O escritor que amava a língua portuguesa

por Lusa

O escritor brasileiro Rubem Fonseca, que morreu hoje, aos 94 anos, no Rio de Janeiro, amava a língua portuguesa, uma língua que considerava "lindíssima", capaz de "durar pela eternidade", como disse em 2012, na Póvoa de Varzim.

Na altura, Rubem Fonseca recebia o Prémio Correntes d`Escritas, do festival literário organizado pelo município. Na sua intervenção, evocou Camões, recordou o soneto "Busca amor novas artes, novo engenho", e pediu ao público, que incluía alunos do concelho, para ler o poeta: "Leiam Camões, ouviram meninos? Vocês aí, leiam Camões", pediu, antes de partir com um grande "Viva a língua portuguesa!".

Autor de livros como "O Caso Morel" (1973), "Feliz Ano Novo" (1976) e "A Grande Arte" (1983), repetidamente distinguido com os principais prémios literários da língua portuguesa, José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora, no Estado de Minas Gerais, no Brasil, em 11 de maio de 1925, numa família oriunda de Trás-os-Montes.

"Em casa falávamos português, minha mãe só cozinhava comida portuguesa e a biblioteca do meu pai era só de autores portugueses", disse, durante a sua visita a Portugal, em 2012.

Foi nesta biblioteca que tomou o primeiro contacto com escritores como Luís de Camões, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Guerra Junqueiro, o favorito de seu pai, lembrou então.

Formado em Direito, começou a escrever aos 17 anos, mas antes da estreia, em 1963, com a publicação do livro de contos "Os Prisioneiros", construiu uma carreira de seis anos na polícia civil, no Rio de Janeiro, como comissário e especialista em psicologia criminal.

Ao primeiro título sucederam "A Coleira do Cão" (1965) e "Lúcia McCartney" (1967), firmando desde logo o nome do autor, que a crítica apontou como "o maior contista brasileiro da segunda metade do século XX".

"Carne crua", o seu mais recente livro de contos, foi editado no final de 2018.

Foi distinguido em 2003 com o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa, e recebeu também, por seis vezes, o Prémio Jabuti, o principal galardão da literatura, no Brasil.

Em 2015 a Academia Brasileira de Letras deu-lhe o Prémio Machado de Assis pelo conjunto da sua obra.

Em 2012, além do Prémio Correntes d`Escritas, na Póvoa de Varzim, recebeu a Medalha de Mérito Cultural, da então secretaria de Estado da Cultura, do Governo português, e a Medalha de Mérito Municipal Grau Ouro, da Câmara de Lisboa.

Entre outros galardões, recebeu ainda o Prémio Iberoamericano de Narrativa Manuel Rojas e o Prémio Rosalía de Castro para a língua portuguesa, do Pen Club da Galiza.

Avesso a entrevistas, adorava o anonimato e era descrito por amigos como uma pessoa simples, afável e de ótimo humor, como recordam os seus editores.

Depois de "Lúcia McCartney", que lhe valeu o primeiro Prémio Jabuti, seria a vez de "O Homem de Fevereiro ou Março" (1973), do seu primeiro romance, "O Caso Morel" (1973), e de uma nova coletânea de contos, "Feliz Ano Novo" (1975), livro proibido pela ditadura militar do Brasil (1964-1985), por o considerar "contrário à moral e aos bons costumes", segundo auto lavrado pela Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça.

No início deste ano, quando o estado brasileiro da Rondónia, onde Jair Bolsonaro conseguira uma das maiores votações, tentou proibir 43 obras literárias nas escolas, e emitiu uma ordem para a sua recolha, a lista incluía 19 títulos de Rubem Fonseca, a par de autores como Nelson Rodrigues, Machado de Assis, Edgar Allan Poe ou Franz Kafka.

Rubem Fonseca marcou a literatura com narrativas que retratam a vida na grande cidade, sem hesitar perante situações de violência. Os temas policiais estão no centro das suas histórias, cruzando criminosos, prostitutas e um mundo marginal e obscuro.

A experiência na polícia do Rio de Janeiro sublinha as caraterísticas realistas da obra e a importância da oralidade.

O crítico e historiador da literatura brasileira Alfredo Bosi, ex-professor da Universidade de São Paulo, deu ao estilo de Rubem Fonseca o nome de `brutalismo`, e atribui-lhe a origem do movimento literário, com o seu "estilo áspero e sem rodeios para falar de violência, sensualidade e solidão".

