Mário Soares, o legado que fica em forma de arquivo

Em São Bento, junto à escadaria do Parlamento, encontra-se um fragmento do legado de Mário Soares, que morreu no passado dia 7 de janeiro. A fotografia do antigo Presidente da República na dianteira denuncia a localização da Fundação Mário Soares, uma instituição de direito privado, de utilidade pública e sem fins lucrativos que se dedica à preservação da memória e à sua dinamização dentro e fora de fronteiras.

Foi constituída a 12 de setembro de 1991, poucos meses depois do início do segundo mandato enquanto Presidente da República, mas só viria a desenvolver atividades arquivísticas e culturais mais ativas a partir da saída de Soares do Palácio de Belém.

Na cerimónia de inauguração, a 4 de junho de 1996, Mário Soares salientava o papel unicamente cultural da Fundação. "Uma obra feita por amor à cultura, à história e à formação dos portugueses", referia.

O que começou por ser um projeto de forma a disponibilizar a documentação privada de Mário Soares durante o processo de democratização do país acabou por se tornar um espaço de reunião para vários espólios nacionais e internacionais.

Foi o aglomerar de pedaços fulcrais da História contemporânea de Portugal, bem como do passado das antigas colónias portuguesas, que culminou no alargamento do espaço de intervenção desta fundação.

A disponibilização dos documentos ao público em geral e à comunidade de investigadores é um dos pontos de honra. O culto da memória, das origens e a partilha da história comum com a comunidade de países de língua portuguesa, um dos principais objetivos que a fundação mantém.

Num momento óbvio de transição e mudança, com a morte daquele que a pensou e orientou durante tantos anos, olhamos para esta instituição e para o trabalho que tem desenvolvido ao longo dos últimos anos. O futuro, esse, está ainda a ser pensado e estudado:

1. “Tivemos medo, mas ele não teve”
2. A recolha “aldeia a aldeia”
3. “Não é chegar lá e fazer umas digitalizações”
4. Memória comum e política externa “clara”
5. O Portal Casa Comum
6. Documentos disponíveis e "bem tratados"
7. O futuro da Fundação

“Tivemos medo, mas ele não teve”

Alfredo Caldeira, administrador do Arquivo e Biblioteca disponibilizado pela fundação, conta a história de longos anos em funções. Um trabalho que acompanhou desde início.



“Estou na fundação desde o seu início, há 20 anos. Começámos a discutir com o doutor Mário Soares o que é que se fazia do seu arquivo. Uma das prioridades da fundação era o tratamento do seu arquivo pessoal, sendo que o arquivo pessoal do doutor Soares ia desde os anos 40 até hoje”, relembra o responsável.

Desde o princípio, a fundação quis apostar na inovação: “Apresentámos-lhe um projeto de digitalização de documentos logo em 1995. Era quase pecado falar-se em digitalização, ninguém sabia o que era. Mas era a forma de rapidamente preservarmos e disponibilizarmos ao público os arquivos. O doutor Soares não sabia o que era a digitalização, como é evidente, mas percebeu o interesse que isso tinha”, explica.

Para Soares, o essencial era conseguir “abrir o arquivo em vida”. E foi o que a fundação tentou fazer, logo a partir de 1997, quando começou a abrir as primeiras partes do arquivo de um Presidente da República que acabava de sair de funções.

Mas o que começou por ser um arquivo pessoal - muito ao estilo das fundações dos presidentes norte-americanos quando abandonam a Casa Branca - acabou por se tornar numa outra coisa, atingindo uma dimensão que nunca alguém previra.

Quando a fundação mostrou trabalho, logo em 1997 com documentos digitalizados, começou uma “imparável catadupa”, que levantou desafios técnicos e financeiros de vária ordem.


“Percebemos a dimensão do que nos começava a chegar para tratar e tivemos medo. Mas ele não teve”, relembra o responsável, sobre a reação de Mário Soares no momento de arranque da fundação.

“Muita gente, pequenos, médios e grandes arquivos perceberam que esta era uma das vias e começaram a entregar-nos os seus documentos. Isso permitiu-nos alargar o leque de interesse. Hoje abarcamos todo o século XX, e não apenas Portugal. De uma forma geral, abarcamos todos os países de língua oficial portuguesa”, acrescenta.

