“O programador é um espectador ‘ao contrário’”
Criar uma identidade para o Theatro Circo de Braga é a tarefa que ocupa Paulo Brandão desde há três anos. Conquista o seu "espaço de liberdade" com uma programação em que pontificam nomes da música independente norte-americana, mas rejeita que as suas escolhas sejam classificadas de alternativas. Defende os benefícios de um trabalho continuado e a importância de criar condições para a criação.
É tornar-me numa espécie de espectador invertido, colocando-me no lugar do espectador e escolher aquilo que gostaria de ver. O programador é um espectador "ao contrário", mas será sempre um confronto com a realidade. Numa estrutura, o programador não depende só de si mas também de um conjunto de influências desde o espaço que está a programar, a cidade, os contactos, os conhecimentos, a situação do país, do mundo... tudo influencia as nossas escolhas como programadores.
(No momento da escolha) As coisas mais impensáveis podem acontecer e até num nível instintivo. O espectador também tem esse jogo de instinto. Ora apetece-lhe ver este artista, ora escolhe um texto. Às vezes não percebemos. Mas também não é importante que se perceba. Importante é que façamos esse duplo exercício de ser espectador quando precisamos de ser e programador quando temos de programar.
Tenho a necessidade de estar como espectador, mas sempre numa atitude crítica. Um programador que não vê, que não sente o pulsar do que está a acontecer a todo o momento, engana-se. O programador tem de sentir o que faz, porque só assim consegue colocar-se no lugar do espectador. Acredito que pelo facto de ver e escolher o que vi e gostei, porque se criaram momentos, transportando-as para o Theatro Circo ou outro espaço, as coisas também funcionem da mesma maneira.
É evidente que há escolhas que obrigam a um trabalho um pouco diferente. No Musa - Ciclo no Feminino - certas escolhas não são muito evidentes. Por exemplo, a Kaki King (Estados Unidos) é para mim uma das grandes criadoras na área da guitarra do momento e muito pouca gente a conhece em Portugal, não tem discos editados no país...Paulo Brandão (n. 1967, Vila Nova de Famalicão) assume a direcção artística do Theatro Circo em 2006, a convite do autarca de Braga, Mesquita Machado. Foi director da Casa das Artes de Famalicão entre 2002 e 2006, após oito anos como produtor e director de cena no Teatro Nacional de São João. Frequentou a licenciatura em Estudos Portugueses na Universidade do Porto. Actor e encenador, a formação artística foi adquirida durante o curso de Interpretação na Academia Contemporânea do Espectáculo e o estágio em Teatro Naturalista na The Arden School of Theatre (Manchester
Como é que prepara a vinda de um artista que grande parte do público não conhece?
A preparação é um somatório de passos, desde a escolha da fotografia para o muppie, as informações que saem para as rádios e jornais, a publicidade, as redes ao nível da Internet (myspace, youtube, blogues), ao passa-palavra. Tudo isso tem de me permitir e acredito que vou ter, no mínimo, 300 pessoas na sala e acredito que chegue às 500. Porquê? Porque há uma série de passos e de conquistas que nós temos de fazer.
Temos mesmo de criar uma identidade para os espectáculos dentro da identidade do Theatro Circo, que já existe e vai existindo conforme o que vamos fazendo. A escolha de um determinado artista serve também para criar uma identidade.
Vou tentar explicar o que a Kaki King pode trazer de novo em termos de público. Primeiro, é uma excelente guitarrista. Segundo, é muito diversa, tem três discos completamente diferentes, o de estreia é totalmente acústico mas o terceiro já quase todo com guitarra eléctrica. Terceiro, tem canções, ela não cantava e começou a cantar. Quarto, tem aspectos a nível biográfico que devemos potenciar: lidera uma comunidade gay muito forte nos Estados Unidos. Quinto, tem uma excelente imagem e o que está a fazer é algo muito poético. Sexto, a rede, os jornalistas que conhecem bem o mercado sabem quem é e certamente que vão pegar na Kaki King. Esse somatório de coisas vai criar o desejo de vir ao Theatro Circo e de conseguir reunir uma comunidade com entre 300 a 500 pessoas, espero.
A programação é um pouco alternativa. Que características destacaria?
