Migrações, feminismo, crítica social e redescobertas literárias na `rentrée` da Antígona

Migrações, máquina estatal russa, crítica ao capitalismo e vozes feministas atravessam o plano editorial da Antígona, que até novembro traz Taina Tervonen, Dária Serenko e Nancy Fraser, a par da redescoberta literária de Janet Frame e Goliarda Sapienza.

Lusa /

"Os vigilantes", que já se encontra nas livrarias, marca a estreia em Portugal da jornalista independente e documentarista finlandesa Taina Tervonen, que nesta obra de relato e reportagem aborda a questão dos migrantes que atravessam o Mediterrâneo, e dá voz a um grupo que, entre França e o Senegal, acompanha estas viagens de risco e regista a memória dos que morreram.

"Existem em todo o mundo vigilantes, resistentes na sombra que, a título individual, trabalham em prol de mais humanidade nas fronteiras e de mais respeito pelos mortos", descreve a editora, destacando que "os mortos e os desaparecidos nas fronteiras não são uma fatalidade, mas a consequência de opções políticas feitas em nosso nome".

Esta obra, da premiada jornalista, dá voz a essa rede informal que, à distância e munida de simples aparelhos de comunicação, acompanha estas viagens de risco e regista a memória dos que morrem às portas "de uma Europa convertida em fortaleza".

Em vários locais -- da França ao Senegal -- estes resistentes lutam para salvar barcos em perigo, auxiliam famílias angustiadas em terra, dão nome e dignidade a quem morre no mar, agindo "onde os Estados falham" e constituindo-se como "uma réstia de luz" nas fronteiras.

Outro nome que se estreia em Portugal é o da poetisa russa Daria Serenko, também ativista feminista, curadora e artista pública, com uma edição dupla, composta por "Meninas e instituições" - publicado em russo em novembro de 2021 -- e por "Desejo cinzas à minha casa" -- lançado em 2022 -, que começou como um manuscrito feito durante a detenção da autora.

A primeira parte do livro traça o retrato afetivo de uma geração de funcionárias na máquina estatal de Putin, uma realidade que Daria Serenko conheceu de perto e que aborda com ironia, raiva e humor: "A miríade de tarefas absurdas, a misoginia e o assédio dos superiores, em bibliotecas, museus e noutras instituições, mas também a solidariedade que une estas mulheres".

"Desejo cinzas à minha casa" narra a experiência da autora numa prisão russa, na véspera da invasão da Ucrânia, e converte-se numa reflexão sobre o horror da guerra, a instrumentalização da morte, o exílio e a identidade.

Muitos editores e críticos classificam este livro, quanto ao género, como híbrido, vagueando entre romance, diário e poema em prosa.

Ainda neste mês, chega também às livrarias "Sexografias" (de 2008), da jornalista e escritora peruana Gabriela Wiener, um conjunto de crónicas de jornalismo gonzo (estilo escrito sem pretensões de objetividade, usando muitas vezes o repórter como parte da história), nas quais a autora dá "um salto sem rede no mais fundo da sexualidade contemporânea, com as suas obsessões e alegrias", descreve a Antígona.

Seja numa prisão peruana, num ritual de `ayahuasca` na selva amazónica, ou no Bois de Boulogne, entre prostitutas e travestis, estas "crónicas íntimas e carnais" exploram abertamente a sexualidade e o prazer, sem seguir convenções nem evitar assuntos tabu.

O mês de outubro traz consigo "Jardins perfumados para os cegos", um romance de Janet Frame, escritora neozelandesa que foi diversas vezes apontada para o Prémio Nobel da Literatura, e que morreu em 2004, aos 79 anos,

Com este romance, a Antígona recupera a obra de Janet Frame, que fez da literatura uma estratégia de sobrevivência, vencendo estigmas sociais e reescrevendo a sua história como uma das maiores autoras neozelandesas do século XX, prevendo ainda publicar em 2026 os seus melhores contos.

