"O Filho de Mil Homens", de Valter Hugo Mãe, um romance sobre ser-se pai
Lisboa, 23 set (Lusa) -- O escritor Valter Hugo Mãe quis escrever um romance simples que partisse do seu tempo presente. Chamou-lhe "O Filho de Mil Homens", e apresenta-nos Crisóstomo, como ele um homem de 40 anos incompleto por lhe faltar um filho.
Depois de ter escrito romances protagonizados por personagens no princípio, no meio e no fim da vida, o escritor decidiu trazer o livro a si, usar como ponto de partida o seu tempo verdadeiro.
"Este livro parte um pouco do momento em que eu estou. Não sendo o Crisóstomo a pessoa que eu sou, é um homem do meu tempo e eventualmente coincide comigo no que é próprio sentir-se neste tempo da vida", disse o escritor em entrevista à Lusa.
O romance, que chega hoje às livrarias, numa edição da Alfaguara (chancela literária da Objectiva), poderia apresentar-se assim: Era uma vez um pescador de 40 anos que se sentia metade de um homem por não ter um filho e que decidiu fazer alguma coisa para mudar isso, anunciando ser "um pai à procura de um filho"; Era uma vez uma anã com voz de passarinho e uma casa em que tudo era pequenino, à sua escala, exceto a cama, e que, contra todas as expectativas do "povo" onde vivia, engravidou e deu à luz um menino, Camilo; Era uma vez uma rapariga chamada Isaura que ficou solteira e entristeceu, tornando-se "uma mulher para lá da dor, atirada ao tempo como uma porcaria perdurando"; Era uma vez um homem maricas chamado Antonino, órfão de pai, e cuja mãe, Matilde, se sentia culpada por não o ter instruído sobre o desejo e também por nunca ter conseguido matá-lo -- como era uso os pais fazerem aos filhos em casos semelhantes --, apesar do que lhe aconselhavam as vizinhas e as suas próprias facas de cozinha.
Estas são algumas das personagens de "O Filho de Mil Homens", um romance sobre a aceitação do que se é como caminho para a felicidade, sobre a esperança, sobre a determinação de se começar a ser feliz e de o passado não pesar como uma sentença sobre a vida presente e futura.
Ao escrever sobre as vidas destas personagens, refletindo sobre elas como sobre um caminho a tomar, Valter Hugo Mãe descobriu "uma capacidade enorme e inabalável de acreditar".
"A primeira frase do livro é muito reveladora: a partir do momento em que o Crisóstomo assume a tristeza [de não ter um filho], não tem mais como disfarçá-la. E isso é uma forma de acreditar que essa tristeza pode ser superada e que alguma coisa tem de ser feita para a superar. Toda a escrita deste livro passa por essa ideia de, custe o que custar, identificar aquilo que queremos, aquilo que nos faz correr, e correr por isso, sem possibilitar a desmobilização", sustentou.
O ponto de partida é, inelutavelmente, o que somos, "essa plataforma do impossível de afastar", observa o escritor, acrescentando que "a partir do momento em que as coisas são da essência, tudo o que faz parte desse reduto essencial não pode ser mudado e, por isso, essa tem de ser a matéria-prima de toda a construção para a felicidade".
Valter decidiu que Crisóstomo teria 40 anos, porque considera que nesta idade "se tem um pouco melhor a perceção de como se é estruturado".
"Aquilo que me acontece nesta idade é que eu tenho a perceção de que, sendo falível e perecível, já não espero morrer de sete em sete anos como esperava quando era mais miúdo, quando achava que se não tinha morrido ao fim de um ciclo, havia de morrer ao fim de outro", revelou.
"Agora -- prosseguiu -, já não espero esse perecimento tão assiduamente e, por isso, há qualquer coisa que se estrutura e que nos permite criar alguma segurança e pensar: `eu até posso ser alguém de confiança, até posso servir para alguma coisa de longo tempo, não preciso de ter tanto medo de adquirir uma responsabilidade mais longa`. Eu, pelo menos, tenho a sensação de que os meus 40 anos me permitem perceber muito melhor quem sou, do que sou capaz e até que ponto me posso responsabilizar por uma determinada coisa".
Antes de o Crisóstomo se aperceber da falta que lhe faz um filho e de o encontrar, há outra personagem, Alfredo, um velho que sente o mesmo, mas por pensar que os filhos podem representar uma espécie de "revolta contra o apagamento absoluto", contra a morte e o esquecimento.
"É uma relação muito diferente a que eles têm no que diz respeito ao filho. O Crisóstomo sente-se incompleto, mas o seu sentimento é menos egoísta, porque ele, no fundo, o que pensa é que seria capaz de potenciar a felicidade na vida de alguém e não tem a quem. E essa necessidade de pôr isso em prática deixa-o incompleto, ou seja, é quase uma necessidade não tanto de angariar para ele, de colmatar alguma coisa que lhe falte a ele, mas o que lhe falta é, exatamente, o não poder dar", defendeu Valter.
"Com Alfredo, o que acontece é completamente diferente: tudo começa na incompletude de uma relação que já vai ser impossível, devido à morte da [sua mulher] Carminda, e até na necessidade de se convencer que a presença daquela criança vai fazer com que a alma da Carminda compareça, para que a família esteja completa. Alfredo acredita que aquilo que era a ansiedade, o desejo de completude daquela família vai estar cumprido", contrapôs.
"Enquanto o Crisóstomo tem uma relação com o filho que é uma relação para futuro, o que acontece com o Alfredo é que aquele é um filho para o passado, que ele vai tentando educar -- e não lhe faz mal, quer muito aquela criança -, mas ela é uma espécie de cura, de cumprimento do passado. E há uma deslocação, no fim, o filho fica imune ao passado. Tudo é presente e futuro", indicou.
"No fundo, é esta ideia que eu tenho de que, a cada momento, nós estamos senhores da nossa vida e capazes de a começar, de a definir. Partindo dessa plataforma que nos é essencial, a cada momento, nós podemos estar nesse ponto de ignição, de começo, que eu acho que é um pouco a lição do Crisóstomo. Chegar aos 40 anos e dizer assim: `Eu vou começar isto agora. Por isso, o meu passado não me condena`".
Uma personagem que Valter confessou adorar, porque gosta de personagens que lhe "possam, ao nível dos sentimentos, propor uma oficina complexa", é Antonino, o homem maricas, que considera "um dos grandes trunfos do livro", por ser a partir dele que se permite "no romance levar ao extremo todo esse trabalho de sensibilidades e do posicionamento das personagens em relação a essa questão que acaba por ser muito fraturante na vida delas e que permanece ainda para muita gente uma coisa quase alienígena".
"O Antonino tem muito que ver com isto que tem aparecido sempre nos meus livros: esta capacidade de amarmos quem escapa a todas as definições, que vai para além de tudo aquilo que nós poderíamos esperar ou querer. A temática sempre me interessou, as questões da sexualidade", observou.
E acabou por levantar um pouco o véu em relação ao futuro: "Eu quero fazer três livros sobre esta questão da filiação, da paternidade, da descendência... e vão ser três livros em que a questão sexual está mais presente. O próximo será um livro com um transexual. Acho eu. Vivo um pouco fascinado por essas pessoas que têm coragem para dar um passo tremendo assim, que muda tudo, para chegarem mais perto de ser felizes".
ANC.