"Reilly": 007 contra os bolcheviques

por RTP
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A série de dez episódios, rodada em 1983 e na altura emitida pela RTP, relata a vida de um espião lendário, que inspirou a figura de James Bond. Entre as suas muitas aventuras, há várias na URSS dos anos 1920. Numa delas acabará por ser fuzilado.

A série "Reilly, ás dos espiões" cobre a vida de Sidney Reilly, quádruplo espião, que começa por servir o Japão contra a Rússia na guerra de 1905, mais tarde, durante a Primeira Grande Guerra, começa ao serviço da Alemanha e passa para o serviço da Grã-Bretanha.

Finalmente, e também ao serviço da inteligência militar britânica, acaba numa tentativa que, segundo as confissões públicas do seu amigo Robert Bruce-Lockhart, teve o propósito ambicioso de assassinar Lenine e derrubar o governo soviético.

O sétimo episódio, com o nome escaquístico "Gambito", é o primeiro da série que se refere inteiramente à revolução russa. Reilly viaja à Rússia com uma mensagem pessoal do primeiro-ministro britânico Lloyd George para Lenine, pedindo-lhe para reentrar na guerra, de modo a aliviar a pressão alemã na frente ocidental.

A série ficcionada mostra Reilly a ser recebido pelo bolchevique Bonch-Bruevitch, que lhe recusa uma entrevista pessoal com Lenine, alegando que este se encontra ocupado. Mas Lenine acaba por entrar na sala onde a conversa tem lugar e recusa categoricamente a proposta de Lloyd George, de pôr tropas britânicas a combaterem os alemães em território russo.

Bonch-Bruevitch explica a Reilly que a Rússia sofreu milhões de mortos e tinha de sair da guerra de qualquer modo. Se rompesse o acordo de paz com a Alemanha, esta ocuparia Petrogrado em poucos dias.

Não está provado este encontro pessoal entre o espião britânico e o líder revolucionário, nem faria sentido que esse encontro tivesse lugar. Mas o teor da discussão com Bonch-Bruevich é verosímil, tal como é verosímil que a recusa da proposta britânica tenha sido o ponto de viragem para Reilly apostar, daí em diante, no assassinato de Lenine e no golpe de Estado para derrubar os bolcheviques.

O plano consistia em combinar um levantamento organizado pelo ex-ministro de Kerensky, Boris Savinkov, com um golpe de um destacamento letão, para formar um governo com Savinkov como ministro da Guerra e o próprio Reilly no lugar de Lenine. Da parte da Grã-Bretanha havia a promessa de, em troca, ajudar a Letónia a combater as tropas ocupantes alemãs e a obter a sua independência.

A ideia de um golpe seria plausível, e até a de colocar um espião no lugar cimeiro do poder não pareceria demasiado fantasiosa num país que entretanto já foi dirigido por Andropov e agora o é por Putin. Mas a série baseia-se apenas nas memórias Lockhart, que nem sempre têm suporte noutras fontes conhecidas.

Um outro erro evidente é o de não estabelecer distinção entre os esse-erres ("social-revolucionários") como Savinkov, já claramente alinhados com a contra-revolução, e os esse-erres de esquerda, ao tempo ainda coligados no Governo com os bolcheviques.

O facto é que, entretanto, todos os planos golpistas se desmoronam, precisamente porque os esse-erres de esquerda recusam com veemência crescente o acordo de paz com a Alemanha, decidem romper a coligação com os bolcheviques, organizam o assassínio do embaixador alemão em julho de 1918, tentam eles próprios um golpe de Estado e detêm durante algumas horas o chefe da Tcheka, Felix Dzherzhinsky.

Os acontecimentos precipitam-se, portanto, à margem dos planos de Reilly e Savinkov. O contra-golpe bolchevique - a prevenção rigorosa e a vaga repressiva desencadeada em resposta ao golpe - deitam por terra todos esses planos.



No oitavo episódio, Reilly continua a tecer a sua rede conspirativa, e contacta nomeadamente com a Igreja ortodoxa. O regicídio irá privar a igreja de um foco para o seu empenhamento conspirativo: a restauração monárquica tornou-se impossível. Além disso, o Governo britânico faltou aos compromissos assumidos com Savinkov, organizou um desastroso desembarque de tropas em Arkhangelsk - e com tudo isso obrigou Savinkov a pôr-se em fuga.

