"Não é anti-semita, caso contrário não teria decidido encená-la"
Porto, 06 Nov (Lusa) - O Teatro Nacional São João estreia sexta-feira o novo espectáculo de Ricardo Pais, uma versão livre de "O Mercador de Veneza", de William Shakespeare, um texto que o encenador considera "perigoso e alucinante".
Ricardo Pais contesta as conotações anti-semitas que normalmente estão associadas a esta obra de Shakespeare. "Não, não é anti-semita, caso contrário não teria decidido encená-la. Mas não deixo de ter receio do modo como possa ser recebida", afirmou.
Para Ricardo Pais, "o que se acrescenta a este texto de Shakespeare é a própria História, é o facto de todo um povo, toda uma `nação` ter sido martirizada de forma bárbara, com o apogeu que foi o Holocausto".
Escrita entre 1598 e 1598, esta obra é classificada como uma comédia mas é sobretudo lembrada pelas suas cenas dramáticas e pela personagem do agiota judeu Shylock, papel aqui desempenhado por António Durães.
A personagem principal é, no entanto, o mercador António (Albano Jerónimo), e não Shylock, o vilão mais importante da peça, um homem atormentado mas também atormentador.
Na trama, António, rico mercador momentaneamente com falta de dinheiro, quer ajudar Bassânio (Pedro Almendra) a conquistar Pórcia (Micaela Cardoso), pelo que pede um empréstimo a Shylock, a quem tinha tratado mal por ser judeu.
O agiota acede, mas exige como garantia meio quilo da própria carne do mercador, a mais próxima do coração. Este aceita, confiando que a garantia não será necessária.
A versão livre deste texto de Shakespeare era um projecto há muito pensado por Ricardo Pais. Agora é retomado com base numa tradução inédita de autoria de Daniel Jonas e um elenco de criativos composto por Pedro Tudela (cenografia), Bernardo Monteiro (figurinos), Vítor Rua (música), Francisco Leal (desenho de som) e Nuno Meira (desenho de luz).
A versão de Ricardo Pais assenta em alguns cortes e numa redisposição das cenas originais e cujo principal efeito é a concentração de toda a primeira parte do espectáculo em Veneza, com a acção centrada na história do "vínculo" contratual entre António e Shylock, e da segunda parte em Belmonte, em torno de Pórcia, dos cofres e da história de amor com Bassânio.
O encenador considera que "esta peça baralha as coordenadas da alteridade nacional, rácica, religiosa e sexual", sendo, toda ela, "sobre a ambivalência, ou melhor, as ambivalências deste mundo".
Neste sentido, reconhece que "tudo isto torna O Mercador de Veneza uma peça sensível, naturalmente" mas o que a peça faz é "mostrar o preconceito, ao mesmo tempo que dramatiza a ideia de que um ódio tão inteligente como o de Shylock é capaz de um discurso espantosamente claro sobre a lei de Veneza".
O encenador frisa que "outra coisa é a história interpretativa da peça e o modo como ela foi por vezes apropriada e admirada, o que explica compreensíveis dificuldades de aceitação da peça por parte da comunidade judaica".
No decurso da apresentação deste espectáculo, o TNSJ promove um ciclo de conferências intitulado "Tu Judeu e Eu Judeu" que remete para a obra "O Mercador de Veneza" e a Questão Judaica.
Estes encontros serão realizados no Salão Nobre do TNSJ nos dias 13, 14 e 15 de Novembro e contam com as participações de Elvira Mea, Esther Mucznik, Paulo Eduardo Carvalho, Richard Zimmler, José Tolentino Mendonça e Janet Adelman, autora do livro "Blood Relations: Christian and Jew in The Merchant of Venice", sobre esta peça.
PF.
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