Venho de uma linha dos trabalhadores da linguagem -- Valter Hugo Mãe
Lisboa, 23 set (Lusa) -- Prestes a lançar o seu novo romance, "O Filho de Mil Homens", o escritor Valter Hugo Mãe falou à Lusa de alguns dos mil homens de quem é filho na literatura, todos "trabalhadores da linguagem".
Na vida -- indicou -, "sou filho da dona Antónia e filho do senhor Jorge. Na literatura, agora já nem sei muito bem, porque uma pessoa chega aos 40 anos e escangalha-se muita coisa e começa-se à procura de outras, e as coisas mudam um pouco as importâncias... mas enquanto escritor ainda gostava de acreditar que venho de uma linha dos trabalhadores da linguagem, dos poetas, que ainda sou, eventualmente, um poeta, e que me interessam as histórias porque é possível contá-las de uma determinada maneira".
"A história torna-se fantástica através do modo como é contada. Não me interessa a literatura plana, que apenas reporta um acontecimento, que pode ter sido muito incrível, mas que, reportado de qualquer maneira perde o seu fulgor, a sua humanidade, até. Fica só um registo", comentou.
"Eu gostava de acreditar que entre os mil homens que me antecedem e de quem sou filho, estariam um Kafka, um Eça de Queirós, um Pessoa, o Herberto Helder, assim essa gente. O Vergílio Ferreira, de quem eu gosto muito, o Saramago e o Lobo Antunes farão parte desses mil homens. Depois, muita gente... provavelmente, a Billie Holiday com o seu choro abnegado, com aquela propensão para sofrer, também é um dos meus pais, faz parte dos mil homens de quem eu sou filho", enumerou, porque a filiação de um escritor não tem de ser exclusivamente literária, pode ser de outras áreas da arte (ou da vida).
A música "é muito fundadora, para mim -- continuou -, aprendi muito com a música, ouvi muito letras. As letras da Billie Holiday, aquilo que ela diz é absolutamente incrível -- e era o que acontecia também com a Amy Winehouse, com aquelas letras impiedosamente reais, e é o que acho que depois, por exemplo, na poesia portuguesa, acontece um pouco na Adília Lopes, por isso é que eu a adoro".
Na opinião do escritor, "aquilo que é muito real, independentemente de acharmos autobiográfico ou não, não precisa de ser autobiográfico, mas vem de um fundo de veracidade, de um registo genuíno, de uma estética tão genuína".
"A Adília Lopes, um dia destes, pode ser uma senhora doutora rica, milionária, a viver numa casa maravilhosa e tudo isso, mas o fundo estético dela é aquele. Aquele é o tipo de linguagem, é o tipo de sentimento que ela tem genuinamente. E eu cresci muito com esse tipo de atenção - até mesmo às coisas mudas, à pintura. Os surrealistas, por exemplo, o Cruzeiro Seixas, com aqueles espaços lunares, aquelas figuras que se mesclam, as pessoas que se mesclam com cavalos, e com bicicletas, e com pedras, e seja o que for...", descreveu.
"Eu sempre tive muito essa ideia permissiva ou fantasista da realidade. Porque isso é uma visão que permite que nós vejamos a vida como uma coisa integradora. E eu acho que o irreal faz parte da realidade. A fantasia faz parte da realidade", sustentou.
Sobre uma certa crueza poética da sua linguagem literária -- uma característica que partilha com Adília, embora em registos diferentes -- Valter Hugo Mãe afirmou que "para escrever é preciso ter-se coragem".
"Se uma pessoa não tiver coragem de escrever o que quer escrever e o que quer dizer, então mais vale ir fazer outra coisa qualquer, não está no ramo certo, não dirimiu bem as suas vocações", defendeu o escritor, que começou por ter medo, enquanto adolescente, até de escrever nos seus diários, por não querer magoar a mãe, o pai ou algum amigo que pudesse lê-los.
"Era uma cobardia minha também. Porque depois teria de explicar às pessoas ou poderia perder as amizades. A dada altura, vamos perdendo isto, ou é preciso perder isto, para escrever livros. É claro que eu não digo que imediatamente exponha a minha vida íntima, privada, ou entenda que tenha de expor -- acho que não tenho de expor. Mas aquilo que são as minhas ideias, aquilo que eu penso da vida e aquilo que eu penso sobre os meus livros e de onde vêm os meus livros, não me humilha nada partilhar. Acho que, no fundo, no fundo, sou um rapazito muito normal", comentou.
A escrita, admitiu, ajuda-o a perceber melhor as coisas, a desatar nós, a fazer até com que se torne uma pessoa melhor.
"Se não servisse para isso, não estava a ver bem para que é que ela servia. Eu, quando era miúdo, procurava estéticas muito duras, muito impiedosas, e gostava da onda dos filmes de terror -- ainda continuo a gostar de filmes de terror, mas magoam-me, tenho medo. E com o tempo, acho que quero que as coisas me melhorem, que as coisas sirvam para alguma coisa, sirvam para que seja melhor, que não sejam só estéticas... É por isso que eu falava dessa estética genuína", frisou.
"Independentemente de não estar a falar de coisas que factualmente me acontecem ou aconteceram, essa espécie de tonalidade que os meus romances têm é a tonalidade que eu tenho, que a minha personalidade, o meu carácter, acaba por ter, assim uma tonalidade entre as coisas mais esperançadas, mas com a consciência de que é difícil, de que a tristeza é muito grande. E por isso, o que eu tento fazer, até fazer nos livros -- e este livro é muito isso -- é, ganhando consciência da tristeza, não permitir que ela seja tudo. Nunca permitir que a tristeza seja a última coisa, seja a maior, maior do que a felicidade, é tentar fazer com que exista um limite para isso, ou que exista uma sabedoria na administração dessa tristeza, como diria o Ruy Belo", concluiu.
ANC.