Wikipedia põe na ordem do dia debate sobre direitos de autor

Tem havido na História outras fotografias reproduzidas aos milhões sem que os seus autores vejam um tostão de direitos. Um exemplo clássico é a do "Che", da autoria de Alberto Korda. Agora, a Wikipedia publicou uma e recusou-se a pagar direitos, alegando que eles, se existem, pertencem a um macaco.

RTP /
Alberto Korda, ao lado da fotografia que fez sobre o Che Guevara Rafael Pérez, Reuters

A história é a de um fotógrafo britânico, David Slater, que reclamou à Wikipedia o pagamento de direitos de autor pela fotografia que aqui reproduzimos, no mesmo limbo jurídico, com o rasgado sorriso de um macaco. Mas a Wikipedia recusou pagar-lhe os direitos e deu, na resposta, início a um curioso vaivém de argumentos e contra-argumentos sobre esta questão recorrente.

Acontece que a fotografia do macaco foi tirada com a máquina de Slater, em 2011, durante uma viagem deste pela selva indonésia. Mas não foi Slater a tirá-la: o macaco tinha-lhe roubado a máquina e fotografou-se a si próprio. Uma selfie, portanto. Depois devolveu-lhe a máquina e desapareceu na natureza.

Slater, regressado ao Reino Unido, divulgou a fotografia, que logo se tornou um fenómeno viral nas redes sociais. Quando a Wikipedia a utilizou, o fotógrafo quis cobrar os direitos e exigiu mesmo que a imagem fosse retirada da net, mas deparou-se com a objecção de não ter sido ele o verdadeiro autor da fotografia.Trabalho de equipa, tecnologia e direitos de autorNo site de Libération, o advogado especialista em direitos de autor Emmanuel Pierrat refere-se em termos mais amplos à questão dos direitos de autor sobre imagens. Faz notar, por um lado, que muitas dessas imagens são fruto de um trabalho de equipa e que, muitas vezes, tem algo de aleatório atribuir os direitos de autor ao membro dessa equipa que carrega no botão para captar a imagem.

Existe também o problema da complexidade tecnológica da captação das imagens e, em tempos mais recentes, da robotização de algumas operações de captação. Pierrat dá o exemplo de fotografias Photomaton, que em boa lógica não deverão ter direitos de autor, porque "uma máquina não é um autor".

Outro é o caso de satélites usados para a captação de imagens, e que implicam uma série de operações altamente sofisticadas, acabando por fazer do operador um titular, a justo título, de direitos autorais. Claro que aqui volta depois a colocar-se o problema do trabalho de equipa - não já o da máquina como "autora".

A selfie do macaco indonésio constitui, de certo modo, um caso inédito. Antes, tinha havido pelo menos uma discussão com desfecho semelhante, mas diferente numa questão essencial, porque o autor da fotografia era um ser humano.

Tratava-se da imagem captada, no fim do século XIX, durante o périplo de um fotógrafo pela selva africana, em que o próprio fotógrafo surge no meio duma tribo de pigmeus. A fotografia tinha sido tirada por um pigmeu, a quem o fotógrafo dera as instruções necessárias. Quando começou a ser publicada em numerosos jornais, o fotógrafo quis cobrar direitos sobre ela, mas os tribunais decidiram que o autor era o pigmeu e que, não se tendo este manifestado, a imagem devia ser considerada de domínio público.Direitos incontroversos, mas incobráveisMas nem só de controvérsias jurídicas vive o reconhecimento dos direitos de autor. Em 1961, o fotógrafo cubano Alberto Korda captara uma imagem do "Che" Guevara, à cabeça da manifestação de protesto contra um atentado bombista da CIA no porto da Havana. A imagem começou depois a ser reproduzida aos milhões e tornou-se provavelmente a mais famosa da história da fotografia.

Korda não era especial entusiasta da imagem icónica e havia de afirmar, em Agosto de 2000, pouco antes de morrer que não entendia o sucesso desta, entre todas: "Há centenas de fotografias dele, realmente muito boas. Não entendo por que é que o mundo escolheu esta como a imagem do Che". Mas concedia que "quando as pessoas imaginam a personalidade do Che, parece que a encontram naquele olhar". E protestava contra a utilização da fotografia que ele fizera em grandes campanhas publicitárias, por vezes de multinacionais, como a de Smirnoff.

Devido ao bloqueio contra Cuba, Korda nunca teve a possibilidade de reivindicar o pagamento de quaisquer direitos sobre aquela imagem, que sem dúvida o teriam tornado milionário. E não teve a possibilidade de opor o seu veto à utilização da imagem do "Che" para produzir lucros das multinacionais.

Mais sorte teve o "Diário da Bolívia", que os assassinos do "Che" encontraram na mochila deste, quando o capturaram na Bolívia. Os mesmos que o mataram quiseram depois fazer fortuna com a venda de direitos desse inevitável best seller e preparavam-se para publicá-lo no quadro de uma grande operação promocional. O argumento jurídico que esgrimiam para justificar a operação era o de o "Diário" constituir um "espólio de guerra".

Foram, no entanto, ultrapassados pela espionagem cubana na Bolívia, que conseguiu obter secretamente uma cópia do "Diário". Em Cuba, organizou-se uma corrida contra-relógio para publicar o "Diário" antes dos assassinos do "Che". A corrida foi bem sucedida e a apropriação do "espólio de guerra" foi esvaziada.
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