Legado de Haile Selassie I revela dualidade, 50 anos após a sua morte

Cinquenta anos após a morte de Haile Selassie I, último imperador da Etiópia, que se assinala hoje, especialistas destacaram a dualidade do seu legado, marcado por avanços diplomáticos e modernização limitada, mas também repressão, escravatura e conflitos internos.

Lusa /
Foto: AFP

Em declarações à Lusa a propósito do 50.º aniversário da morte de Haile Selassie I, o professor do ISCTE -- Instituto Universitário de Lisboa, Manuel João Ramos, destacou que o reinado foi marcado por uma profunda contradição.

O imperador, segundo o especialista, consolidou o poder com base em "mecanismos tradicionais da administração" e promoveu uma "modernização muito moderada" que manteve escravatura até à invasão italiana.

Tafari Makonnen, mais conhecido por Haile Selassie, coroado em 02 de novembro de 1930, teve o reinado mais longo da história imperial da Etiópia, que durou mais de 44 anos, terminando em 12 de setembro de 1974 quando o regime foi derrubado por um golpe de Estado.

Durante o seu Governo, Selassie "procurou guiar a Etiópia no mundo em profunda mudança", declarou o especialista, enumerando alguns feitos, como a criação da primeira constituição e a integração do país no diálogo internacional, fazendo parte da Liga das Nações - antecessora da Organização das Nações Unidas (ONU).

Uma curiosidade no percurso, é que Selassie procurou uma propriedade em Sintra, Portugal, contou o professor, quando em 1935 foi obrigado a fugir do seu reino após a invasão violenta da Itália a comando de Benito Mussolini, acabando por exilar-se em Inglaterra.

A ocupação italiana no país africano foi marcada por "diversos massacres, diversos crimes de guerra", mas "criou a primeira vaga de modernização do país", eliminou "restos do feudalismo etíope" e procurou abolir a escravatura, salientou o especialista, acrescentando que esta presença "não foi vista por muita gente como negativa", pois libertou parte das populações rurais da repressão do Estado.

Selassie regressou a Adis Abeba em 1941, com o apoio britânico e também de forças judaicas, para evitar que a Etiópia se tornasse um protetorado inglês.

O regresso ao poder foi marcado por novas tensões, as "revoltas de muçulmanos e não-muçulmanos eritreus", tornando-se uma "ferida que nunca se fechou" e, consequentemente, uma das causas que levou à sua queda.

De acordo com o investigador, "a Etiópia não se via como um país africano, via-se como um país independente", sendo um dos países de África que nunca foi colonizado.

Manuel Ramos defende que a principal reforma de Selassie foi a nível internacional, justificando que o imperador percebeu a mudança geopolítica e reposicionou a Etiópia, assumindo um papel de destaque nos "não alinhados", conseguindo que a Adis Abeba fosse a sede da Organização de Unidade Africana (OUA) - antecessora da União Africana (UA).

Apesar dos triunfos internacionais, a situação interna do país deteriorou-se, com fomes, problemas laborais e a guerra da Eritreia, o que levo o comité militar DERC a depor o imperador em 1974.

"Não houve grandes manifestações de nostalgia ou sentimentos de perda" pela sua deposição e morte, disse o especialista, adiantando que algum saudosismo em relação à monarquia só emergiria após a queda do regime comunista em 1991.

Já o historiador especialista em matérias etíopes Ian Campbell reconhece que Selassie foi um modernizador e que "pode ser considerado o fundador da Etiópia moderna", pois "lançou importantes programas de desenvolvimento nos setores da agricultura e educação", e "tornou o país conhecido" internacionalmente.

Embora os avanços no país, a percepção do Negus (rei), 50 anos após a sua morte, é "agora muito mista", apontou Campbell, evocando um reinado "autocrático".

Atualmente, a Etiópia é o segundo país mais populoso do continente africano, com cerca de 130 milhões de habitantes pertencentes a comunidades culturais divergentes e com mais de 80 etnias.

Entre 2020 e 2022, ocorreu uma guerra civil na região norte do Tigray, que matou centenas de milhares de pessoas, bem como conflitos armados violentos na regiões mais populosas de Amhara e Oromia.

Desde 2018, o país é governado pelo primeiro-ministro, Abiy Ahmed, que recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2019, mas cuja governação tem sido marcada por tensões internas graves.

Nenhuma cerimónia oficial está agendada para assinalar a data da morte do imperador.

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