Encarar os assuntos de frente, aceitando sempre colaborar com quem pedia apoio à fundação, foi a forma que se encontrou de conquistar credibilidade. Mesmo sem conhecer os aspetos técnicos, a ideia de abranger vários documentos de múltiplos países entusiasmou o histórico socialista, conta o responsável pelo Arquivo.

“O entusiasmo do doutor Soares foi sempre aí uma chave desse processo”, refere.

Fernando Rosas, historiador e professor catedrático, atualmente consultor da Fundação Mário Soares e presidente do Instituto de História Contemporânea, considera que, tratando-se de um acervo privado, “constituiu-se num arquivo absolutamente fundamental para a investigação da História contemporânea”.



“Criou-se em boa parte em torno do arquivo histórico do próprio doutor Mário Soares. A partir daí foi-se juntando uma coleção que hoje em dia atinge quase os 200 espólios.

Foi-se ponto à disponibilidade dos investigadores uma massa impressionante de documentos, quer fotográficos, quer escritos”, refere o historiador.


O arquivo principal, esse, continua a ser o próprio arquivo do antigo Presidente da República. Embora hoje já nem represente metade do total.

“Isso fascinava-o muito. Ele nunca esperou que de repente viessem outros espólios juntar-se ao dele”, refere Alfredo Caldeira.

A história do colonialismo português e dos movimentos de libertação nacional depressa se juntou ao arquivo do dirigente português. "A documentação de Amílcar Cabral e de Mário Pinto Andrade, por exemplo, foi em boa parte preservada, digitalizada e organizada por intervenção da Fundação Mário Soares", destaca Fernando Rosas.

Há mesmo arquivos ao dispor, pelo trabalho da fundação, que datam por exemplo da I República e que foram entregues pelos familiares dos protagonistas que intervieram na sua instauração. 

A importância deste arquivo vive, quanto mais não fosse, pela importância do arquivo privado, disponibilizado pelo próprio Mário Soares. “É um espólio indispensável para quem queira conhecer a história da oposição ao salazarismo e também a História já com a Constituição de 1976. “A quem queira estudar a História do século XX português, é muito difícil passar ao lado do arquivo da Fundação Mário Soares”, considera Fernando Rosas.



Mas o trabalho com as ex-colónias portuguesas é, como começamos a entender, absolutamente incontornável, quase omnipresente para quem trabalha na fundação. É, como veremos, uma das facetas mais relevantes na interação com estes países.

Ao entrarmos nas instalações da Fundação, por exemplo, encontramos atualmente um extenso portefólio sobre Samora Machel, uma das muitas exposições patentes ao longo do ano neste espaço.

O trabalho assinala o 30.º aniversário da morte do dirigente que encabeçou a Guerra da Independência de Moçambique e que acabaria por ser o primeiro Presidente do país, entre 1975 e 1986. São várias as fotografias captadas pelo fotógrafo chinês Kok Nam, que remetem para a história da vida deste político e combatente.


“A Fundação Mário Soares tem tido um papel não só na preservação dos espólios, como em dá-los a conhecer, como até em intervenções que permitem salvar essa documentação e divulgá-la”, refere Fernando Rosas, em declarações à RTP.

A recolha “aldeia a aldeia”


Quando começaram a chegar os primeiros arquivos, que se juntavam ao do antigo Presidente, a prioridade foi preservar tanto quanto possível.

“Em primeiro lugar, tínhamos de salvar os aquivos que estavam em perigo em muitos países. O caso por exemplo da Guiné-Bissau. O edifício onde estava o arquivo de Amílcar Cabral foi bombardeado e depois foi vandalizado. Ou o arquivo da resistência timorense, que foi preciso recolher quase aldeia a aldeia”, recorda Alfredo Caldeira.

Entramos na sala de edição da Fundação, onde os documentos são registados com recurso a avançadas técnicas de captação de imagem. O último documento a ser fotografado não surge em forma de texto. É uma bandeira de Timor-Leste encontrada no local do massacre de Santa Cruz, em Díli, no ano de 1991.



“O Caso de Timor é talvez o caso mais complicado, mas tem sido também o mais fascinante”, refere Alfredo Caldeira, que participou junto do Governo timorense no desenho e conceção do Museu da Resistência, em Díli.

