Realizadora Dea Kulumbegashvili estreia "Abril" em Portugal após prémio em Veneza
O filme "Abril", no qual a realizadora Dea Kulumbegashvili retrata a realidade do aborto nas comunidades rurais da Geórgia, tem estreia nacional marcada para quinta-feira, depois de conquistar o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza.
O argumento gira em torno da personagem de uma médica que acaba por fazer, clandestinamente, abortos nas aldeias, face à falta de recursos de mulheres sem acesso a meios de contraceção, numa sociedade patriarcal, terreno para abusos e casamentos precoces.
"A situação na Geórgia é muito complexa. Já não espero que o cinema possa mudar a lei", disse a cineasta, em entrevista a agência Lusa, quando questionada sobre as restrições à interrupção da gravidez no país e a abordagem social que escolheu.
"Abril" é apresentado como "um grito pela autonomia física das mulheres" e testemunho do peso de lutar contra instituições que "não concedem esta liberdade".
A realizadora recorreu a uma personagem surda-muda para dar visibilidade a uma dessas mulheres.
"Espero pelo menos levar a voz destas mulheres a uma audiência, para que se saiba que estas pessoas existem e que este tipo de coisas acontece", referiu.
De acordo com a cineasta, trata-se de um problema de legislação, mas também cultural. "Penso que se não fosse o problema cultural, a lei não existia", disse.
"O problema é que o Governo georgiano, que é muito populista e muito autocrático, usa todas as formas possíveis de controlo, para controlo total e para inspirar medo", acrescentou.
"Penso que esta lei - neste caso específico, com todas as restrições para acesso ao aborto -- é usada claramente não apenas para controlar os direitos reprodutivos, mas como opressão e para manter as pessoas sob controlo", defendeu.
"Abril" conta a história de Nina, uma médica obstetra que está a ser alvo de uma acusação de negligência. "Nina é também a única ajuda possível que pacientes possuem nesta comunidade rural na Geórgia onde o aborto ainda é tema proibido", descreve-se na apresentação do filme.
Segundo a realizadora, o aborto é "teoricamente" possível na Geórgia. Porém, uma mulher que decida abortar "tem de ir primeiro a um conselho psicológico", que visa "ajudá-la a mudar de ideias".
"Mas imagina este tipo de sociedade muito misógina, muito cristã, com uma visão não muito humanista, antes pelo contrário. Para mim, ir a esta terapia ou o conselho que o hospital te dá, não é uma opção, mas um mecanismo, não para ajudar, mas para envergonhar uma mulher. É muito questionado neste momento, em Tbilissi", acrescentou Dea.
A cineasta confessou que foi duro realizar este trabalho e que se sente "muito grata" por ter conseguido levá-lo até ao fim. "Durante o processo houve sempre esta questão, se conseguiríamos fazê-lo", disse.
"Fui observada de muito perto pela polícia. Talvez um dia possamos falar mais livremente. Mas de momento não é fácil", ressalvou a realizadora e argumentista de "Abril".
Além do Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza, em 2024, "Abril" foi distinguido no Festival de San Sebastián, em Espanha, e deu a Dea Kulumbegashvili o prémio de melhor realização, em Hamburgo, entre outros prémios.
Em Portugal, 10% das receitas de bilheteira da distribuidora No Comboio vão reverter para o Observatório da Violência Obstétrica (OVO), a Associação Escolha e a Associação para o Planeamento da Família (APF).
O país do mar Negro, mergulhado numa crise constitucional desde que o partido no poder, Sonho Georgiano, reivindicou a vitória nas eleições legislativas de outubro do ano passado, suspendeu em 28 de novembro as negociações de adesão à União Europeia até, pelo menos, 2028.
Tbilissi é candidata à adesão à UE desde dezembro de 2023, um passo consagrado na Constituição do país.