Uma obra inquieta, plena de ironia, cor e pensamento

O pintor Eduardo Batarda, que morreu hoje, em Lisboa, aos 81 anos, deixa uma obra influenciada pelas artes gráficas e marcada pela inquietação, usando a ironia e a cor para interrogar e refletir sobre a própria arte.

Lusa /

Eduardo Manuel Batarda Fernandes nasceu em Coimbra, em 1943, e ingressou no curso de Medicina, em 1960, mas abandonou-o três anos depois, optando pela Pintura, que estudou na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, entre 1963 e 1968.

Participou pela primeira vez numa exposição coletiva em 1966, e teve a primeira exposição individual dois anos depois, em Lisboa, passando a exibir a sua obra regularmente, sobretudo na capital e no Porto, onde foi, mais tarde, alvo de antológicas e retrospetivas.

Entre 1964 e 1968, criou obras em tela e madeira, a óleo e depois em acrílico, recorrendo ao uso de pranchas à maneira da banda desenhada, para integrar referências num mesmo plano de leitura, nomeadamente de política, literatura, cultura popular e arte, que convivem lado a lado nos seus quadros.

Durante o serviço militar, entre 1968 e 1971, dedicou-se à ilustração. É desta fase "O Peregrino Blindado", livro de artista publicado pela Galeria 111.

Nos anos seguintes, obteve uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian com a qual estudou no Royal College of Art, em Londres, aprofundando o seu percurso artístico e teórico na primeira metade da década de 1970, período determinante para consolidar a dimensão reflexiva e crítica da sua obra.

No Royal College, Eduardo Batarda estudou com Peter Blake e Peter de Francia, e obteve os prémios Sir Alan Lane e John Minton.

Foi em Londres que refinou a sua técnica de aguarela, aliando saturação cromática e rigor no desenho a um vocabulário visual de forte carga crítica, inspirado pelos `comics underground` e pelo conceptualismo, construindo uma obra densa em alusões e trocadilhos visuais e verbais.

Desde cedo a obra de Eduardo Batarda revelou as influências das artes gráficas, da publicidade e da banda desenhada, e a sua pintura tornou-se um lugar de pensamento sobre a arte, a história da arte e a teoria, através de sistemáticas interrogações e reflexões.

A aguarela, por muitos considerada um meio `menor`, foi escolhida por Batarda para criar um contraste entre a delicadeza técnica e os conteúdos irónicos ou explícitos, e assim intensificar o seu discurso artístico.

Desta forma, o artista -- que também foi crítico de arte nos anos 1970 - foi criando obras com `camadas` de comentário e ironia sobre a arte e a sociedade, pelos quais era conhecido.

Escreveu no semanário Sempre Fixe, explorando o humor como arma de análise, através de textos reveladores de uma visão lúcida, mordaz e intelectualmente exigente sobre os circuitos da arte contemporânea, muitas vezes contundente.

Em 1976 começou a lecionar na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, combinando o ensino ao longo das décadas seguintes com uma prática artística intensa e multifacetada.

Criou também cenografias para o Teatro da Cornucópia, tapeçarias e obras de arte pública, destacando-se, entre os seus projetos, as tapeçarias para o Tribunal Constitucional (1988) e para a sede da União Europeia em Bruxelas (1992-1995).

Eduardo Batarda -- que em 2007, recebeu o Prémio Fundação EDP de Artes Plásticas e o Grande Prémio Amadeo de Souza-Cardoso em 2019 - é também autor da decoração da estação de metro de Telheiras, em Lisboa, realizada entre 1994 e 1996.

A sua série "Hispania Romana" fez parte, em 1998, da cenografia de "A Tragédia de Coriolano", de Shakespeare, encenada por Jorge Silva Melo. Nesse mesmo ano, o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian apresentou uma exposição retrospetiva do seu trabalho comissariada por Alexandre Melo.

Continuou a expor regularmente na Galeria 111, em Lisboa, e em várias mostras coletivas. Em 1975, na Fundação Calouste Gulbenkian, foi apresentada uma visão geral da sua obra como antigo bolseiro, e depois, em 1998, no Centro de Arte Moderna da fundação, marcou presença com a exposição "Eduardo Batarda: Pintura, 1965-1998".

Em 2009, o Centro de Arte Manuel de Brito, em Algés, apresentou a exposição "Eduardo Batarda na Coleção CAMB" e, em 2011, no Museu de Serralves, no Porto, foi organizada a antológica "Eduardo Batarda: Outra Vez Não".

Nesse ano, em Serralves, numa entrevista à agência Lusa no âmbito da exposição, o pintor admitiu que foi no final da década de 1980 que a sua pintura conheceu um relativo sucesso: "Pelas razões que eu considerava a parte ridícula e absurda do meu trabalho, eu fui tomado a sério e as pessoas disseram `mas que bonito`".

"Foi o único momento de êxito comercial e durou só uns meses, infelizmente, mas ainda hoje perguntam se eu não voltei a fazer essas coisas", comentou, na altura o artista, ironizando: "As pessoas continuam a usar os mesmos critérios que usavam quando eu tinha 22 anos, `é bonito ou é feio, gosto ou não gosto`, mesmo quando a arte não é feita para ser bonita. Como até se dizia no Porto, `bonito, bonito são os sabões do Achilles Brito.`"

Quando questionado pela Lusa sobre o facto de haver quem o caracterize como um artista que olha com extrema ironia para o mundo da arte respondeu: "Nunca me passará pela cabeça tomar estas coisas a sério, tomar-me a sério ou tomar a sério coisas que não são para tomar a sério".

Em 2016-2017, a ironia de Eduardo Batarda retomou em "Misquoteros --- A Selection of T-Shirt Fronts", exposição no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa.

Em 2016, o Pavilhão Branco do Museu de Lisboa acolheu "Mise en abyme", que reuniu 21 telas de Batarda, algumas até então inéditas, sob curadoria de Julião Sarmento (1948-2021), percorrendo quatro décadas de trabalho do pintor, de 1966 a 2002.

Pela exposição "Great Moments. Eduardo Batarda nos Anos Setenta", realizada na Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, em Lisboa, em 2020, recebeu no ano seguinte o prémio da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) para as Artes Visuais.

Também em 2020 foi distinguido com a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura.

Este ano, Eduardo Batarda foi a "figura central" da Bienal de Arte Contemporânea da Maia, que o curador da mostra, Manuel Santos Maia, definiu como um dos artistas mais influentes da pintura contemporânea portuguesa.

As peças de Eduardo Batarda estiveram expostas na sala central da bienal, convivendo de perto com instalações do jovem artista plástico portuense Pedro Moreira, de 24 anos, e com esculturas de autores moçambicanos, muitas delas evocando a sociedade matriarcal predominante no Norte do país africano.

Batarda é autor dos textos dos catálogos das suas exposições, nos quais adota um tom auto-irónico, mas revela sempre erudição e consciência crítica, complementando, esclarecendo ou desconstruindo a leitura das suas obras.

Em 2012, publicou "Dois desenhos - Uma aula ilustrada de iconografia", na Assírio & Alvim.

Citação recorrente nos seus textos é a frase atribuída ao artista e poeta italiano do século XVII Salvator Rosa: "Aut tace, aut loquere meliora silentio" ("Ou cala-te, ou diz algo melhor do que o silêncio"), uma máxima que condensa a exigência ética e estética da sua obra, construída com o objetivo de interpelar e questionar o mundo.

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