Entretanto, Reilly prossegue a preparação de um golpe de Estado com o regimento letão, em quem Lenine confia mais do que em qualquer outra tropa. Mas, em 30 de Agosto de 1918, um novo imprevisto volta a complicar essas diligências conspirativas: a esse-errista Fanny Kaplan dispara três tiros contra Lenine, que fica gravemente ferido. A Tcheka desencadeia nova vaga repressiva e procede a diversas execuções sumárias.

A série apresenta-nos aqui um Lenine pouco convincente, histriónico e afectado - a antítese dos traços de personalidade com que o líder bolchevique ficou a ser recordado pelos seus próximos. O ambiente em que ele discursa numa fábrica, pouco antes de ser alvejado, é pelo contrário relativamente bem reconstituído: o seu discurso é interrompido por operários discordantes, Lenine aceita as interrupções, replica-lhes, trata de convencê-los.

Em todo o caso, a derrota sofrida pela dupla Reilly-Savinkov obriga ambos a fugirem para o estrangeiro. No nono episódio, encontrar-se-ão em Inglaterra - Reilly a ser condecorado, mas também a ter de apresentar explicações a uma comissão de inquérito, pelo dinheiro que gastou a rodos na contra-revolução, e pelo seu projecto de encabeçar um governo russo que não previa a restauração monárquica - mesmo antes da eliminação dos Romanovs.

Em Inglaterra, Reilly tem encontros secretos com o embaixador bolchevique Leonid Krassin, que pede a sua intermediação para obter um empréstimo milionário. Reilly compromete-se a fazê-lo, por razões obscuras, que podem acrescentar algum picante à narrativa, mas fazem pouco sentido de um ponto de vista histórico. Além disso, Reilly regressou a Inglaterra em Setembro de 1918 e Krassin apenas se torna embaixador em Londres em 1925.

Paralelamente, o descontrolo da Tcheka é tão grande que um seu agente tenta assassinar Reilly - sem êxito, para felicidade de Krassin, que de outro modo veria a galinha dos ovos de ouro ser abatida por um homem de mão do seu próprio governo.

Mas a Tcheka também é sinónimo de ponderação estratégica e, pelo menos, de uma jogada de mestre: Dzherzhinsky concebe o plano de criar uma organização antibolchevique no exílio, o "Trust", que deverá atrair todos os inimigos do regime soviético e pô-los a trabalhar - por assim dizer, um abcesso de fixação sob o controlo do serviço de segurança russo.

O décimo episódio começa com uma reunião em Moscovo, onde o nome de Reilly surge como factor de preocupação: ele é visto como o homem que desconfia do "Trust" e ameaça desmascará-lo.

Reilly está entretanto em Nova Iorque, envolvido na organização de Savinkov, que planeia criar um exército mercenário para invadir a Rússia. A organização colabora com o FBI na detenção de "agentes soviéticos", que a paranóia anticomunista vê em cada imigrante russo. A histeria actual contra a infiltração do "Estado Islâmico" no meio de uma vaga de refugiados em desespero tem antecedentes antigos.

No filme, Reilly participa nas detenções, mas é apresentado como um gentleman, que recomenda tratamento correcto para os detidos. Os torcionários sádicos a quem entrega um deles encarregam-se de mostrar-lhe como esse escrúpulo é hipócrita e inútil - e desfazem o detido na tortura.

Mas, por trás da brutalidade de torcionários da Ku Klux Klan, esconde-se o plano de matar o detido, para que este não possa entregar a Reilly provas do controlo da Tcheka sobre o "Trust". Savinkov entusiasma-se com as possibilidades que aquela organização parece oferecer-lhe, e com os financiamentos ocidentais que a ela afluem, e não dá ouvidos a Reilly, quando este o desaconselha a reentrar na Rússia pela mão do "Trust".

E o facto é que Savinkov, regressado à Rússia, é capturado e julgado. O décimo-primeiro episódio começa precisamente com a sua morte, após a queda de um quinto andar na sede da Lubianka.

