokan e o mágico Mandrake.

O bibliófilo lamenta que o desenvolvimento da tecnologia tenha conduzido a uma certa perda do poder do livro, porque "ler é difícil e trabalhoso e lento", ao passo que "o que é valorizado é o que é rápido e fácil".

E deu como exemplo: "Um ensaio de Eduardo Lourenço tem menos peso do que um `Tweet` de um qualquer homem maligno".

Com o subtítulo "Drácula, Alice, Super-Homem e outros amigos literários", "Monstros Fabulosos" está escrito com erudição e humor, apresentando mais de 30 das personagens literárias favoritas de Alberto Manguel, entre as quais se incluem duas de língua portuguesa: o Mandarim, de Eça de Queirós, e a boneca de pano Emília, de "O Sítio do Pica-Pau Amarelo".

Outros "monstros" apresentados aos leitores através da visão do autor, conduzindo-os assim até à sua intimidade - como assinalou Pedro Mexia -, são Jim, de Huckleberry Finn, a inteligente Phoebe, de "À Espera no Centeio", Queequeg, personagem de "Moby-Dick", Tirano Banderas, personagem criada por Ramón María del Valle-Inclán, Long John Silver, de "A Ilha do Tesouro", mas também criaturas lendárias como o Hipogrifo, fruto do cruzamento de uma égua com um grifo, ou o Wendigo, criatura do folclore algonquiano, devoradora de homens.

Há depois aquelas personagens mais conhecidas como Fausto, Super-Homem, Bela Adormecida, Robinson Crusoe, Quasímodo, Satanás e o Avô da Heidi, ou as "surpreendentes" - na designação de Pedro Mexia -, como Monsieur Bovary, de Flaubert, aquele que fica em segundo plano e que se resigna a um anonimato decente, Gertrudes, a mãe de Hamlet, e Dom Juan, apresentado mais como "um fazedor de catálogos do que como conquistador de mulheres".

Na opinião de Ricardo Araújo Pereira, ler estes `monstros` através da visão de Manguel abre ao leitor toda uma nova perspetiva sobre as personagens e compara esta experiência com a que teve ao ler o ensaio "North by Northwest", de Stanley Cavell.

Nesse ensaio, o autor demonstra como o filme "North by Northwest", realizado por Alfred Hitchocock, foi decalcado de "Hamlet", tornando impossível, a partir daí, para o leitor voltar a ver o filme da mesma maneira, sem se perceber sempre a figura de Hamlet por trás.

Para o escritor argentino, estes "amigos literários" começam a fazer parte da vida de quem gosta de ler desde a infância, e lá ficam para sempre, acompanhando o leitor no crescimento, fazendo companhia a outras personagens que entretanto surgem e ganhando significado para lá dos livros de onde saíram, como amigos de longa data com quem se partilha experiências, aprendizagens e emoções.

No final da apresentação, questionado por uma pessoa do público sobre qual o livro que gostaria de ter escrito, se pudesse escolher, Alberto Manguel nem hesitou: "Alice no País das Maravilhas".

AL // MAG

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