Fala-se e escreve-se com poucas e más palavras
A tendência para simplificar a fala e a escrita quotidianas espelha o empobrecimento do uso da Língua, segundo professores, escritores e tradutores portugueses - mas os linguistas atribuem o fenómeno ao empobrecimento de raciocínio e ao défice cultural dos falantes.
Segundo profissionais das Letras ouvidos pela Agência Lusa, o uso redutor do vocabulário português reflecte-se na escrita quase "telegráfica" das mensagens de telemóvel e correio electrónico, na literatura "leve", nas conversas pouco argumentativas, nos debates televisivos com "frases feitas", na "pressa" das notícias e legendagens dos filmes e no "facilitismo" do ensino.
"Temos a sensação de que as pessoas têm um vocabulário activo reduzido mas isso não está fundamentado cientificamente", ressalva Margarita Correia, coordenadora da Área de Léxico e Terminologia do Instituto de Linguística Teórica e Computacional.
A linguista lembra que os jovens dominam termos técnicos que ela própria desconhece mas, em contrapartida, ignoram determinadas palavras porque "não tiveram uma vivência rural nem leram as mesmas obras".
Por outro lado, salienta, os regionalismos ainda continuam vivos entre os mais velhos em algumas aldeias.
A investigadora admite que há uma tendência para "simplificar" a linguagem, "um facilitismo", mas associa-a à pouca profundidade com que a realidade é abordada.
Maria Lúcia Garcia Marques, investigadora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, prefere, neste caso, falar em "simplificação de raciocínios" para justificar a "economia de palavras" na fala e escrita correntes.
"Pensamento pobre não pode gerar uma linguagem rica", sentencia, acrescentando que os níveis sócio-cultural e de literacia dos falantes, assim como as suas vivências e condutas sociais e a escolha dos temas que querem tratar explicam a opção pelo uso mais ou menos rico da Língua, desde o calão à poesia.
A linguista recorda ainda que, "de uma maneira geral, vamos usar um vocabulário mais simples" quando falamos porque "a comunicação em tempo real é altamente condicionada pela urgência e eficácia" da transmissão da mensagem.
José Victor Adragão, sociolinguista, considera igualmente que há "eliminação da variedade" de vocábulos na fala e na escrita do dia-a-dia, um "processo de menor esforço e neutralização" do uso da Língua, fruto, na generalidade, de "uma crise cultural" e da "degradação do ensino".
De acordo com o especialista, o fenómeno é visível na banalização da palavra "cena" em substituição de "coisa", na adjectivação "paupérrima" e repetitiva das notícias, na incapacidade de as pessoas manterem uma boa conversa "a três" ou na legendagem de filmes com tradução "à letra".
Embora crítico, Adragão invoca que a redução de vocabulário nos falantes "é cíclica", já que "nos séculos XVI e XVII se falava em empobrecimento vocabular mas depois o léxico desenvolveu-se".
Demonstrativo dessas "oscilações da Língua" é que a literatura de massas, conhecida por literatura "light", tem, na opinião do linguista, uma qualidade questionável, apesar de "vender muito", mas em tudo semelhante à das revistas de fotonovelas dos anos 60 e 70.
Mais pessimista, o escritor de livros infantis José Jorge Letria entende que se se continuar a simplificar a linguagem, "em nome da comunicabilidade, a tendência é para empobrecer cada vez mais o vocabulário" usado.
"É possível escrever com rigor e elegância sem cair no facilitismo", advoga, acrescentando que não hesita em elevar a "fasquia" lexical quando escreve para não "infantilizar" demasiado as crianças.
O ex-jornalista crê que "estão a perder-se palavras todos os dias", em virtude do imediatismo das mensagens de telemóvel e correio electrónico e das notícias.
A seu ver, os jornalistas, que antes "tinham um nível cultural muito alto", preocupam-se agora em "dar a notícia depressa, ganhar a corrida da concorrência, desculpabilizando um erro" linguístico.
Germano de Almeida, escritor cabo-verdiano, reconhece que a "pressa" com que a vida é levada interfere na comunicação mas defende que um jornalista ou contador de histórias tem que "simplificar a linguagem para que as pessoas o entendam", sem que isso signifique ter um menor cuidado linguístico.
Professora liceal há mais de 30 anos, Alice Costa conta que se vê obrigada a mudar de discurso quando os seus alunos, de 16 e 17 anos, não sabem o significado de uma palavra aparentemente simples nem se preocupam em sabê-lo ou questioná-lo.
"Muitas vezes, tomam uma palavra por outra por falta de vocabulário", afirma, apontando a ausência de hábitos de leitura, em especial de textos literários, e de conversas com as gerações mais velhas como a principal razão para a pobreza vocabular dos jovens.
Questionada sobre as competências dos professores de Português, a docente admite haver "uma deficiente preparação científica" e "gosto e sensibilidade pela Língua" devido, em parte, à eliminação do Latim, raiz das línguas latinas, dos currículos obrigatórios.
"Cai-se no facilitismo, o professor só vai onde os alunos vão", acrescenta.
Este facilitismo é evidente, segundo Maria Lúcia Lepecki, professora do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa, na "acentuada tendência para deixar palavras na prateleira", ignorando-se "sinónimos ou a paráfrase" para exprimir uma ideia.
Para o uso redutor do vocabulário, que "também ocorre noutras Línguas, como o Inglês e o Francês", a docente encontra dois motivos: a falta da leitura atenta, que permite registar palavras desconhecidas ou esquecidas, e a "perda progressiva da arte da conversa argumentativa".
"Todo o pensamento minimamente consistente pede precisão de vocabulário: se conversarmos de verdade, precisaremos de tirar palavras da prateleira e, até, de inventar novas", advoga, acrescentando que há "um crescente desprestígio relacionado com o requinte da linguagem".
"Quanto mais restrito for o vocabulário, menor é a capacidade de pensar, menor a do exercício da crítica", reforça, por sua vez, o escritor Mário de Carvalho, salientando que isso é desencadeado sobretudo pela televisão.
E é na televisão que o tradutor e professor universitário Pedro Braga Falcão, de 25 anos, detecta mais maus-tratos linguísticos: o uso de "clichés, frases feitas, pré-formatadas e estereotipadas".
"Basta ouvir um discurso do primeiro-ministro ou um daqueles malfadados programas opinativos, onde há um mestre-opinião, um jornalista-opinião e o público-opinião, todos alegremente opinando, para perceber que não há o mínimo gosto em encontrar a forma mais bonita, sentida, correcta de se veicular uma mensagem", sustenta.