O Massacre de Santa Cruz, a 12 de novembro de 1991, ocorreu durante o período da ocupação indonésia. O tiroteio das tropas indonésias sobre manifestantes timorenses, sobretudo jovens, fez pelo menos 250 mortos.

“Os timorenses recolheram roupas de várias vítimas. Guardaram-nas como coisa sagrada e depois quiseram expô-las no museu. É um trabalho que não para, que se vai desenvolvendo, discutindo, acrescentando”, relata Alfredo Caldeira.

A cooperação com o Governo de Timor, “talvez o Governo que mais apostou na preservação da sua memória recente”, é um dos pontos de honra da Fundação.


“É uma colaboração longa que dura desde finais de 2001, foi criar o arquivo e o Museu da Resistência timorense, em Díli, que é hoje um grande edifício. Além do museu, tem zonas para espetáculos, conferências, debates, salas para exposições. Todos os estrangeiros importantes que vão lá, vão mostrar-lhes o museu”, completa.

A aposta é sempre nos dois sentidos: salvaguardar e divulgar património comum. Por serem países onde os níveis de desenvolvimento cultural e conhecimentos técnicos são ainda baixos, impõem-se alguns desafios no trabalho de cooperação.

Com Angola, o tratamento do arquivo foi feito em Portugal. Na Guiné, a documentação foi examinada no próprio país, com a ajuda da fundação. Em Moçambique, observou-se um processo misto, com documentação a ser tratada de forma combinada, tanto em Lisboa como em Maputo.

“Em determinada altura não havia condições em Timor para guardar os documentos. As autoridades timorenses pediram que eles viessem para Lisboa por razões de segurança”, relembra o responsável pela gestão do arquivo. 

Garantidas as condições no país de origem, o arquivo é devolvido, já com um tratamento específico e padronizado, explica Alfredo Caldeira. “Neste momento, já estamos a devolver a Timor mais de metade do arquivo. Ou seja, já foram criadas condições em Timor-Leste para preservar os documentos. (…) Eu costumava dizer: vocês não podem receber os documentos de volta enquanto não tiverem condições físicas e de pessoal, o know-how para as receber. À medida que essas condições se realizam, é altura de receberem o que é vosso”.
“Não é chegar e fazer digitalizações”

O responsável pelo Arquivo & Biblioteca reconhece, no entanto, que este é um processo difícil. “Muitas vezes as nossas diferenças e problemas são de língua, em que as pessoas não dominam bem várias línguas, não apenas o português mas também as suas línguas maternas”.

Os obstáculos surgem também ao longo dos anos no que diz respeito aos conhecimentos técnicos.

“É um trabalho que exige muito tempo, uma formação continuada, exige uma formação nos dois sentidos, em que nós temos de saber quais são as dificuldades de apreensão do outro lado”, completa.

A partir do momento que há mais conhecimento, os quadros locais estão capacitados para adquirir mais conhecimentos e capacidade de escolha. “À medida que aprendem, vão também começar a pensar por si, a resolver por si”.

O processo é dinâmico e implica uma aprendizagem comum das diferentes culturas. Algo que em muito se deve ao próprio fundador, o ex-Presidente da República: “Isso tem muito a ver com o doutor Soares. Sempre se interessou por isso. Vamos acompanhar o processo, vamos dar conhecimento, torna-los independentes e criar coisas em que ambos tempos responsabilidade. Não é chegar lá e fazer umas digitalizações e está a andar”, refere.

“Em todas as ações de cooperação, tentamos que não seja uma coisa fechada, que mostre à população a própria riqueza do arquivo”,  acrescenta Alfredo Caldeira. 

Por esta preocupação latente no trabalho desenvolvido pela Fundação, Fernando Rosas considera que esta desenvolve, sobretudo nos países da lusofonia, “um alto serviço público ao país".


“A fundação não se limita a intervir para salvar fundos arquivísticos. Organiza-os, treina os naturais do ponto de vista do funcionamento dos arquivos. Faz formação (…) Simultaneamente, desenvolve atividade de divulgação cultural, ligada à história desses países e às suas relações com Portugal”, defende o historiador.

Sublinha ainda que, “se há algum organismo que tem contribuído de forma muito particular e decisiva para as relações entre os PALOP para a comunidade de língua portuguesa, é sem dúvida nenhuma o trabalho da Fundação Mário Soares”.

