Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros. Viagem no tempo às várias "Lisboas"

por Carla Quirino - RTP
Carla Quirino - RTP

Vestígios das populações da Idade do Ferro, fenícias, romanas, islâmicas, cristãs e evidências da reconstrução da cidade após o terramoto de 1755 voltaram a estar acessíveis ao público no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, em Lisboa. Também conhecido por NARC, o espaço conta com uma renovada cenografia museológica e uma narrativa informativa que se apoia também em projeções multimédia, para que a história de 25 séculos de ocupação humana naquele quarteirão lisboeta se transmita de forma mais clara. Durante o percurso da visita ao sítio arqueológico são apresentadas reconstituições e a nova iluminação, que valoriza as estruturas milenares, convida os visitantes a viajarem ao passado.

Os fenícios de Olisipo, os romanos de Felicitas Iulia Olisipo, os visigodos de Olisipona, os árabes de Madīnat Usbbūna e as várias gerações de cristãos que se seguiram à reconquista da cidade deixaram múltiplos testemunhos no subsolo deste quarteirão urbano e o NARC abre esta janela sobre quase 2500 anos de história sobreposta.
 
"É um sítio típico da melhor e maios valiosa arqueologia de Lisboa, porque é num ponto que registou a ocupação humana desde os períodos mais recuados
, onde cresceu e revelou na sua natureza essencial: uma cidade virada para o rio, para o mar, para os recursos marinhos, para a navegação, e para o contacto intercultural e universal", explica à RTP Jacinta Bugalhão, a arqueóloga responsável pela escavação deste núcleo entre 1991-1995. É também coordenadora científica do projecto de musealização, para além de integrar os quadros da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC).
OlisipoO Rio Tejo entrava cidade adentro quase até ao meio do que é hoje a Rua Augusta e nele desaguava a ribeira da baixa, que reunia linhas de água que desciam desde o que são hoje as avenidas da Liberdade e de Almirante Reis.
 

Localização do NARC junto à ribeira da baixa que corria à epoca a céu aberto. Atualmente a linha de costa ribeirinha está bem diferente e a linha de água está encanada. Uma das projeções da nova narrativa expositiva | Carla Quirino - RTP

"O NARC situa-se no que era então a praia. Tratava-se de uma ocupação ribeirinha" diz Jacinta Bugalhão. "O testemunho mais antigo no NARC é da Idade do Ferro - séc. V - IV a.C.", sublinha. Dos vestígios que comprovam esta primeira presença humana, Jacinta Bugalhão destaca "um bairro da Idade do Ferro" composto por estruturas construídas juntas umas às outras, e que teriam uma natureza habitacional, mas não só. As escavações revelaram também "um forno de olaria" entre os restos das paredes de pedra e taipa, das lareiras redondas e dos materiais cerâmicos de uso doméstico que, para ajudar os visitantes são agora assinalados por projeções azuladas.

Deste período, a arqueóloga chama a atenção para um "fragmento de cerâmica onde está gravada uma embarcação da idade do ferro".
A imagem, encontrada na face interna de uma tigela, foi interpretada como sendo um hippos, um pequeno barco a remos que serviria os colonos fenícios na pesca e nos transportes junto à costa.

Este fragmento decorado, com perto de dez centímetros, foi escolhido para logótipo deste renovado espaço museológico | Carla Quirino - RTP
Momento romano - Felicitas Iulia OlisipoEntre ocupações e abandonos, o registo arqueológico do NARC volta a identificar testemunhos humanos no séc. I. a. C. com uma ocupação funerária já em período romano. "Conservavam-se os restos da necrópole romana mais antiga que se conhece nesta zona. Mais tarde, no séc I d.C., essa ocupação funerária romana foi substituída por outra de natureza industrial - toda a zona da baixa com a Rua do Correeiros incluída, foi ocupada por unidades industriais para a produção de preparados piscícolas", como conservas de peixe salgado, salsamenta e  garum.


Cetárias, tanques romanos de produção de conservas de peixe | Carla Quirino - RTP

O período romano é o melhor documentado nos trabalhos arqueológicos do sítio. "Vinte e seis cetárias (grandes tanques retangulares para preparação de produtos derivados de peixe) e mais seis pequenos tanques, somam uma capacidade de produção de 300 metros cúbicos - de conservas de peixe - o que é muitíssimo", argumenta a investigadora.

