Cultura
Sem utilização pedagógica ou turística. Pegadas de dinossáurios de Carenque, o único trilho português com 95 milhões de anos
Identificado em 1986, este geosítio é o único em Portugal com trilhos de dinossáurios herbívoros e carnívoros do Cretácico Superior. A Brisa salvou as pegadas no início dos anos de 1990, ao construir o duplo túnel de Carenque, na CREL. Porém, quase 40 anos depois da descoberta, o sítio paleontológico não tem qualquer utilização pedagógica ou turística. Para reavivar a memória sobre este marco da Paleontologia nacional, a Associação dos Amigos das Pegadas de Dinossáurios de Pego Longo - APELO - está no terreno.
Quem viajar na A9 ou também conhecida por CREL (Circular Regional Exterior de Lisboa, que liga Caxias a Alverca) e atravessar o duplo túnel de Carenque está também a cruzar a linha do tempo geológico com mais de 90 milhões de anos.
Nesse momento do planeta, estas lajes seriam margens de uma laguna tropical banhadas por um mar morno onde se misturavam águas de rios com zonas salobras cheias de bivalves, e localizavam-se na latitude entre o trópico de Câncer e a Ilha da Madeira.
Por aqui, circulavam também grandes criaturas do Cretácico Superior ou mais precisamente do período Cenomaniano - que corresponde entre 100 a 94 milhões de anos. Para ajudar a contar essa evolução da vida na Terra ficaram as marcas desse momento gravadas nas camadas calcárias e argilosas.
A jazida de Pego Longo - Carenque foi identificada em 1986 no concelho de Sintra, perto de Belas. Um dos trilhos tem pelo menos 132 metros de extensão e continua a ser uma das raras evidências da Península Ibérica deste período.
Único geossítio com pegadas de dinossáurio do Cretácico Superior e último até à extinção
Em território português, não se conhecem outros vestígios de pegadas destes animais no intervalo de tempo entre o Cenomaniano até à extinção dos dinossauros há 65 milhões de anos.
Ou seja, para além do Monumento Natural de Carenque ser o único geossítio em Portugal do Cretácico Superior é também o único testemunho existente deste tipo, em território português, nos últimos 30 milhões de anos de vida dos dinossauros no planeta.
Também a nível europeu, e perante o pouco conhecimento sobre estes seres vidos do Cenomaniano, esta jazida é uma importante (e rara) fonte de informação desse elo paleontológico da sua última etapa de vida.
A laje das pegadas perpetuou-se no tempo ao ter camadas geológicas que se lhe sobrepuseram até que, trabalhos da pedreira da Quinta de Santa Luzia, a sudoeste de Belas (entretanto desativada), a destaparam e em 1986 o olhar atento de Carlos Coke e Paulo Branquinho, dois estudantes universitários, vislumbrou os trilhos.
Fragmento do trilho de 132 metros de dinossáurios da jazida de Pego Longo - Carenque. Início da década de 1990, durante os trabalhos de registo das pegadas antes de ter sido coberto com uma tela de geotêxtil | Foto de Vanda Faria dos Santos
A RTP visitou o Monumento Natural de Carenque, assim classificado em 1997, acompanhada por Mário Cachão, paleontólogo, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e investigador do Instituto Dom Luiz da Universidade de Lisboa (UL), que explica o enquadramento geológico da jazida.
Depois da descrição a partir do topo da encosta, Mário Cachão prossegue a visita, descendo à laje onde se encontram as pegadas, atualmente tapadas para melhor conservação por uma tela de geotêxtil e terra desde 1994 e após concluídas as obras da CREL. À data, a Brisa alterou o traçado da estrada que iria cortar a direito aquele terreno e em vez de destruir a laje, construiu um duplo túnel, salvando as pegadas.
Marcação dos trilhos para colocação da tela de geotêxtil | Imagens documentadas pela Brisa e disponibilizadas pelos investigadores
"A importância da preservação destas pegadas traduz-se na possibilidade de interpretar o paleoambiente que existia aqui, ajuda-nos a colocar personagens na forma de dinossáurios nesta laguna, ajuda-nos a compreender que animais existiam aqui. Sem esquecer que os trilhos dá-nos informação dos comportamentos - um trilho sequencial, pegadas isoladas ou agrupadas de forma mais ou menos dispersa - e isso tudo ajuda a compreender como, em determinada altura, este ambiente funcionou" acentua o paleontólogo.
O especialista aproveita para sublinhar que a preservação deste Monumento Natural tem um retorno para as populações e comunidades.
"Este território está relativamente abandonado mas pode ser completamente reabilitado e converter-se num local aprazível de usufruto", por exemplo, receber alunos dos diversos ciclos de ensino para observarem em primeira mão o património geológico e as provas paleontológicas.