Eu não diria que seja alternativa... Gosto dessa palavra mas não diria que seja alternativo, porque penso a programação como um somatório de aspectos. Não posso focalizar a programação apenas no que é alternativa, tenho de olhar a programação ao longo destes três anos e dos seguintes, ao longo daquilo que formos fazendo. Não posso fazer programação só de hits, não posso ter espectáculos só de grande público.
Vamos fazer Pedro Abrunhosa no dia 24 de Julho e a Kaki King no dia 11. Um português muito conhecido do grande público e uma americana muito pouco conhecida. Vamos ver qual é a diferença de público.
Desde 2006 até agora o que mudou, o que foi sendo aperfeiçoado?
O primeiro ano de programação do teatro foi um ano de tentar criar uma identidade em termos programáticos, fazendo a ligação à cidade, criar as rotinas na estrutura de funcionamento, bilheteira, parte técnica, palco, criação de público e visibilidade. No segundo ano, começamos a trabalhar mais seriamente com a cidade, o que tem vindo a crescer. Mensalmente temos actividades ligadas à cidade de Braga, desde as tunas até ao fado, passando pelo cinema e vídeo, aniversários ligados às rádios, etc que temos vindo a trabalhar e essa ligação tem obrigatoriamente de existir e tem vindo a melhorar.
Qual é o perfil do teatro, segundo o acordo definido com a autarquia da Braga? De que forma poderá a sua actividade ser considerada um exercício de poder?
O objectivo é ter uma programação ecléctica, virada para a cidade, mas também que crie identidade a nível nacional, para atrair públicos a Braga.
É evidente que programar é um exercício de poder, mas que pode esconder muitas dependências. É o que também acontece com os partidos políticos. Porque é que se escolher determinada gente ou grupo para trabalhar? Porque não escolhe outro? Porque favorece este e não aquele? Há múltiplas interrogações a fazer. Nesse aspecto acho que sou absolutamente livre porque não tenho compromissos com nada nem com ninguém, não devo favores a ninguém e ninguém me deve favores.
Acho que faço o exercício de poder pelo valor das coisas. O meu valor como director artístico e como programador é aquilo que eu faço e que consigo fazer. Esse é o meu valor e a minha liberdade. Nós temos este exercício de poder, enquanto nos permitirem que o tenhamos. Se deixar o Theatro Circo, deixo de ter esta estrutura, esta equipa e a possibilidade de ter esta liberdade. Se não estiver a fazer nada, aí é que estou preso e não consigo expandir aquilo que acho que deve ser...Theatro Circo - O edifício de 1915, da autoria de Moura Coutinho, reabriu ao público em 2006, após seis anos de obras de recuperação. A sala principal, cuja tela de boca de cena é do mestre Domingos Costa - discípulo de Silva Porto - tem capacidade para 800 pessoas. O pequeno auditório, de arquitectura moderna e com 236 lugares, e o salão nobre, para 200 pessoas, destinado a conferências, debates e pequenos espectáculos, são outros espaços do Theatro Circo. A Companhia de Teatro de Braga torna-se residente em 1987 e, no ano seguinte, a câmara municipal passa a deter 98 por cento do Theatro Circo. A autarquia, através da empresa Teatro Circo de Braga, S.A., suporta parte significativa do orçamento anual de um milhão de euros, para programação e custos fixos. No ano passado, a receita do Theatro Circo cobriu 60 por cento dos seus custos totais.
Na programação, traçada sobre as artes de palco - com incidência da música -, está a crescer o espaço para o teatro e dança. Laurie Anderson, Diamanda Galas, Robert Fripp, Al di Meola, Rosa Passos, Phillip Glass, Anthony and the Johnsons, Andrew Bird, mas também Mão Morta, André Sardet e Deolinda actuaram na "nova vida" do Theatro Circo.
Que papel têm as estruturas de criação no Theatro Circo?
O Theatro Circo tem uma longa história e uma imensa tradição. A memória criada ao longo de quase um século não deixou de existir só pelo facto de o teatro ter sido renovado e nesse período ter estado encerrado. Até então era sobretudo uma estrutura de acolhimento, embora uma estrutura residente que é a Companhia de Teatro de Braga (a partir de 1987). É apenas uma estrutura residente, de produção independente ao Theatro.