Eternizada na autobiografia "An Angel at My Table" ("Um Anjo à Minha Mesa") e no aclamado filme homónimo de Jane Campion, Janet Frame converteu um passado de pobreza e doença mental em literatura única e intensa.

Internada num hospital psiquiátrico em Dunedin -- experiência narrada em "Faces in the Water" (1961) --, foi literalmente salva pela escrita, quando a atribuição de um prémio literário ao seu primeiro livro -- "The Lagoon" (1951) -- evitou que fosse submetida a uma lobotomia.

Janet Frame elegeu a literatura e a imaginação como um porto seguro e, na sua obra, questionou as fronteiras entre sanidade e loucura, e o estigma social que paira sobre os ostracizados.

"Jardins perfumados para os cegos" (1964) revela a vida da família Glace -- Erlene e a sua mudez voluntária, e os pais Vera e Edward --, a incomunicabilidade e a solidão que a atingem.

Outra novidade deste mês é a reedição do há muito esgotado "Marcas de Batom. Uma história secreta do século XX", da autoria do crítico musical Greil Marcus, uma viagem à descoberta da origem da força, do poder e do niilismo dos Sex Pistols.

Um dos destaques de novembro é "Capitalismo canibal", da filósofa e escritora norte-americana Nancy Fraser, descrito pela Antígona como um "livro imprescindível para quem quer compreender o capitalismo contemporâneo, omnívoro e alarve".

"Se à crise climática atual acrescem crises económicas sucessivas e hostilidades face a minorias, `Capitalismo canibal` (2022) traça a linha que une todos os pontos: um modelo económico devorador, destinado a envenenar a prática política e a arruinar a nossa capacidade de cuidar dos outros", acrescenta.

Este ensaio representa uma aturada síntese do labor investigativo de Nancy Fraser, destacada teórica marxista e feminista norte-americana, professora de Filosofia e de Ciência Política e Social na New School, de Nova Iorque, que trabalha sobre a relação do capitalismo com a opressão racial, a crise ecológica, os movimentos feministas e a ascensão do populismo de direita.

Ainda em novembro, chega às livrarias "A Universidade de Rebibbia" (1983), com o qual a Antígona prossegue a publicação do ciclo autobiográfico da escritora italiana Goliarda Sapienza (1924-1996), depois de ter publicado "Carta aberta", em 2023.

"A Universidade de Rebibbia" é o relato literário dos meses de reclusão que a autora passou numa prisão feminina no nordeste de Roma e uma homenagem a mulheres rebeldes e inconformadas.

Um duro retrato do quotidiano atrás das grades e a descoberta, entre risos, lágrimas e silêncios partilhados, de uma nova vida em comunidade, menos fria e indiferente do que a existência em sociedade.

Com a publicação deste ciclo biográfico -- composto por cinco momentos diferentes e intitulado "autobiografia das contradições" -, a Antígona dá a conhecer aos leitores portugueses a obra de uma romancista e poeta que se firmou como um dos espíritos mais insubmissos da literatura italiana do século passado.

Oriunda do meio socialista anarquista siciliano, atriz em filmes de Visconti e Maselli, Goliarda Sapienza viveu na clandestinidade quando a guerra eclodiu e conheceu hospitais psiquiátricos, depois de várias tentativas de suicídio.

Na obra que deixou, tão intensa como a sua biografia, destaca-se o romance "A Arte da Alegria", escrito ao longo de mais de dez anos e publicado postumamente, que foi considerado imoral e rejeitado por vários editores italianos, tendo ganhado destaque e reconhecimento apenas quando foi publicado em França, em 2005 (sete anos após a publicação em Itália).

Até a Antígona começar a publicar outras obras de Goliarda Sapienza, este romance era o único livro da autora italiana em Portugal, editado em 2009 pela Dom Quixote, que o reeditou em março deste ano.

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