Entre as unidades e estruturas industriais, os arqueólogos encontraram ainda uma estrutura residencial e umas termas. "Temos uma parte do edifício do balneário que corresponderia ao frigidário - banhos frios. Temos as piscinas onde as pessoas entravam para se banhar e temos o átrio, que é a sala que dá acesso a esses tanques - e esse átrio tem no seu pavimento um fantástico mosaico policromo do séc. III".


Área de banhos frios romanos precedidos de átrio com pavimento em mosaico | Carla Quirino - RTP


"O sítio é ocupado mais ou menos até ao séc. V essencialmente com uma atividade industrial. Com o colapso do Império romano e as transformações subsequentes, as oficinas de produção de conserva de peixe vão ser abandonadas", confere a arqueóloga.

Esta área urbana, localizada na base da encosta, era periférica relativamente à cidade que se situava na colina e nas encostas do actual Castelo. Na transição da Antiguidade Tardia, a própria cidade regista alguma retração com a chegada dos povos visigóticos vindos da Europa central.

Nesta fase de transformação da cidade, a arqueóloga destaca uma sepultura isolada, com orientação norte-sul, localizada dentro de uma estrutura industrial vazia reutilizando algumas telhas. "É um enterramento da Antiguidade Tardia. Os nossos antepassados a quem morreu aquela pessoa, construíram a sua sepultura cuidadosamente na parede de cetária abandonada. É um indivíduo do sexo masculino com cerca de 40 anos. Era possivelmente cristão porque todo o rito funerário assim o indica e subsistiu miraculosamente até aos dias de hoje", decreve a investigadora.


Sepultura reaproveitando a cetária abandonada | Carla Quirino - RTP

"O NARC também deve muito da sua riqueza arqueológica ao facto de se localizar num ponto de passagem milenar", sustenta Jacinta Bugalhão.
Escavado foi também um troço da via romana que saía do sudoeste da cidade, seguiria por uma ponte que atravessava a ribeira da baixa e continuaria para ocidente. "Essa via não serve apenas em época romana e vai estar em utilização, pelo menos até ao séc. VI", acrescenta.

Em 714 a cidade de Olisipona capitula perante o domínio islâmico e mais uma vez muda de nome.
Madīnat Usbbūna
A cidade Al Usbbūna foi um ponto estratégico muito importante no Gharb Andaluz, devido à localização portuária associada ao comércio marítimo.
Os principais registos arqueológicos islâmicos no NARC centram-se entre os séculos X-XII e são coerentes com o que se conhece no resto da cidade de Lisboa.

O núcleo da rua dos Correeiros integrava-se no "arrabalde muito extenso ocidental e mantinha as características artesanais ligadas à pesca e ao comércio. Tinha também uma importante função de produção oleira, que era uma das atividades económicas mais relevantes nestas sociedades mais antigas".

O forno islâmico de olaria encontrado era construído em adobe e pedra. Não muito longe, foi exumada uma área de materiais cerâmicos descartados onde se identificou loiça para utilização doméstica e do quotidiano como panelas e tigelas e algumas produções de luxo.


Projeção representando a atividade oleira islâmica | Carla Quirino - RTP

Os tanques romanos também foram reutilizados pelos islâmicos como área de despejo. Num deles foram encontrados restos de figos e ameixas.
"Lisbõa"D. Afonso Henriques, com ajuda de contingentes de cruzados europeus, conquista a cidade. A "Lisbõa" medieval cristã entra nos limites do reino português em 1147.

"Em época moderna, a partir dos séculos XV-XVI, notámos que a cidade se tornou mais organizada, as ruas são calcetadas e é construída uma rede de saneamento". A arqueóloga diz terem sido identificados arruamentos com seixos basálticos. Também passa a haver preocupação com a higiene pública e a casa pré-pombalina do NARC apresenta-se já com um sistema de esgotos construído em alvenaria.


Diversos materiais arqueológicos exumados das escavações. O capitel do gótico final pertencente ao contexto arqueológico da casa pré-pombalina, em primeiro plano | Carla Quirino - RTP

Este edifício residencial tinha "características de construções mais ricas, como sendo prova a existência de um capitel e o painel de azulejos azuis brancos e verdes", revela a arqueóloga.

Esta área "deixou de ser um arrabalde ou um subúrbio industrial e comercial", para integrar uma cidade que estava em crescimento e se preparava para a navegação transoceânica.
Lisboa pombalinaA zona da baixa foi a mais sacrificada com o terramoto de 1755. Os incêndios e o maremoto destruíram o que restava.