Quando reabrimos em 2006, passámos a criar produções próprias ou co-produções. Entre as nossas produções mais recentes estou a lembrar-me do Maldoror, com os Mão Morta, produzido com o Imetua, do Day of the Dead, uma co-produção com artistas americanos liderada pela Julie Atlas Muz, de produções criadas de raiz no Theatro Circo desde festivais e ciclos, como o Burla - Festival do Burlesco e o Musa -Ciclo no Feminino. Fazemos convites aos artistas que foram pensados e criados por nós.
Para serem apresentados unicamente aqui...
Exactamente e não vão a mais lado nenhum. Outras produções, sobretudo na área do teatro vão circulando. O Theatro Circo é uma estrutura muito sui generis no sentido em que, embora não tenha nenhuma uma estrutura de co-produção interna - porque teríamos de ter outros meios, quer físicos, quer humanos - não deixa de as fazer. Acabamos por ir um pouco mais longe do que uma estrutura de acolhimento. Hoje em dia são raras as que são apenas estruturas de acolhimento, porque é algo muito pouco aliciante e até preguiçoso. Somos como que obrigados, mesmo que não queiramos, (senão) ficaríamos isolados. Há necessidade de criar redes, que nos obrigam a contribuir e a criar.
Têm Serviço Educativo?
Não, não temos, mas temos a valência de Serviço Educativo. Mais uma vez, embora não tenhamos não quer dizer que não façamos mais e melhor do que estruturas que têm Serviço Educativo. Criamos uma relação muito próxima com algumas estruturas da cidade, nomeadamente a escola Calouste de Gulbenkian na área da música e a Arte Total na área da dança, para poder fazer workshops, ateliers...
Quem são os seus públicos?
Sobre os públicos do Theatro Circo só posso responder empiricamente. Tivemos um estudo feitos por alunas finalistas da Universidade do Minho, com inquéritos feitos internamente, que nos pode servir um pouco de amostra, embora não seja um estudo feito massivamente e cientificamente mais aproximado. Sabemos que vem de toda a região Norte (Fafe, Guimarães, Porto) mas, dependendo dos espectáculos, se a proposta for interessante, vem de Espanha.
Percebemos, principalmente em Maio que foi um mês muito forte - actuaram Anthony and the Johnsons, Andrew Bird e Wilco -, que tivemos acima de 300 espanhóis. É um público potencial. Então como é que vamos tentar chegar lá? Obviamente que tentaremos usar alguns canais de comunicação, como a imprensa e as rádios de Vigo, fazer um bom trabalho com quem aluga os autocarros e vende bilhetes em Espanha, porque é um público que vem preencher a cidade.
Eu faria o exercício ao contrário. Gostaria de ter mais público ligado à universidade. Acho que os alunos estão alheados das manifestações culturais da cidade à excepção das Queimas das Fitas. Estamos a trabalhar com alguns professores, com a Associação de Estudantes e com pessoas que lá trabalham para ter um lado de criação afectiva, mas mesmo assim é difícil. Penso que não está relacionado com particularidades nossas, mas com particularidades pessoais.
Como é que classificaria a sua relação com a tutela, a câmara de Braga?
É uma relação profissional. Estou cá desde 2006, tenho passado por momentos muito diferentes. Agora estamos num bom momento, porque uma série de propostas que conseguimos candidatar, ao Ministério da Cultura e à União Europeia, foram apoiadas. Permite-me perceber que vou poder fazer uma programação que vai mais ao encontro daquilo que eu desejo para o Theatro Circo.
É preciso entender que ter a seu cargo um edifício é, na maior parte das vezes, um esforço muito grande para as autarquias, mas também muito gratificante. Muitos louros poderão daí resultar, desde logo servir a população. Ter programação e uma casa a funcionar após o primeiro ano e o "folclore" inicial é raro manter. O facto é que esta autarquia tem mantido e eu, neste momento - avalio as coisas sempre no momento -, sinto-me muito confortável.
A verba aumenta em ano de eleições?
Não, pelo contrário. A verba para programação manteve-se ao longo dos quatro anos. Neste último mês tivemos as boas notícias que as candidaturas tinham sido aprovadas, o que vai melhorar um pouco. Mas a programação está delineada até Dezembro.
A sua programação é influenciada pelas políticas culturais nacionais?
Claro, indirectamente. Desde logo, os apoios que existem do Ministério da Cultura...