Em Timor, por exemplo, a fundação participou na organização de várias conferências anuais. A “Conferência Internacional sobre Memória e Identidade Nacional” reúne várias personalidades de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e é um evento nacional, com direito a alargada cobertura televisiva durante três dias.

Na Guiné, a fundação inaugurou no ano passado o primeiro memorial da escravatura e do tráfico negreiro, em Cacheu: “Tentámos colocar muita informação sobre a escravatura nos nossos países. Como circulou entre a Guiné, Brasil, Cabo Verde, Estados Unidos, Portugal, Espanha. Aquele memorial ajuda as pessoas a compreenderem a sua própria história”, explica Alfredo Caldeira.



“Fizemos uma coisa nesse memorial da escravatura que foi estudar um navio concreto. Quantas viagens tinha feito, quantos escravos levou em cada viagem, quem eram os comandantes, quais eram os percursos. Isso nunca tinha sido feito” refere.
Memória comum e política externa clara
E também porque não falamos apenas de arquivo no sentido estrito, mas também de atividades culturais e de formação, as dificuldades financeiras vão surgindo.

“Não é fácil, temos muita coisa por tratar e às vezes não temos meios para isso. Às vezes é complicado do ponto de vista financeiro. (…) As fundações em Portugal, a cooperação internacional, têm de ter apoios. Tivemos algum apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que foi cortado no último Governo. Isso deixou-nos, devo dizer, sem saber como continuar projetos que estavam em curso”, refere o responsável pelo arquivo sobre o período de entrada em funções do anterior executivo.

“Temos tido claras dificuldades na procura de financiamentos para esta linha da cultura, a linha portuguesa, da preservação da memória comum. Parece que não interessa a ninguém. E depois vemos outros países a entrar no terreno onde nós deveríamos estar”, critica Alfredo Caldeira.

Na visão do responsável, Portugal precisa de uma política externa “clara” nesta matéria, porque se não for cuidada, a ligação entre os países com passado comum vai desaparecendo.

“É preciso apostar na manutenção, na valorização da nossa memória comum, para o bem e para o mal. Fizemos coisas boas, fizemos coisas más. E esse é um esforço que tem de ser feito pelas pequenas e médias entidades, que deve fazer parte da política do Estado. Tem de haver uma clara compreensão das necessidades do país, de afirmação da nossa cultura e de elevação desses países”, refere.

“Não penso que seja o Estado que tem de pagar. Tem é de haver um entendimento do que queremos fazer, enquanto país. Falta organizar e ver que financiamento é possível, ver que entidades estão a trabalhar em determinado campo. Por vezes o que falta é coordenação”, esclarece Alfredo Caldeira.

Para o responsável, este tipo de trabalho envolve “necessariamente” o Estado. “Não faz sentido estarmos aqui dois ou três a conversar e o Estado a assobiar para o lado”, completa.



A título de exemplo, Alfredo Caldeira recorda a comemoração conjunta dos 500 anos da chegada dos portugueses a Timor com o 40.º aniversário da independência de 1975, num momento em que Portugal mal se interessou pelo assunto.

“Fizeram um monumento, uma caravela em cobre de tamanho natural. Portugal ligou muito pouco a isso, e deveria ter sido o contrário. Falar da chegada dos portugueses, com os seus prós e contras, e ao mesmo tempo da independência e da ocupação. Isso é olhar para o futuro”, considera.

A questão da escravatura, por exemplo, é um tema que a Fundação pretende desenvolver, explica Alfredo Caldeira. “É uma linha que queremos continuar a tratar, os portugueses assobiam um bocado para o lado. Mas houve escravos, nós nem nos lembramos disso. Temos de ter noção de que isto não começou bem. Quando chegámos a Timor, a primeira caravela que lá chegou, a primeira coisa que fez, foi raptar 30 escravos. Hoje podemos ver isso de outra maneira, já podemos incorporar visões do outro, se Portugal, o Governo, as instituições, entendem que esse é um dos caminhos”.

No Relatório e Contas da Fundação referente a 2015, o mais recente disponibilizado ao público, pode ler-se que as “ações de cooperação internacional prosseguidas pela Fundação em diversos países lusófonos” prosseguiram nos últimos anos. Isto apesar “da falta de resposta do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal” a um pedido de renovação do Protocolo de Cooperação, que vigorou até ao ano de 2014.