O mesmo estilo que o atual primeiro-ministro português, António Costa, reconheceu, quando homenageou o escritor na câmara de Lisboa, em 2012: "Rubem Fonseca (...) recorre às histórias e à realidade urbana para registar e `desocultar` dramas numa construção feita de inteligência, crueza, oralidade e de um humor que nos desarma e nos estimula o sentido crítico", afirmou.

Anos antes, quando o Prémio Camões distinguiu Rubem Fonseca, Mário Soares elogiou-lhe "a lucidez e a argúcia", "a prosa muito ágil, direta e seca".

O editor da Sextante, João Duarte Rodrigues, destacou hoje, no autor, as "palavras precisas e sóbrias" que "narram histórias duras, impiedosas para os falsos e os corruptos, onde a morte é sempre derrotada pela ironia e pela cultura".

Depois de "O Caso Morel", Rubem Fonseca voltou ao romance em 1983, com "A Grande Arte", novo Prémio Jabuti. No relato longo sucedem-se então "Bufo & Spallanzani" (1986), "Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos" (1988), "Agosto" (1990), "E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto" (1997), "Diário de um Fescenino" (2003), "Mandrake, a Bíblia e a Bengala" (2005), em que retoma o seu inspetor, "O seminarista" (2009), "José" (2011), uma memória da sua infância e juventude.

No romance há ainda "O Doente Molière" (2000), que ficciona a morte do dramaturgo francês, por envenenamento, e "O Selvagem da Ópera" (1994), sobre o compositor Antônio Carlos Gomes.

Mas é sempre o relato curto, o conto, que se eleva no percurso de Rubem Fonseca: "O Cobrador" (1979), "Romance Negro e Outras Histórias" (1992), "O Buraco na Parede" (1995), "Histórias de Amor" (1997), "A Confraria dos Espadas" (1998), "Secreções, Excreções e Desatinos" (2001), "Pequenas Criaturas" (2002), "Ela e Outras Mulheres" (2006), "Axilas e Outras Histórias Indecorosas" (2011), "Amálgama" (2013, "Histórias Curtas" (2015), "Calibre 22" (2017), "Carne Crua" (2018).

A uma coletânea de crónicas, publicada em 2007, deu o título "O Romance Morreu".

A sua obra encontra-se publicada em mais de uma dezena de línguas, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos.

Quase todos os seus títulos foram editados em Portugal, ao longo dos anos, por editoras como a Contexto, Asa, D. Quixote, Edições 70 e Campo das Letras. Para o primeiro trimestre deste ano, antes de declarada a pandemia da covid-19, a Sextante, que tomou a obra do escritor na última década, anunciara a publicação de "O Doente Molière".

Em 2018, o primeiro romance do escritor, "O Caso Morel", foi adaptado a televisão por Suzana Amaral, que assinou o argumento com Patrícia Melo.

Muitos dos seus contos deram origem a filmes e `seriados`, como o seu inspetor Mandrake, que o seu filho José Henrique Fonseca levou para a televisão brasileira.

"Axilas", a derradeira longa-metragem de José Fonseca e Costa, rodada em 2014, parte de um curto relato de Rubem Fonseca. E a ópera "O Jardim", de Tiago Cabrita, estreada em 2018, no Palácio da Ajuda, em Lisboa, é inspirada no conto "Henri", do escritor.

"Um escritor tem de ser obrigatoriamente louco", disse na Póvoa de Varzim, quando recebeu o Prémio Correntes d`Escritas - Casino da Póvoa. Essa é a primeira das características de um escritor, afirmou. E "é obrigatória", garantiu.

Tem também de ser "alfabetizado, mas não precisa de ser muito", porque "quem escreve tem de fazer o leitor sentir e ver, para poder entender". Mas tem de ter "motivação, paciência" e "imaginação", porque é preciso "inventar".

"Flaubert sabia disso: porque é que ele passou cinco anos escrevendo aquele `livreco` [`Madame Bovary`] de 200 páginas? Porque ele procurava `le mot juste`, a palavra certa, ele sabia que não existem sinónimos. A existência de sinónimos é `conversa mole p`ra boi`, ouviram?", disse então Rubem Fonseca, saudado com gargalhadas e aplausos.

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