"O que temos no NARC a seguir, em meados do séc. XVIII são os edifícios pombalinos e todos os contextos relacionados quer com o terramoto, quer com a reconstrução e com a transformação da cidade".

A reconstrução torna "a cidade moderna, do Iluminismo europeu, uma cidade ortogonal, com linhas retas, com edifícios uniformizados arquitetonicamente, com características construtivas anti-sísmicas que é o caso da estacaria pombalina".

"No NARC, para além dos contextos romanos, destacamos sempre os vestígios da arquitetura pombalina porque são, em termos patrimoniais, muito, muito importantes. O edifício pombalino está lá, mas não é só o edifício que podemos ver - podemos também ver as fundações, os alicerces, a estacaria pombalina - aliás é o único sítio onde se podem ver as estacas pombalinas in situ", afirma Jacinta Bugalhão.

O registo arqueológico também identificou uma proliferação de poços, que resultam das preocupações para aceder a água perante um fogo.

Terá ainda funcionado até ao séc. XIX um forno de pão na área do antigo frigidário romano, cortando o pavimento do mosaico do séc. III.
Testemunhos arqueológicos mais abundantesEm todos os momentos históricos, a relação com o mar está bem documentada. Desde a representação do hippos fenício aos pesos para redes de pesca romanas e islâmicas - em forma de concha - ou as agulhas para as amanhar, somam-se o comércio com as ânforas que transportam os preparados piscícolas para todo o Império e o espólio de restos de peixe na base das cetárias. "Acho que o peixe é um traço da cidade e presente no registo arqueológico no NARC. O consumo, nomeadamente, da sardinha é uma realidade milenar".


Fragmento de anfôra e pesos de rede de pesca, materiais romanos em exposição | Carla Quirino - RTP

Mistura de Gentes Este Núcleo Arqueológico também dá conta da presença dos vários tipos de pessoas que fizeram a cidade e há vestígios de elites e trabalhadores de vários tipos.

Jacinta Bugalhão descodifica as provas: "As termas são ricas, tinham no chão havia um pavimento de mosaico do séc. III e revestimento de paredes, um indicador de que as pessoas que frequentavam o espaço de banhos tinham um nível económico considerável". Já a exploração da indústria de produção de preparados de peixe "empregaria trabalhadores de base - e esses seriam os pobres - e discute-se se a mão de obra poderia ser escrava ou não. Também se debate se estas unidades tinham proprietários com empregados ou se eram explorados pelos próprios donos. Mas a verdade é que a elite também ali estava - disso temos a certeza".

A lixeira islâmica do séc. XI está preenchida de cerâmica de luxo - o que os especialistas chamam de cerâmica de consumo restrito. São peças importadas de outras regiões, muito raras e caras, e se a lixeira está ali, a habitação não estaria longe". Os donos, provavelmente ligados à produção cerâmica, viveriam perto no NARC.


Jarro de cerâmica importado da região de Saintonge, Bordéus. Encontrado numa fossa medieval  | Carla Quirino - RTP


No séc. XVI, a casa pré-pombalina documentada, "tinha um pórtico com colunas e capitéis e um painel de azulejo que recolhemos in situ - o que quer dizer que não era casa de gente pobre. O centro da cidade também tem essa característica - era uma zona de grande mistura sócio-económica e cultural, tal como hoje", remata a arqueóloga.
Dificuldades durante a escavaçãoQuando se desenvolve trabalho em espaço urbano e se estudam diferentes indícios ao longo de 850 m2 e até quase quatro metros de profundidade, o que se encontra é camada sobre camada de história, como se de um bolo de bolacha se tratasse. "Isso ajuda-nos a perceber melhor que cidade Lisboa é hoje, porque ela resulta de tudo isto - é uma consequência - é uma construção milenar", sublinha Jacinta Bugalhão.


Estacaria pombalina in situ, durante os trabalhos arqueológicos da década de 90. Continuam visíveis no percurso da visita | Jacinta Bugalhão/NARC

Durante estes trabalhos arqueológicos apresentaram-se várias dificuldades, nomeadamente o nível freático a partir dos dois metros e meio de profundidade. "Na altura não havia experiência de escavar em cidade como atualmente" e "escavar em terrenos ensopados e mesmo alagados, dentro de água é muito difícil".