“O Arquivo & Biblioteca procurou mitigar os efeitos negativos que uma interrupção abrupta poderia ter no desenvolvimento de várias iniciativas em curso”, acrescenta o documento.

Contactado pela RTP e após várias insistências, o Ministério dos Negócios Estrangeiros não se mostrou disponível a responder às perguntas em tempo útil.

“As dificuldades de financiamento dos últimos anos que tem havido na fundação dificultam o tratamento e a abertura ao público de todos estes espólios. Há uma parte deles que não há condições para serem abertos”, salienta o historiador Fernando Rosas, que trabalha de perto com o material da instituição para o desenvolvimento do seu trabalho.


Para quem estuda períodos históricos como o Estado Novo ou a história do colonialismo português, a documentação da Fundação Mário Soares é de importância vital, assume Fernando Rosas, autor de variadas obras e publicações que versam especificamente este período histórico.

“Não sendo um arquivo sobre o Estado Novo, é um arquivo sobre a oposição ao Estado Novo, a oposição do MUD juvenil durante a II Guerra Mundial, a documentação das organizações a que Mário Soares esteve mais ligado, não só do Partido Comunista mas organizações como a resistência republicana e socialista. A fundação tem coleções documentais absolutamente essenciais de se consultar”, refere, acrescentando que esta documentação abrange as várias correntes de oposição.


A correspondência privada de Mário Soares, igualmente disponibilizada pela Fundação, também assume importância para quem queira estudar o período de transição entre a ditadura e a democracia em Portugal. “A correspondência que o doutor Mário Soares trocava com os homens da oposição, com os democratas do mundo inteiro. Desde à América, a Inglaterra, a Alemanha, a França, quer estivesse cá ou no exílio”, completa Fernando Rosas.
O Portal Casa Comum
Do trabalho da fundação, o historiador Fernando Rosas destaca o portal Casa Comum, que disponibiliza ao público cerca de 1,6 milhões de documentos.

“O Portal Casa Comum é uma coisa única em Portugal, não há nada semelhante. (…) É uma grande realização e um grande auxiliar para a investigação de qualquer período histórico”, refere o historiador.


Fernando Rosas destaca também o recente trabalho de digitalização de fotografias com uma coleção de imagens do século XX que designa como “absolutamente notável”.

“O portal Casa Comum nasceu da necessidade de pormos online documentação quer da Fundação Mário Soares, quer de outros arquivos. Foi criado quase como uma comunidade de arquivos de língua portuguesa. Há arquivos de vários países que confluem no mesmo portal”, explica Alfredo Caldeira.

Foi a aposta na disponibilização total dos arquivos. “Isto não está ali num cantinho escondido, isto é para que os cidadãos em geral e os investigadores, em particular, possam estudar”, explica.

O acesso a estes arquivos tem contribuído para a realização de dissertações e teses académicas. “Isso para nós é uma grande vitória”, acrescenta o responsável. Mesmo nos países de língua oficial portuguesa onde o acesso à internet é mais limitado regista-se uma afluência de acessos à documentação da Fundação Mário Soares.

“Neste momento, cerca de 16 por cento dos acessos já são de países de língua portuguesa, excepto Portugal. Isto com as dificuldades de Internet que muitos desses países têm”, refere Alfredo Caldeira.

A acumulação de espólios tem sido um processo em crescendo desde o início da atividade da fundação, com novos documentos e espólios à espera de serem tratados e dinamizados. O portal conta também com um conjunto de documentação de um projeto europeu em que a fundação participou – o HOPE (Heritage of European People) – com mais de dois milhões de documentos.

Esse projeto concreto durou três anos e contou com a colaboração de dez diferentes arquivos a contar a história de lutas políticas e sindicais do século XX. 

“Penso que essa é que é a riqueza deste trabalho. É criar plataformas comuns de colaboração com outras entidades, públicas e privadas, nacionais e internacionais, em que no fim de contas temos o mesmo objetivo que é enriquecer o conhecimento das pessoas em geral e em especial dos investigadores", refere Alfredo Caldeira.

Não obstante a acumulação de documentos e espólios, e apesar da magnitude cada vez mais abrangente do arquivo, não há por parte da Fundação, qualquer pretensão de concorrer com outros arquivos, sobretudo nacionais.


