Marlene Monteiro Freitas, língua árabe e caso Pelicot vetores do Festival d´Avignon
O diretor do Festival d`Avignon, Tiago Rodrigues, classificou a participação de Marlene Monteiro de Freitas, como artista cúmplice, a língua árabe e "O Processo Pelicot" os três "vetores essenciais" da 79.ª edição do certame, que começa hoje naquela cidade francesa.
Em entrevista à agência Lusa, Tiago Rodrigues disse que o festival tenta responder, em primeiro lugar, "às responsabilidades históricas" do certame, que são as de criação, pelo que a maioria da programação é composta por espetáculos em estreia mundial.
"Julgo que um dos espetáculos que vai marcar a edição deste ano, no Cour d`Honneur do Palácio dos Papas, o palco principal, é uma criação de Marlene Monteiro Freitas [...], `Nôt` [Noite, em crioulo cabo-verdiano], que se inspira na questão da noite dos espetáculos, das histórias, da noite como alternativa à vida quotidiana, mas também n``As mil e uma noites`, obra-prima da língua árabe [...], e com a qual a coreógrafa quis estar em contacto", frisou Tiago Rodrigues.
"Nôt", espetáculo de abertura desta edição do festival, terá mais cinco récitas, até dia 11.
Um "momento importante", tanto para o festival como para o percurso de Marlene Monteiro Freitas, "que tem tido um grande reconhecimento internacional, inteiramente merecido", pois é "uma das grande artistas do nosso tempo", sublinhou o diretor artístico de Avignon, sobre a coreógrafa distinguida pela Bienal de Dança de Veneza.
Marlene Monteiro Freitas foi também desafiada a convidar outros artistas, e as suas escolhas "irrigam toda a programação desta edição do Festival", disse Tiago Rodrigues à Lusa, numa entrevista por telefone.
Além de ser a primeira cabo-verdiana a estrear-se em Avignon, no Palácio dos Papas, o lugar mais simbólico do festival, talvez por "coincidência poética e histórica" fá-lo quando no dia em que se assinalam os 50 anos da independência de Cabo Verde, destacou Tiago Rodrigues,
Entre os artistas escolhidos por Marlene Monteiro Feitas contam-se a cantora cabo-verdiana Mayra Andrade, que no dia 12 dará um concerto, no Palácio dos Papas, assim como o realizador Pedro Costa, "fonte de inspiração" para a coreógrafa, que terá um ciclo de cinco filmes em que ganham voz "populações mais desfavorecidas de Lisboa e dos imigrantes cabo-verdianos", como "Juventude em Marcha" e "Vitalina Varela".
Por iniciativa de Marlene Monteiro Freitas, o filósofo e historiador de arte francês Georges Didi-Huberman também estará no Café das Ideias, e o coreógrafo e bailarino libanês Ali Chahrour apresentará em Avignon "Quand j`ai vu la mer", em quatro récitas, até dia 08, a partir de hoje.
A dupla de performers Jonas & Lander, com "Coin Operated", no Mahabharata, bar du festival, em cena nos dias 08 a 12, é outra escolha de Tiago Rodrigues, para uma edição que terá "uma presença portuguesa e cabo-verdiana muito forte".
O árabe, língua convidada -- a quinta mais falada no mundo e a segunda em França -- é outra das apostas a permitir "momentos altos" em Avignon, que Tiago Rodrigues fez questão de sublinhar.
Admitindo terem sido avisados de que podiam arranjar problemas, ao tomar a língua árabe por convidada, o diretor do festival disse à Lusa que foi exatamente por isso que insistiram na escolha - até porque convidar a língua árabe é convidar "toda a diversidade", recusando "visões estreitas, racistas e xenófobas" que marcam a sociedade atual, insistiu.
Além do mais, a língua árabe "é uma fonte de riqueza que tem de ser descoberta, mesmo quando consideramos que estamos [perante] qualquer coisa longe de nós", defendeu Tiago Rodrigues.
Outro dos momentos do Festival destacados pelo seu diretor artístico é a apresentação de "Le procès Pelicot" ("O processo Pelicot"), uma homenagem a Gisèle Pelicot, cidadã francesa violada, entre 2011 e 2020, pelo marido e pelo menos mais 83 homens que este convidou através da Internet.
