Escritor-fantasma, quando o autor não é quem (a)parece
Eles pesquisam, reúnem as informações e redigem os textos nas teses académicas, biografias ou ficções, mas o seu nome nunca aparece, pois essa é uma das regras dos escritores- fantasma ("ghost-writers"), que também existem em Portugal.
João Pais (nome fictício) tem agora 26 anos e frequenta um curso de mestrado, mas, entre 2001 e 2002, quando era aluno de Letras, fez partes de teses de licenciatura e de mestrado para estudantes da área da saúde e das ciências económicas.
"Geralmente, cabia-me fazer o enquadramento político e económico da temática da tese e, nessas situações, ficava responsável pela recolha de dados e redacção do texto, que era depois incluído na tese sem que o meu nome lá constasse", explicou à agência Lusa.
"Sabia desde o início que não ia assinar o que escrevia, não só porque os textos se destinavam à tese de outra pessoa, como porque eu nem era ainda licenciado...Além disso, se eu revelasse o que fazia podia comprometer o meu próprio futuro académico", acrescentou.
O que motiva um autor a trabalhar se não vai receber o mérito pelo seu trabalho intelectual? "Na altura pagavam-me entre 500 a 1500 euros por três meses ou por um semestre de trabalho, o que era um bom auxílio para os meus gastos pessoais de estudante".
Além da remuneração, "a única vantagem é o ritmo que se ganha para fazer investigação", declarou João Pais, acrescentando: "Nem sequer posso dizer que ganhei cultura geral com os trabalhos, pois eles foram-me solicitados precisamente por eu já dominar as áreas".
"Em regra, é porque o aluno desconhece determinada matéria que faz uma `encomenda`, mas noutras situações isso deve-se à escassez de tempo e aos prazos, que são apertados sobretudo no caso dos mestrandos ou doutorandos com bolsa", esclareceu.
João Pais, que não tem exercido como escritor-fantasma actualmente por os seus parâmetros éticos "terem mudado" e por "já não necessitar daquele dinheiro", assegurou que "este sistema de `outsourcing` é muito comum na Universidade de Coimbra, e está mais do que generalizado em países como o Brasil ou os Estados Unidos".
Mário Mesquita, ensaísta e professor universitário fundador do curso de Jornalismo da Universidade de Coimbra, mostrou-se surpreso com a revelação.
"Não garanto que não existam, mas nunca ouvi falar de tais casos em Coimbra", assegurou Mário Mesquita, para quem um trabalho ser feito por uma pessoa e assumido por outra "é algo próximo da falsificação".
Para o docente universitário, essa situação "pode justificar uma sanção tanto a quem assume uma autoria que não lhe pertence como ao verdadeiro autor, omisso a troco de um pagamento", já que "tanto o acto de um como o do outro merecem reprovação moral".
No mesmo sentido se pronunciou José Rebelo, professor agregado em Sociologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), para quem "adjudicar a produção da tese como uma empresa é ilegítimo e ilegal, embora possa haver quem o faça".
"Ainda que o candidato tenha solicitado auxílio para o trabalho de campo, a redacção da tese deve ser integralmente da sua autoria, caso contrário o júri tem todo o direito de recusar o trabalho", sublinhou.
Este é um fenómeno que "acontece nas teses académicas, sobretudo na área das Ciências Sociais", como assinalou Mário Cláudio, docente na Universidade Católica do Porto e escritor, "mas talvez também em alguma ficção, que parece suspeita nesse aspecto, porque um novo autor dificilmente consegue aparecer logo com determinadas obras".
Para Ernesto Rodrigues, docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, "o escritor-fantasma já é uma figura antiga, desde 1757 que existe no francês a palavra `negro` nessa acepção de escriba, de alguém que escreve mas não assina".
"Um dos casos mais conhecidos é o de Alexandre Dumas pai, do qual até se dizia que era o único mulato com negros ao seu serviço, que tinha vários escribas porque necessitava de despachar rapidamente os folhetins para os jornais", contou Ernesto Rodrigues.
O ensaísta indicou que Ponson du Terrail, criador da personagem Rocambole, também empregava `negros` e assinalou que, "em alguns casos, estes libertaram-se dos seus empresários e construíram obra própria, como sucedeu com o autor de romances de capa e espada Paul Féval".
O espírito "empresarial" nesta área encontrou na Internet um novo meio de divulgação, como o ilustra a Fábrica da Escrita, criada pelo jornalista Pedro Chagas Freitas em Maio passado.
No "blog" da Fábrica - que tem por lema "Escrever não é mais do que uma forma de vida" - são "oferecidos" vários serviços, entre os quais a vertente "academic hand" (ajuda académica, numa tradução possível).
"Precisa de escrever alguma coisa e está sem tempo ou paciência? Não há problema: nós ajudamos a escrever. De trabalhos académicos a teses de mestrado. Tudo o que quiser escrever, nós estamos prontos a auxiliar. Rápida e eficientemente".
Contactado pela Lusa em Maio, quando a designação no "blog" era então "ghost-writer" - acompanhada das frases "Não há problema: nós escrevemos para si" e "Tudo o que quiser escrever, nós escrevemos" - Pedro Chagas Freitas esclareceu que "a ideia não é fazer os trabalhos académicos pelos alunos, a intenção é auxiliar na organização e na revisão, para que uma tese tenha um bom nível literário".
Teixeira Moita, dramaturgo e colaborador da Fábrica da Escrita, também assegurou que a ideia não é providenciar um serviço de "escritor-fantasma".
"Não me choca a ideia de ajudar alguém a escrever em bom português, mas substituir o autor já é excessivo, é uma situação de deslealdade", afirmou, acrescentando que já foi convidado a escrever a nível científico mas recusou, "porque isso levantava problemas éticos e há um limite para as ajudas".
Na área da ficção, o dramaturgo lembrou que "antigamente havia o secretário". "Veja-se - disse - o caso de Samuel Beckett, que secretariou James Joyce e em cuja escrita se nota uma influência indisfarçável".
"Na ficção portuguesa, julgo que o fenómeno não tem grande dimensão, embora este crescendo de pessoas que escrevem um livro em busca de promoção levante suspeitas, pelo que já não digo nada..." - concluiu Teixeira Moita.
Sandra Guerra, do gabinete jurídico da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), também afirmou à Lusa não ter conhecimento "de autores que publiquem livros escritos por outra pessoa".
"Na SPA não sabemos de casos" - garantiu - "o que pode dever-se ao facto de o fenómeno não ter expressão no meio literário português ou porque os envolvidos mantêm reserva, já que o acordo, pressupõe-se, beneficia ambas as partes".