Brexit. O que muda nas relações com o Reino Unido em dez pontos

por Andrea Neves - correspondente da Antena 1 em Bruxelas
Christophe Petit Tesson - EPA

O acordo de comércio e parceria entre a União Europeia e o Reino Unido entrou em vigor, provisoriamente, no dia 1 de janeiro e assim se vai manter até ao último dia de fevereiro. Até lá, o Parlamento Europeu terá que o analisar, fiscalizar e aprovar para que em março o documento assinado pelas duas partes passe a gerir, de forma definitiva, as relações entre os 27 e Londres.

Este acordo aplica-se a todas as relações que se estabelecerem entre a União Europeia e o Reino Unido desde o primeiro dia deste ano. É este pormenor que faz a diferença para quem já trabalhava e residia no Reino Unido e para quem pretende fazê-lo agora, por exemplo.

A Antena 1 analisou com José Luís Pacheco, chefe do secretariado da Comissão de Assuntos Constitucionais do Parlamento Europeu, algumas das principais questões que se colocam a partir de agora.

1 – A situação dos europeus que trabalham ou querem trabalhar Reino Unido

Para os cidadãos que já estão no Reino Unido e que pediram o estatuto de residente ou de pré-residente permanente não vai haver mudanças, porque os direitos foram salvaguardados pelo acordo de saída que entrou em vigor há um ano.

Para já, 328 mil portugueses pediram o direito de residência no Reino Unido. Um direito que devem obter, de forma definitiva, até Junho deste ano data a partir da qual, sem esse estatuto, estarão em situação irregular no país.
O acordo agora alcançado não refere regras específicas para os europeus que querem, agora, ir trabalhar ou residir para o Reino Unido. Londres não aceitou que houvesse entendimento para o futuro no que refere a esta questão.

Neste sentido, a quem quiser ir trabalhar para o Reino Unido aplicar-se-ão as regras de emigração naquele território.

Entre outras coisas, será necessário obter um visto ainda no país de origem. O trabalhador tem que comprovar que tem uma oferta de emprego e que possui as habilitações necessárias para desempenhar as funções que vai exercer. Vai ser necessário também comprovar que vai auferir um ordenado compatível com as tabelas salariais do país.

2 – O acesso dos estudantes europeus ao ensino no Reino Unido

O Reino Unido decidiu sair do programa Erasmus. Apresentou como razão o facto de haver mais estudantes europeus no país do que britânicos na Europa. O primeiro-ministro Boris Johnson considerou que era dificilmente suportável, economicamente, manter esta parceria.

No entanto, os estudantes de Erasmus que já estão em território britânico ao abrigo deste programa, podem continuar até ao fim do intercâmbio porque essas deslocações e estadias já foram devidamente autorizadas e financiadas pelo anterior orçamento comunitário, o último do qual o Reino Unido fez parte.
Londres quer agora criar o seu próprio programa de intercâmbio de estudantes pelo que será necessário esperar para conhecer as regras e as condições.
Para os estudantes europeus que participam no programa de intercâmbio Erasmus, o Reino Unido era o quarto destino mais procurado.

A partir de agora, os europeus que queiram ir estudar para o Reino Unido, sem ser através de um programa de intercâmbio, precisam de obter um visto ainda no país de origem comprovar que têm vaga na universidade que pretendem frequentar, que dominam a língua inglesa e que têm meios de subsistência. É que estudar no Reino Unido passará a ser mais caro.

Se até agora qualquer estudante europeu em solo britânico não podia ser discriminado e era tratado como um cidadão da União com os mesmos direitos e os mesmos encargos financeiros de um cidadão britânico, a partir de janeiro deste ano vão ter que pagar as propinas e os custos de um cidadão de países terceiros o que, na maioria dos casos, pode significar o dobro do que pagavam até agora

3 – O acesso dos pescadores europeus a águas do Reino Unido

Foi uma das áreas que mais dividiu as duas partes com a União Europeia a defender o direito de acesso dos pescadores europeus a águas britânicas como uma das contrapartidas do acesso, sem quotas e sem taxas aduaneiras, do Reino Unido ao mercado de 450 milhões de consumidores dos 27.

No acordo agora em vigor, está estabelecido que os pescadores europeus vão perder, gradualmente e durante cinco anos, 25 por centos das quotas de pesca em águas britânicas. Depois destes cinco anos, as possibilidades de captura vão ser negociadas ano a ano.
Se é um facto que os pescadores europeus pescam mais no Reino Unido do que os pescadores britânicos na Europa, também é verdade que Londres exporta, para o mercado da União Europeia, cerca de 2/3 dos derivados de pesca que produz.

A questão das pescas foi importante, não por causa do valor económico que representa – perto de 700 milhões de euros por ano quando o valor do comércio total entre as duas partes é de 700 mil milhões – mas pela importância que tem para as comunidades costeiras europeias.

Portugal não é um dos países da União Europeia com maior atividade piscatória em águas do Reino Unido. O ministro do Mar, Ricardo Serrão Santos, admite interesse sobretudo no verdinho e para poder usar como troca pela captura de outras espécies.

4 – O acesso a cuidados de saúde dos europeus no Reino Unido

Em visitas de curta estadia o cartão europeu de saúde mantém-se como valido para permitir que os europeus recebam cuidados de saúde no Reino Unido e os britânicos em solo europeu.

O acerto de contas será feito depois entre os sistemas de segurança social dos países envolvidos.
Diferente será a situação para quem vai trabalhar ou residir para o Reino Unido. Neste caso, aplicar-se-ão as regras nacionais britânicas de segurança social e acesso à saúde.

Esta é uma das áreas em que se admite que, de futuro, as duas partes possam avançar para acordos mais específicos e para o definir de situações que não estão contempladas neste acordo de comercio e parceria.