A operação que se seguiu à escavação não foi menos complicada e passou por tapar tudo de novo, por causa dos trabalhos de demolição dos edifícios.  Cobriu-se tudo com uma tela de geotêxtil e areia até à cota do pavimento do rés-do-chão e construiu-se um pavimento em cimento para assentar as gruas e as retro escavadoras necessárias à reconstrução interior da futura sede bancária.

"Escavámos tudo e depois tapamos tudo outra vez. Após as obras, destapamos tudo outra vez. Eu só pensava, apesar da areia e do pavimento, que as minhas ruínas não iam sobreviver,  e se iam partir todas. Quando começámos a destapar, tirar novamente a areia - as ruínas estavam absolutamente ilesas - foi extraordinário", diz a arqueóloga com orgulho.
Rua dos Correeiros e o papel pioneiro na arqueologia de Lisboa"Esta é a história que nós podemos ver, observar e aprender no NARC - hoje - e que os arqueólogos puderam recuperar camada a camada, fragmento de cerâmica a fragmento de cerâmica - tudo o que acabei de contar - é contado com base no que encontramos. Existem testemunhos para todas estas épocas", sustenta Jacinta Bugalhão.


Corte vertical representando as várias camadas de ocupação humana encontradas no NARC | Perfil estratigrágico - Jacinta Bugalhão

A arqueóloga relembra que o processo remonta há 30 anos. Nos finais da década de 80 do século passado, o Banco Comercial Português adquiriu esses edifícios ladeados pela rua Augusta, rua da Conceição e Correeiros na baixa de Lisboa para fixar a sede na capital.

Durante as prospeções no subsolo encontraram-se "muitos muros antigos, muita cerâmica e a uma parede antiga sobre a qual recolheram espinhas e escamas de peixe".

O geólogo Fernando de Almeida passou palavra ao arqueólogo Fernando Real - que era genro - que desencadearam contactos entre o Instituto Português do Património Cultural e a instituição bancária. As conversações "culminaram na realização da primeira campanha de escavações que começou a 3 de junho de 1991 e não mais parou até a conclusão em 95 com a musealização do sítio".

Embora não existisse lei que enquadrasse este tipo de parcerias, "houve sensibilidade e boa vontade de parte a parte. Eu e outros colegas arqueólogos acreditamos que a Rua dos Correeiros foi uma estação arqueológica com papel pioneiro na arqueologia de Lisboa". Até porque foi possível um acordo entre uma entidade privada e o Estado "de maneira a compatibilizar um projeto de obras importante e possante com a preservação do património", sublinhou a investigadora.

António Monteiro, presidente da Fundação Millennium BCP, afirma que "a intervenção no NARC é parte integrante da política de responsabilidade social do Millennium BCP, reforçando a intervenção do banco nas vertentes social e cultural, numa lógica de partilha com a comunidade e de valorização do património histórico nacional".

A Fundação não revela o valor do investimento mas António Monteiro acredita que a aposta "desta renovação do NARC se insere na preocupação permanente do Millennium BCP de valorizar o património histórico e cultural do nosso país, como fator essencial do desenvolvimento".

Acrescenta que "passados mais de 20 anos sobre a sua abertura, se tornou imperioso modernizar o espaço, de modo a oferecer aos visitantes uma informação mais clara e direta e a atrair segmentos de público cada vez mais alargados".
O projeto do Atelier BrücknerO projeto arquitetónico desta renovação, ficou a cargo do Atelier alemão Brückner, que "valorizou a natureza telúrica do NARC, onde se pretende agora entrar dentro da arqueologia, dentro dos níveis arqueológicos e não ver a arqueologia por cima".

As ruínas e os vestígios não sofreram qualquer alteração, apenas foram feitas ações de conservação e manutenção. O que foi profundamente alterado foi a museografia. A nova cenografia assenta numa melhor comunicação com o público.


ATELIER-BRUECKNER - Giovanni Emilio Galanello

António Monteiro explica que, durante a visita guiada, os visitantes depois de descerem ao subsolo "descobrem o que as escavações arqueológicas deixaram à vista e alguns dos 120 objetos no local onde foram encontrados. Usando um iPad, o guia controla a configuração encenada, com camadas de luz e projeções de som, explicando o significado original dos achados e o seu uso na vida quotidiana".

"E isso é só vantagens para quem visita - percebe melhor, vê melhor. É mais gratificante e mais bonito", remata Jacinta Bugalhão.
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