Lavagem das mãos: de Pilatos à Covid-19

por RTP
Caitlin Ochs, Reuters

Nesta pandemia é uso lavar as mãos, nas Páscoas é uso lavar os pés. Pôncio Pilatos, com o seu gesto, ficou na História por querer fugir à responsabilidade, não por querer fugir a algum vírus. Mas a historiografia mais recente põe em dúvida que o governador romano tenha manifestado a sua indiferença à sorte de Jesus com aquele teatral lavar de mãos que lhe é imputado.

"Lavar as mãos como Pôncio Pilatos" é uma expressão popular que significa fugir à responsabilidade de tomar decisões difíceis. O historiador italiano Aldo Schiavone, autor de um livro recente sobre a mal conhecida personagem de Pilatos, explicou em entrevista telefónica ao diário espanhol El Pais as conclusões a que chegou a partir das poucas fontes disponíveis sobre o político romano.

Schiavone dá crédito a uma parte do que relatam os evangelhos, escritos décadas depois da crucificação de Jesus, pelo menos na parte em que é possível cruzá-los com outras fontes: "Aquilo que se pode verificar costuma corresponder aos dados históricos". Mas o famoso gesto da lavagem de mãos, diz ainda o historiador, certamente foi inventado, porque nenhum governador romano o faria durante um julgamento. Trata-se, sublinha Schiavone, de "uma incongruência cultural e jurídica", por se tratar de "um gesto totalmente hebreu", não romano.

A explicação para os cronistas terem colorido o seu relato com esse detalhe inverosímil reside no interesse que havia em atenuar a responsabilidade dos romanos na execução de Jesus, num momento, já bastante posterior ao facto, em que se abriam ao cristianismo largas perspectivas de ser aceite no império romano. O reverso da medalha desta ficção foi o de ter favorecido o desenvolvimento do anti-semitismo cristão.

Mas outras deturpações da verdade histórica terão reforçado ainda mais esse anti-semitismo. A imagem transmitida pelos evangelistas Marcos e Mateus, de uma multidão ululante, a pedir a execução de Jesus, e a impor-se às hesitações de Pilatos, também é contestada por Schiavone como "outra falsificação". Os presentes ao julgamento terão sido provavelmente, segundo o historiador, "só os sacerdotes com um pequeno grupo". Estes sim, sentir-se-iam ameaçados pela popularidade e pela heterodoxia de Jesus, e teriam interesse em fazê-lo desaparecer da vida pública, com a cobertura das autoridades romanas.

Segundo Schiavone, Pilatos intuiu o perigo de ser instrumentalizado para um ajuste de contas do establishment judeu com um pregador indesejado. E por isso terá evitado pronunciar-se sobre a pena a aplicar-lhe, sendo mesmo possível que estivesse inclinado a indultá-lo. Mas por um lado terá havido pouco empenhamento de Jesus em defender a sua vida. Por outro lado, o receio de voltar contra os romanos a elite eclesiástica do judaísmo terá levado Pilatos a deixar andar o processo no sentido da crucifiação.

Mas essa atitude de deixar andar, nisso Schiavone é categórico, nunca naquela época, naquele lugar, e com aquele protagonista, se teria manifestado através de uma teatral lavagem de mãos.
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