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, afirmou, depois de alcançado este entendimento, que admitia uma próxima cooperação entre as duas partes na forma de enfrentar esta pandemia e mesmo um tratado futuro para cooperação entre questões sanitárias futuras.

5 – A confiança dos consumidores europeus na qualidade dos produtos que chegam do Reino Unido

Não existem, de momento, razões para que os consumidores europeus possam desconfiar da qualidade dos produtos importados do Reino Unido porque as condições de controle sanitário, por exemplo, devem sempre respeitar as exigências de quem importa.

Este acordo encontrou formas de simplificar as trocas comerciais de forma a que um excessivo controle sanitário não bloqueasse o fluxo de bens.
Um aumento deste tipo de fiscalização pode, no entanto, ser aumentado, a qualquer momento, se os serviços aduaneiros da União Europeia registarem consequentes inconformidades com as regras estabelecidas.

6 – O que vai ser exigido a quem viaja para o Reino Unido

O Reino Unido, quando fazia parte da União Europeia, não integrava o espaço Schengen, pelo que as regras que vigoravam até agora são as que se vão manter.

Quem viajar de e para o Reino Unido continuará a ter que apresentar os documentos, à partida e à chegada e, no caso dos aeroportos, em áreas diferentes das que são destinadas a cidadãos de países que integram o acordo de Schengen que permite a livre circulação de pessoas dentro dos países signatários, sem a necessidade de apresentação de passaporte nas fronteiras. Mas não será necessário obter um visto prévio no caso das viagens de curta duração – até 90 dias – em turismo ou em negócios.
Note-se, no entanto, que até outubro deste ano será suficiente a apresentação do cartão de cidadão, mas a partir dessa data será exigida a exibição de um passaporte.

7 – A questão da concorrência e das empresas na União Europeia e do Reino Unido

Conseguir uma concorrência justa e livre entre as duas partes foi sempre uma das prioridades da União Europeia. O negociador chefe, Michel Barnier, sempre insistiu na necessidade de aplicar critérios de level playing field, criando as condições para que todos possam ter a mesma possibilidade de sucesso no mercado sem regras ou apoios que possam distorcer uma concorrência justa.

Neste sentido, os apoios e subsídios estatais às empresas devem ser adequados e não permitir situações de vantagem no mercado.
Neste sentido, se uma das partes considerar que as ajudas que estão a ser atribuídas às empresas são contrárias ao que ficou acordado, pode recorrer a um tribunal arbitral e, em último recurso, impor sanções que podem passar pela proibição de importação de produtos provenientes da industria que está a ser subsidiada por Bruxelas ou por Londres.

O Reino Unido queria poder impor as suas próprias regras, mas a União Europeia entendeu que um acesso sem tarifas, direitos alfandegários e limites à importação seria necessário para que não existissem regras de distorção do mercado ou, em alternativa, a imposição de impostos alfandegários ou um limite às importações. No acordo agora alcançado, optou-se pela criação de situações de base justas com a definição das ajudas de estado que são compatíveis com uma concorrência saudável.

8 – Os futuros acordos bilaterais e serviços bancários e financeiros

A partir de agora os países da União Europeia podem desenvolver acordos bilaterais ou multilaterais com o Reino Unido em áreas que não estejam abrangidas – ou o estejam apenas em certas questões - pelos acordos já assinados. Mas a mais significativa dessas áreas é a dos serviços financeiros.

Com o fim da liberdade de serviços entre as duas partes, os bancos e as seguradoras britânicos que queiram prestar serviços na União Europeia têm que necessariamente que se estabelecer num dos Estados-membros. A partir daí, um Estado-membro pode celebrar acordos bilaterais que abordem a forma de funcionamento desses serviços.
Outras das áreas em que, de futuro, podem ser assinados acordos bilaterais é a da emigração. As exigências para trabalhar, residir ou estudar podem ser definidas caso a caso entre o Reino Unido e um dos países da União Europeia

9 – O transporte de pessoas e mercadorias entre a União Europeia e o Reino Unido

O acordo entre a União Europeia e o Reino Unido prevê que se mantenham os transportes de pessoas e mercadorias por terra, mar e ar, mas com algumas alterações.

No caso do transporte aéreo de passageiros, é possível a uma companhia aérea britânica voar de um ponto do Reino Unido até um país da União Europeia, mas já não poderá fazer escala num Estado-membro e viajar para outro e só depois regressar a um aeroporto do país de origem.
No caso do transporte de mercadorias, poderá ser possível fazer escalas – capotagem – até para impedir que os veículos regressem vazios, o que teria um custo ecológico e ambiental que as duas partes querem evitar.

10 – Cooperação com o Reino Unido em programas de investigação e ciência

O Reino Unido saiu da maioria dos programas europeus – alguns bem significativos como o Erasmus – mas vai manter-se a estreita cooperação noutras áreas. São exemplos o programa Horizonte Europa, o Programa de Inovação e Investigação em Ciência, o programa Copernicus e o Programa de Observação da Terra, com grande relevância no estudo e combate ás alterações climáticas.

Mas o trabalho conjunto entre europeus e britânicos pode vir a estender-se a outras áreas.
De facto, já é possível que Estados terceiros participem em programas da União Europeia desde que também contribuam para o financiamento desse programa. O mesmo terá que acontecer sempre que o Reino Unido queira ser parte integrante de um projecto/programa europeu: terá que o financiar no montante e na forma definidos.

Muitos especialistas consideram que é desejável que tal venha a acontecer também em áreas como a de segurança, defesa e política externa, nas quais os objetivos são comuns.

Será preciso vontade política por parte das duas partes.
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