A versão oficial explica a morte do toxicómano Savinkov com suicídio, tanto mais que, detido pela Tcheka, ele fizera em tribunal uma declaração capituladora perante o governo bolchevique e se entretinha na prisão a escrever diatribes contra os líderes militares contra-revolucionários, em parte seus antigos aliados.

Mas tudo isso não provava a versão de suicídio, que em qualquer prisão é sempre suspeita. E Reilly intensifica a agitação contra o "Trust", que se mostrara incapaz de garantir a segurança de Savinkov durante a sua estadia na Rússia.



Por outro lado, a enérgica denúncia que Reilly propaga contra o "Trust" como instrumento soviético torna-se altamente incómoda para a GPU. O "Trust" convida-o então a ir à Rússia, para verificar in loco a seriedade da organização. Para a mulher e para os amigos mais próximos de Reilly, há motivos de preocupação. O convite pode ser uma armadilha. Mas Reilly decide partir.

Na verdade, a sua viagem é monitorizada desde o primeiro instante por Dzherzhinsky, que não o atraiu à Rússia para o eliminar, e sim para enganá-lo sobre o "Trust". Para o sucesso do seu plano, Dzherzhinsky precisa que Reilly entre e saia da Rússia em segurança e não se aperceba de que a GPU seguiu todos os seus passos.

O problema é que Estaline, desconfiado com uma manobra tão subtil como é o "Trust", dá ordens ao seu homem de mão, Artusov, para prender Reilly. Dzherzhinsky interpela-o e faz-lhe notar que a detenção de Reilly desacreditará inteiramente o "Trust" e fará cair toda a sua rede de agentes no estrangeiro.

A entrevista entre ambos contém uma reconstituição interessante, embora de duvidosa veracidade. Irritado por não conhecer a operação "Trust", Estaline pergunta a Dzherzhinsky quem a autorizou. Quando este lhe responde que foi Lenine, o georgiano tem uma explosão de fúria contra mais esse problema póstumo que lhe causa o líder bolchevique: "Lenine está morto! Por quanto tempo nos permitiremos governar este país com um morto a comandar?"

A relação entre Dzherzhinsky e Estaline é retratada como uma subordinação problemática. O chefe da Tcheka opõe-se à detenção de Reilly e a conversa entre ele e Estaline quase os deixa à beira da ruptura. Num outro momento, Dzherzhinsky recorda a Estaline que foi ele a colocá-lo no lugar onde está, e que do mesmo modo também poderá apeá-lo. Mas, no fim de contas, é a ordem do secretário-geral que acaba por ser cumprida.

Pelo meio, há várias peripécias. O chefe do serviço secreto britânico e o ministro dos Negócios Estrangeiros são recebidos pelo primeiro-ministro Baldwin. O super-espião quer resgatar Reilly e diz que ele se fez prender na Rússia para demonstrar o que sempre tinha sido a sua tese: o "Trust" como camuflagem para a GPU.

O ministro concorda que, ao fazer-se prender, Reilly desacreditou o "Trust", mas sustenta que o fez por ser ele próprio um agente soviético e por querer torpedear uma organização apostada em derrubar Estaline.

Os serviços secretos britânicos propõem ainda a Krasin que faça chegar a Dzherzhinsky uma proposta: entregar-lhes Reilly com vida, em troca de uma ajuda para derrubar Estaline.

No episódio final da série, Estaline parece suspeitar que a sua sobrevivência está em relação inversa com a de Reilly. Manda então prender e fuzilar todos os agentes soviéticos que trabalharam no "Trust" e, perante a indignação de Dzherzhinsky, promete anular a ordem em troca da execução de Reilly. Dzherzhinsky cede e manda executar o espião britânico.

A série enferma de vários erros históricos, como o que apresenta Dzherzhinsky a tolerar a tortura, quando na verdade esta se tornou uma prática corrente, promovida e encorajada pela cúpula soviética, depois da sua morte. Por outro lado, o acordo proposto pelos serviços britânicos a Krasin não faz qualquer sentido, porque o envolvimento desses serviços numa conjura para derrubar Estaline nunca seria moeda de troca para a vida de um espião, por muita importância que ele tivesse.
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