"Este território está relativamente abandonado mas pode ser completamente reabilitado e converter-se num local aprazível de usufruto", por exemplo, receber alunos dos diversos ciclos de ensino para observarem em primeira mão o património geológico e as provas paleontológicas.
Durante a caminhada com a RTP o paleontólogo encontrou uma pegada mais afastada do trilho principal, esta destapada. Teria sido produzida por um dinossáurio herbívoro bípede, um ornitópode.
A jazida foi estudada de "forma mais tradicional numa altura em que não havia recurso a tecnologias digitais". Mário Cachão explica que seria necessário que nos dias de hoje fosse possivel voltar a limpar a laje para uma leitura fotogramétrica, digital, com drone, para "permitir fazer reconstituições à escala dos trilhos aqui preservados". Para além de abrir caminho a mais investigação tornar-se-ía para mostrar de maneira mais apelativa e informativa
Antes da jazida ser coberta, Vanda Faria dos Santos, paleontóloga e investigadora da Ciências UL, estudou o trilho principal e um outro conjunto de pegadas. A paleontóloga apresenta à RTP o "bilhete de identidade" das pegadas e explica a importância de uma das mais longas pistas contínuas conhecidas do Cenomaniano.
Investigadora Vanda Faria dos Santos, no início da década de 90 a marcar as pegadas | Imagem documentada pela Brisa e disponibilizada pelos investigadores
Realça sobretudo que esta descoberta "contribuiu para o conhecimento da fauna de dinossáurios destes tempos ao revelar pegadas de terópodes (bípedes carnívoros) de pequenas a médias dimensões". Sustenta ainda que esta jazida contém "uma das mais longas pistas de dinossáurios deixada, provavelmente, por um ornitópode (bípede herbívoro)".
Amigos das Pegadas. Associação APELO quer restaurar a memória do Monumento Nacional
Se na década de 90, professores e alunos das escolas vizinhas da jazida de Carenque criaram movimentos em nome da defesa das pegadas, atualmente a associação APELO pretende renovar essa memória e "recriar essa experiência" junto da nova população.
Se na década de 90, professores e alunos das escolas vizinhas da jazida de Carenque criaram movimentos em nome da defesa das pegadas, atualmente a associação APELO pretende renovar essa memória e "recriar essa experiência" junto da nova população.
Assim, na Escola EB 2,3 Professor Galopim de Carvalho, a RTP voltou a cruzar-se com o professor Mário Cachão que é um dos impulsionadores da APELO.
Desta vez, o investigador dirigia-se a uma plateia de alunos para apresentar a jazida da vizinhança e a Associação dos Amigos das Pegadas de Dinossáurios de Pego Longo - APELO. E em jeito de aula - que misturou geologia e paleontologia -, o paleontólogo chamou a atenção da jovem população escolar sobre a importante jazida localizada ali tão perto.
Na página do Facebook, a APELO apresenta-se como uma associação que "congrega todos os concidadãos que partilhem o objectivo comum de desenvolver ações de sensibilização junto das entidades competentes para a necessidade em preservar e valorizar o património natural exposto na antiga pedreira de Pego Longo".
Iniciativas desenvolvidas pela associação APELO, junto de professores e alunos | APELO e Carla Quirino - RTP
No terreno e numa outra iniciativa dos Amigos das Pegadas, o especialista conduziu os professores de Bio-Geo do Agrupamento de Escolas Professor Galopim de Carvalho de Queluz-Belas, numa visita à jazida para reavivar a memória do Monumento e para que sejam "agentes de valorização local" diz Mário Cachão.
André Simas, professor de Ciências e Coordenador da Escola Básica Professor Galopim de Carvalho aponta que aquela zona não pode ser só conhecida pelos engarrafamentos da IC19 e que em termos de património local há outros para além do Palácio de Queluz. Exalta o papel da APELO e sublinha que seria uma mais valia se o monumento paleontológico fosse aberto à comunidade.
Uma das iniciativas da APELO é participar com o ICNF na elaboração de painéis com informação de paisagem, com dados científicos do ambiente antigo destas lajes para que "as escolas possam tirar usofruto da jazida" e preparar uma possível abertura do geosítio à comunidade.
Mário Cachão sublinha que ideias, propostas e conhecimento científico não falta por isso demonstra vontade em retomar os trabalhos de campo para produzir mais informação, levantamento fotogramétrico para reconstituir o sítio paleontológico através de realidade aumentada e modelos 3D das pegadas.
Galopim de Carvalho espera que o património paleontológico de Carenque ganhe, um dia, um espaço museológico digno para contar a história do geosítio até porque defende que é um investimento. Afirma ainda que deposita confiança nas novas gerações e apela para que "nunca desistam".
A caminho de se assinalar os 40 anos da descoberta da jazida às portas de Lisboa, os investigadores recordam a visita do paleontólogo britânico, Martin Lockley, que numa reflexão alertou que a sua destruíção equivaleria a "uma segunda extinção dos dinossáurios".