A que programas concorrem?
A tudo o que são programas. Agora estamos com o Quadrilátero Urbano, uma candidatura de programação a quatro (Braga, Barcelos, Famalicão e Guimarães) ao QREN II Norte, para 2010, com produções nossas, com circulação, etc. Também concorremos ao Ministério da Cultura, na área da programação. Também vamos conseguindo apoios nos cruzamentos artísticos.
Para onde quer levar o teatro? Quais são os seus principais desafios?
Gostaria de ter uma presença maior de produção própria e fazê-la circular a nível nacional e em 2010 isso vai acontecer de uma forma mais visível.
Vamos ter o espectáculo musical Amor entre cigarras, com texto de walter hugo mãe, música do Miguel Pedro, figurinos, cenário e adereços de Catarina Barros. É uma produção nossa, criada de raiz, que vai circular por Famalicão, Guimarães e a mais alguns espaços. Acho que contribui para criar essa identidade que o Theatro Circo tanto quer, gosta e precisa.
Queremos ter uma componente de edição de DVD de espectáculos filmados aqui, com lançamentos. Fizemos isso com Maldoror que está no mercado e algumas edições a nível discográfico. Queremos criar coisas que também fiquem, criar relações com os criativos e artistas, a nível nacional e internacional. Temos provas que temos capacidade para isso mesmo a nível internacional.
Há uma marca autoral na sua programação, que já mantinha na Casa das Artes de Famalicão e que trouxe para o Theatro Circo?
Tento conquistar o meu espaço de liberdade com escolhas que depois servem de referência. Não no sentido de divulgar o nome de Paulo Brandão por tudo o que é sítio, mas gosto que as pessoas reconheçam que tenho capacidade e vou programando coisas que funcionam. Penso que não é com necessidade autoral. Importa é que a estrutura do Theatro Circo funcione e continue a trabalhar independentemente de ser ou não Paulo Brandão o director artístico.
Programa porquê?
Talvez programe porque delegue nos artistas que trago aquilo que gostaria de fazer. Gostaria de ser a suma dos artistas que trago a 100 por cento. Por exemplo, se trago cá a Kaki King é porque me reconheço no que ela está a fazer.
A programação é um exercício de crítica em relação à sociedade?
Absolutamente. Acho que é esse o aspecto mais importante. Acaba por ser um pouco o papel dos ditadores Muitas vezes ditamos aquilo que achamos que deve ser, mas também devemos ter o bom senso de perceber se estamos errados.
O facto é que a realidade de determinados espectáculos ou ciclos funciona de forma diferente em cada cidade e na relação entre as pessoas. Se não for uma sociedade aberta, então vamos "abrir portas". A ideia é precisamente a de abrir, permitir, deixar fluir... Agora, não podemos ter a veleidade de pensar que vamos alterar comportamentos. Temos de ler a cidade e acredito que Braga tenha beneficiado e melhorado socialmente com o aparecimento do Theatro Circo.
Sente-se um ditador?
Não. Quando a minha vinda para cá foi divulgada em termos mediáticos, saíram algumas crónicas e textos em que eu parecia uma espécie de Messias, para usar um termo de Braga que tem uma componente religiosa muito forte. A dada altura perguntaram-me: não programa artistas de Braga? Respondi: onde estão? Isto não é uma máquina de fazer artistas ou criadores. É preciso trabalhar e permitir que haja uma continuidade. Neste momento, se formos apontar 20 esperanças para a música nacional encontramos seis a oito bandas de Braga, porque a autarquia criou condições - no Parque de Exposições - para ensaios. Neste momento, alguns grupos estão aí com muita força, como os Monstro Mau, Mundo Cão, Smix Smox Smux, Peixe: Avião, At Freddy's House, Astro Boy, VortexSoundTech. Foram-lhes dadas condições de trabalho e isso tem certamente reflexos.
Também acredito que é necessário criar condições para o aparecimento de criadores. Alguns países fazem-no muito bem. Por exemplo, na Finlândia, a Finish Music Information Center (Fimic), uma associação ligada aos direitos de autor, trabalha e divulga os artistas nacionais. Se eu quiser trazer alguma das suas bandas não pago cachet e as viagens estão pagas. Isso só é possível porque o Estado investe ou cria meios para tal.