Ao pôr em cena "O processo Pelicot, no dia 18, no Cloître des Carmes, com mais de cinquenta atores e personalidades francesas a lerem partes do julgamento ocorrido em Avignon, que ficou conhecido como "As violações de Mazan", o encenador e dramaturgo suíço Milo Rau "imita aquilo que Gisele Pelicot fez ao aceitar tornar públicos crimes horríveis". "Mudar a vergonha de lado", passá-la para o quem de direito, para o perpetrador.
Neste espetáculo, coproduzido pelos festivais de Viena e de Avignon, que teve antestreia em Viena, em maio último, Milo Rau teatralizou o que se passou ao longo do processo de julgamento do ex-marido de Gisèle, Dominique Pelicot, condenado à pena máxima em dezembro último, num processo que condenou outros 50 homens.
O espetáculo cumpre a declaração de Gisèle - "A vergonha tem de mudar de lado", ao permitir que o julgamento fosse público, e consta da "leituras de interrogatórios, súplicas e comentários sobre o caso histórico", numa investigação feita junto de "advogados da família Pelicot, do tribunal, de especialistas em psicologia, taquígrafos, testemunhas e associações feministas, para relatar o julgamento de um sistema: o patriarcado."
Com "O processo Pelicot" em palco, há também o "desejo que essa dimensão pública pudesse ajudar a uma mudança social para que `a vergonha mude de campo`", frisou Tiago Rodrigues.
Ao permitir que as audiências de julgamento fossem públicas, Gisèle Pelicot "tranformou num teatro o Tribunal d`Avignon", onde decorreu o julgamento, sustentou Tiago Rodrigues, alegando que as pessoas também iam assistir ao julgamento com o sentido de que "a sociedade possa continuar a evoluir".
"Reconhecemo-nos nesse gesto, queremos apoiar esse gesto [Gisèle] e fomos ao ponto de o imitar", sublinhou o responsável do Festival que sabe que o espectáculo "choca e perturba", mas que também, graças a isso, "contribui para que a vergonha continue a mudar de campo".
Tiago Rodrigues acredita que "a melhor homenagem" que podem fazer a Gisèle Pelicot "é continuar a tornar pública a sua história, imitar e apoiar o seu gesto e exigir que, não só quem está no publico, mas também as dezenas ou centenas de milhares que vão poder ver esta leitura em `streaming` ao vivo na internet ou em salas de cinema - pois o certame irá projetá-lo à mesma hora que acontece no Cloître des Carmes -", reconheça esse gesto, e que o espetáculo continue "a tocar as pessoas da mesma forma, quando o processo aqui em Avignon tocou o mundo e transformou a cidade onde estamos."
Tiago Rodrigues lembrou que estava em Avignon enquanto o julgamento decorria, e "via uma cidade que se sentia envergonhada com as primeiras notícias", por uma coisa "tão horrível se ter passado lá", e como, ao longo das semanas que durou, "essa perceção evoluiu lentamente para uma espécie de orgulho por esta mulher ter tomado a decisão de fazer isto aqui; como o tribunal se foi enchendo e como Gisèle ia sendo cada vez mais aplaudida sempre que chegava".
"Recuperar este processo e torná-lo audível de novo é também celebrar uma transformação que nós desejamos mundial, que desejamos nacional, evidentemente, mas que é também uma transformação local desta cidade de Avignon onde este processo histórico aconteceu", concluiu Tiago Rodrigues.
Mais de quarenta espetáculos de teatro, dança, ópera e multidisciplinares fazem a 79.ª edição do Festival d`Avignon, a decorrer a partir de hoje, até 26 de julho.
Neste festival, Tiago Rodrigues estreará a sua nova criação, "La distance", que terá 17 representações, nos dias 07 a 26, no L`Autre Scène du Grand Avignon. Com ação passada em 2077, num "cenário distópico, mas não improvável", a nova peça do encenador e dramaturgo português "explora as consequências das escolhas [de cada um], assim como a possibilidade de comunicação entre gerações", como consta na sinopse.
Interpretada por Adama Diop e Alison Dechamps, "La distance", falada em francês e legendada em português, é produzida com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian Paris.
Depois de Avignon, "La distance" iniciará uma digressão internacional por estruturas coprodutoras da obra, que incluem o festival checo Divadlo e o teatro Plovdiv da Bulgária, o Théâtre Vidy-Lausanne, o Centro Dramático de Madrid e o Teatro Lliure de Barcelona, o Onassis Stegi de Atenas, o Piccolo Teatro de Milão, além de uma dezena de palcos franceses e da portuguesa Culturgest.