Nélio Saltão, "croupier" e pintor autodidacta

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** Raul M. Marques, da Agência Lusa **

Lisboa, 09 Fev (Lusa) - Quando trabalhava como «croupier» no Casino Estoril, Nélio Saltão gostava de juntar à sua frente, «num montão», as fichas, de oito cores, e de as apanhar, de as misturar, de as manipular sobre o pano verde da mesa de jogo.

Era como se fossem cores numa tela. Era como se, conduzindo ele um jogo, de certa forma estivesse a pintar um quadro. Com um acrescento: tinha público a assistir.

Foi assim durante 28 anos, tantos quantos teve de presença à mesa de jogo como «croupier» (pagador de banca) no Casino Estoril.

Hoje, desde há dois anos, é fiscal-chefe no Casino de Lisboa. «Tenho tido sempre a sorte do meu lado», diz, ao contar à Lusa como dois estatutos tão distintos - profissional do jogo e amador de pintura - se conciliaram e «permitiram» que ele seja, hoje, um artista plástico em crescendo de reconhecimento.

Saltão nasceu em Amieiro, Montemor-o-Velho, «onde só havia escola primária», e de lá veio para Lisboa aos 13 anos, com um tio. Era para estudar na Machado de Castro, mas não aconteceu assim, "perdeu-se o caminho que devia tomar, o das artes", uma pulsão que logo em miúdo descobrira em si.

A não desejada alternativa às artes foi a hotelaria. Nos anos 70, entra, profissionalmente, no Casino Estoril, em cujo restaurante trabalha como «controlador de contas».

Passo inevitável, descobre a Galeria de Arte. «Nunca mais a larguei», diz.

Começa então a pintar, só aguarelas, no início, tudo em registo figurativo. Conhece pintores, em São Pedro do Estoril aprende com um deles - David Lima, «que ainda lá está» -, e, com o tempo e mão mais experiente, passa da aguarela para o óleo.

O primeiro teste, em 1980, foi um «prato com frutas, ao estilo de Cézanne», que, com o apoio da mulher do director da Galeria, Lima de carvalho, conseguiu colocar na loja de pequeno formato da Galeria. Ainda se lembra de quanto deu por ele um senhor que «entrou e gostou logo da peça»: 20 contos.

Mas essa não fora uma exposição no pleno sentido do termo. Nélio Saltão teria de esperar 12 anos para esse «baptismo de fogo» - e num espaço discreto, a Galeria de Arte da Junta de Freguesia de Cascais.

É a regra do jogo: as galerias de arte «de peso», como por exemplo a do Casino Estoril, podem até abrir-se aos autodidactas, e Nélio Saltão é disso prova, mas...fazem-no devagar. Como medindo riscos ao milímetro. Jogando pelo seguro.

No caso da Galeria de Arte do Casino, as portas abriram-se a Nélio Saltão em 2002, dez anos depois da sua estreia na Galeria da Junta de Freguesia de Cascais. A exposição, individual, resumia no seu título o tempo decorrido: «Dez anos depois».

Exposições individuais realizou depois mais uma na Galeria do Casino, «Red», ainda patente - até ao dia 13 - e, a partir de 1994, até hoje, participou neste mesmo espaço numa série de colectivas, todos os anos, só tendo estado ausente uma vez, em 2002.

Foi um tempo de contacto com artistas consagrados que também ali expunham ( Bual - recorda - , «que me ensinou muito, Mestre Martins Correia, Manuel Cargaleiro...e muitos outros») e um tempo de aprendizagem. De «aprendizagem, sempre, sempre, eu cada vez a querer saber mais», conta.

Muita coisa mudara, entretanto: o pequeno formato, a aguarela, o figurativo, e com eles os mares do Guincho, as naturezas mortas, as paisagens das primeiras pinceladas como pintor, saíram de cena e cederam lugar ao quadro grande, ao óleo e, decisiva etapa, a um outro modo de pintar: o expressionismo abstracto.

Vê-o assim, Nélio Saltão: «Há no expressionismo abstracto mais liberdade, trabalhamos melhor. Abandono o figurativo, abandono as naturezas mortas, as paisagens, e ponho-me a fazer isto que é muito mais pintura, é tudo um acontecimento. Há mais liberdade, é tudo mais por intuição». E definitivo: «Dá mais gozo pintar assim».

Frequentadores da sala de jogo («parceiros», na linguagem convencionada) sabem que ele pinta e repetem-lhe invariavelmente este «discurso» : «Deixe esta vida, você é bom a pintar, que faz você aqui?». Saltão é também invariável na resposta: «Esta é a minha profissão. Tenho de estar nela até à reforma. A pintura é outra coisa».

Mais ou menos nestes termos haveria de dirigir-se um dia, há quatro anos, a Assis Ferreira, depois de este, presidente da administração do Casino, ter comprado numa exposição da Galeria de Arte um quadro de um tal Nélio Saltão que de todo desconhecia quem fosse.

Quando Lima de Carvalho lhe disse quem era o pintor - um funcionário, um pagador de banca na sala de jogo do Casino - Assis Ferreira (conta Nélio Saltão) «não acreditou». Mas rendeu-se a evidência e quis conhecê-lo.

À semelhança dos frequentadores da sala de jogo, também Assis Ferreira lhe elogiou o trabalho de pintor e indagou por que não se dedicava à pintura a tempo inteiro.

Ouviu esta resposta: «Eu gostava de estar só na pintura, mas neste país não se pode viver de pintura, porque não há mercado. Tenho uma profissão, faltam-me alguns anos para a reforma, e agora vou acabar. Não quero penalizações».

O passo profissional seguinte foi a promoção a «fiscal-chefe», a mudança de Casino - de Estoril para Lisboa - , faz em Abril dois anos.

E continua a pintar. Não lhe interessa «o abstracto puro e duro, que parece começar logo com uma destruição». O seu registo, que não troca por outro, é o »expresionamiso abstracto».

Fala apaixonadamente dessa relação: «A tela aí está, branca. Começamos a meter cor, e depois há figuras que aparecem lá. As pessoas olham, vêem que há qualquer coisa, como por acidente aparecem lá figuras, e esse é o grande gozo da pintura, do expressionismo abstracto. Vamos por intuição.Há uma altura em que a tela (...)parece que nos está a chamar, a dizer-nos para pormos cor aqui, mais um bocado de tinta ali, é ela que está a comandar (...) O expressionaismo abstracto dá gozo, dá luta».

Ainda não expôs no estrangeiro mas está confiante em que em breve isso acontecerá.

As críticas, quando as há, têm sido boas, os quadros têm-se vendido. Lembra-se do mais alto valor até agora pago por um: 600 contos, ainda ao tempo do escudo. Era uma tela grande, um díptico de 1,60x1,40 pintado na viragem do figurativo para o abstracto, a que chamou «Pompeia».

Conhece Pompeia, a que o vulcão Vesúvio arrasou. Ficou "fascinado" com o que lá viu, e conta voltar. Na exposição agora patente na Galeria do Casino são vários os quadros que dão testemunho desse fascínio.

E está assente: até à reforma, continuará a pintar e ligado profissionalmente ao jogo. Depois, assim a sorte continue do seu lado e o talento lhe não fuja por entre os dedos, será só a pintura. Para o mercado que houver. E «rien ne va plus».

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