“Nós nunca quisemos concorrer com uma coisa como a Torre do Tombo. A Torre do Tombo refere-se à administração do país. Aqui temos um arquivo feito de pequenos e médios arquivos, nacionais e internacionais”, explica Alfredo Caldeira. 
Documentos disponíveis e "bem tratados"

É nesse sentido que ouvimos também Silvestre Lacerda, diretor-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e responsável pelo arquivo nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, que diz que a colaboração profícua com a Fundação Mário Soares já decorre há vários anos.



“Vamos acompanhando o trabalho que era realizado em particular na área dos arquivos, mas não só. Mesmo de várias iniciativas que tomaram, de homenagem a várias figuras. Mas naturalmente a atenção maior que temos é sobre os vários documentos de arquivo que eles foram recolhendo”, refere.  

O arquivo da Fundação Mário Soares, salienta, é constituído, grosso modo, pelos arquivos privados, os arquivos particulares. “São os nossos documentos de todos os dias, que vamos produzindo. Aqui na Torre do Tombo também temos vários arquivos particulares, mas ficamos sempre entusiasmados quando outros assumem também essa responsabilidade de recolha, de tratamento e sobretudo de disponibilização de documentos”, refere o responsável da DGLAB.


Silvestre Lacerda, que recorda episódios de colaboração e apoio técnico no âmbito da definição de critérios de digitalização, bem como na divulgação conjunta do arquivo comum, em diálogo. Por exemplo, se a Fundação Mário Soares conta com a documentação da oposição à ditadura, a Torre do Tombo consegue complementar as informações com a disponibilização de todo o arquivo da PIDE.

Silvestre Lacerda espera, acima de tudo, o cumprimento de dois fatores fundamentais pela Fundação Mário Soares, tal como de outras fundações nacionais: que os documentos estejam “bem tratados e acessíveis”.


“Esse é um motivo de congratulação do arquivo nacional face aos trabalhos que vão sendo desenvolvidos, desde que esteja garantido este aspeto importante que é o do acesso dos cidadãos a essa mesma documentação”, acrescenta.

Para conhecer com máxima abrangência aquilo que Silvestre Lacerda designa como “o pulsar da sociedade”, é importante sobretudo a salvaguarda e organização dos arquivos privados, saudando por isso as instituições “vocacionadas e sensibilizadas para a recolha destes documentos”.



Mas é também necessário que elas estejam aptas a permitir o seu acesso. “Não adianta termos todos em casa muitos tesouros se eles depois não puderem ser explorados, não puderem ser devolvidos à sociedade”, refere Silvestre Lacerda.

“Todos os trabalhos são trabalhos importantes, mas com esta questão essencial que é a do acesso e da disponibilização da informação que se vai recolhendo e que se vai tratando”, completa o diretor-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, sob a chancela do Ministério da Cultura.

Na entrevista à RTP, Fernando Rosas salienta precisamente essa incapacidade da Fundação em tratar determinada docmentação. “Provavelmente alguns desses espólios oferecidos, aqueles que de todo não é possível tratar, mais-valia que fossem para o arquivo nacional da Torre do Tombo”, considera o historiador.
O futuro da Fundação
Mário Soares ocupou desde o início da fundação o cargo de presidente vitalício. Agora, sem o principal mentor da instituição, fica a pergunta: qual poderá ser o futuro deste legado deixado pelo antigo Presidente da República?

Em junho de 2016, o Diário de Notícias dava conta de uma “duplicação de prejuízos” da fundação, entre 2014 e 2015. Segundo o jornal, o défice passou de 103 mil euros para 210 mil euros.

De facto, no relatório e contas de 2015, publicado em abril do ano passado e que já aqui mencionámos, alertava-se para a necessidade de uma redefinição “urgente” da estratégia.



“A redução das receitas da Fundação e uma estrutura a que não são alheios a manutenção e funcionamento dos três edifícios por que se distribuem os seus serviços e recursos humanos, traduziu-se num resultado negativo do exercido findo em 31 de Dezembro de 2015, acentuando a tendência que já se verificara no ano anterior”, refere o documento.

Além do edifício em Lisboa, a Fundação conta também com um espaço em Cortes, Leiria, doado pela família Soares, onde estão instalados a Casa-Museu da Fundação Mário Soares e o Centro Cultural João Soares. Um espaço que tem servido como biblioteca e para exposições, muito ligado à figura do pai de Mário Soares, que foi ministro e ativista política durante a I República.

Reconhece-se, ainda no mesmo relatório, que os efeitos de “medidas de contenção” tomadas em 2011 e 2012 “não se revelaram suficientes”.

Os dirigentes da Fundação consideravam que seria “necessária e urgente” uma “redefinição da sua estratégia”, bem como “uma estrutura orgânica mais leve do que a atual”, numa gestão operacional pautada por “critérios de maior rigor” e orientada pelas “restrições orçamentais a que o seu funcionamento e atividade” teriam de obedecer.

“As dificuldades que o país conheceu nos últimos anos – sobretudo de ordem mas de natureza financeira e económica na raiz – se vêm fazendo sentir na fundação”, o que teve repercussões “negativas” como por exemplo “a progressiva diminuição das receitas provenientes de contribuição regulares ou ocasionais e de apoios mecenáticos”, lê-se no relatório, disponível na página da internet da própria fundação.


Silvestre Lacerda, diretor do Arquivo nacional, mantêm a confiança neste período incerto. "Faz sentido que a fundação encontre as soluções que são necessárias, normais, dentro dos seus estatutos, para a continuidade em termos de trabalho. Nós não temos, neste momento, nenhuma indicação diferente daquela que havia enquanto o Dr. Soares era vivo. Portanto, continuamos a acompanhar o trabalho normal, natural, e de colaboração com a própria fundação”, refere.



Sobre o futuro, Alfredo Caldeira descarta-se de qualquer posição enquanto os órgãos sociais da Fundação esboçam planos para o futuro, mas assume o peso enorme de uma perde recente. “Falta-nos o doutor Soares. Todo o trabalho que fizemos no arquivo sem ele não era possível. Foi o entusiasmo e apoio dele, e nem sempre estávamos de acordo. E não é apenas o arquivo, também são todas as atividades culturais que o rodeiam. 

No entanto, mantém-se o otimismo perante as dificuldades. "Penso que isso vai ser preservado. Qual é o modelo exato eu não sei dizer. É uma conversa que vai demorar algum tempo”, sublinha Alfredo Caldeira.

Contactado pela RTP, Carlos Monjardino, membro do Conselho de Administração e presidente da Fundação Oriente, não quis prestar declarações sobre o futuro da fundação, ao considerar “prematuro” falar num momento em que o Conselho de Administração está a discutir e a deliberar sobre a restruturação, no sentido de fortalecer relações com parceiros.

Carlos Barroso, secretário-geral da Fundação Mário Soares e sobrinho do antigo Presidente da República, também não se quis pronunciar por considerar o atual momento "inoportuno", uma vez que o Conselho de Administração ainda delibera sobre o futuro da fundação.

Isabel Soares, filha de Mário Soares e vice-presidente da Fundação, não respondeu aos nossos pedidos de entrevista, tal como o irmão, João Soares, que não se quis sobrepor com declarações especulativas, perante a ausência de declarações por parte do Conselho de Administração.

De realçar que composição do órgão principal da fundação tem-se mantido inalterada ao longo dos últimos anos. A última mudança foi precisamente a saída de João Soares, que deixou a posição de vogal no Conselho de Administração aquando da tomada de posse do Governo de António Costa, em novembro de 2015, para ocupar o cargo de ministro da Cultura. A vaga não foi preenchida. 


Na visão de Fernando Rosas, que entrevistámos enquanto consultor da Fundação, mas também enquanto investigador e utilizador do material disponibilizado, a Fundação Mário Soares “presta um elevado serviço público à cultura do país”.

“Por isso, e até como homenagem à memória do doutor Mário Soares, vai ter de continuar. E vai ter de continuar, no meu modesto entender, com o apoio estatal. Manter uma fundação com o nível de atividade que a FMS tem as dificuldades. Mas o país precisa de cultivar a sua memória na defesa da democracia, na divulgação da nossa história recente”, considera.


Na mesma linha e apesar das dificuldades, Alfredo Caldeira, interveniente no Arquivo e, por contiguidade, na cooperação com os países que pedem apoio a fundação, está otimista quanto aos próximos passos da fundação: “É uma fundação que muito deve ao doutor Soares, que a pensou, que a entendeu. Mas estou confiante que vai continuar o seu papel cultural, não só em Portugal, mas nos outros países de expressão portuguesa”.