China. Coronavírus ou o novo agitador das massas

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Aly Song, Reuters

O novo coronavírus como o catalisador de uma contestação social não estaria nas contas de Pequim quando, numa quase inação face à ameaça sanitária, se viu a braços com o surto de covid-19 na cidade de Wuhan. Entre silenciamentos mais ou menos subtis, o governo central chinês defronta-se ainda assim com uma revolta mais ou menos silenciosa que procura respostas, um movimento social que ameaça agitar a organização disciplinada do gigante asiático.

Um número recentemente retificado aponta para cerca de quatro mil mortes devido ao novo coronavírus na China, a grande parte na cidade de Wuhan. São, no entanto, muitas as dúvidas sobre a forma como as autoridades lidaram com o surto do novo coronavírus no país. O secretismo e a proibição de um debate franco à volta da primeira onda de covid-19 fizeram parte do modus operandi de Pequim que, sugerem vários testemunhos, impediram cuidados médicos adequados aos primeiros suspeitos de infeção.

Uma parte substancial das queixas contra as autoridades chineses concentra-se em Wuhan, onde terá acontecido a primeira transmissão do novo coronavírus. Encontrando-se face a face com o desconhecido, Pequim adotou nessas primeiras semanas uma estratégia que, de acordo com testemunhos recolhidos pelo britânico The Guardian, atrasou cuidados médicos prioritários, o que poderá ter custado inutilmente a vida a muitos habitantes da cidade.

Os familiares das vítimas do novo coronavírus procuram agora respostas, num cenário improvável nessa China de mão de ferro, cuja ilustração está ainda na memória na forma como em 1989 esmagou a revolta em Tiananmen. Um grupo significante de habitantes da cidade contou com o apoio da Funeng, uma ONG baseada em Chansha, para fazer entrar nos tribunais várias queixas, exigindo indemnizações, ou apenas um pedido de desculpas pelas autoridades, que acusam de terem levado semanas a reagir à ameaça.

O sinal de que o povo chinês poderá estar neste período particular a colocar ao governo central de Pequim uma exigência inédita de prestação de contas ganhou forma, num primeiro momento, com a ascensão a figura de herói nacional do Dr. Li Wenliang, o médico oftalmologista de Wuhan que deu o alerta inicial para o que viria a tornar-se numa ameaça mundial. Li Wenliang chegou a ser investigado pela polícia e acusado de “espalhar rumores”.

Os primeiros sinais foram notados pelo médico ainda em dezembro, quando uma meia dúzia de doentes foram postos em isolamento devido a sintomas semelhantes aos da pneumonia atípica, ou SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), doença que em 2002 e 2003 vitimou 650 pessoas em território chinês. Li Wenliang enviou uma mensagem para um grupo de médicos alertando para um novo vírus, pedindo-lhes cuidados de proteção especial, o que lhe valeu uma convocatória das autoridades locais.

Obrigando o médico a assinar uma carta comprometendo-se a parar com o que diziam ser “atividades ilegais”, as autoridades de Wuhan mantiveram uma atitude passiva face ao novo vírus até ao mês de Janeiro. Li Wenliang divulgaria então a carta nas redes sociais, numa tentativa de acelerar medidas de proteção para o pessoal médico da cidade. Contraindo ele próprio o novo coronavírus, acabaria por ser vitimado pela covid-19 aos 34 anos e a sua figura ganhou dimensão quando os alegados rumores se transformaram numa dura realidade. Cresceria gradualmente à dimensão de uma espécie de herói, tanto quanto é permitido a uma figura que sofreu a repressão oficial de Pequim.

Na esteira desta revolta inicial, são agora vários os grupos de chat na Internet que denunciam má condução de casos familiares durante a epidemia na cidade de Wuhan. Apesar de constantemente monitorizados e periodicamente eliminados, deve ser aqui sublinhado não a mão-de-ferro de Pequim e dos governos regionais mas a ousadia dos cidadãos de darem esse passo em frente para contestar a autoridade.

Os protestos movem-se igualmente na esfera económica, com comerciantes de Wuhan que foram obrigados a manter os seus negócios fechados durante meses a manifestarem-se por uma redução nos valores das rendas. Na mesma linha, relata o The Guardian, em Yingcheng, cidade próxima de Wuhan, os habitantes protestaram contra os preços inflacionados dos alimentos. “As pessoas acordaram. Isso de certeza”, afirmou Xie Yanyi, um ativista de Pequim que exigiu formalmente do governo explicações sobre a origem do surto e do porquê do atraso nas informações ao povo chinês sobre o que se estava a passar.

Xie Yanyi, advogado que já sofreu a tortura às mãos do regime, lembra que “podem não ser muitas pessoas [a manifestar o seu protesto], mas a história mostra-nos que são ‘os poucos’ que mudam a sociedade e a história”.
“É a economia, estúpido”

Os sinais de cisão, embora de outra natureza, são igualmente notados nos Estados Unidos, com uma parte da população a contestar as decisões dos governadores que colocaram os seus Estados em quarentena, com imediatas consequências para a economia. As decisões para as políticas de saúde pública no combate ao novo coronavírus têm revelado uma Administração Trump a procurar o melhor de dois mundos: manter a atividade económica aberta, por um lado, e circunscrever a pandemia, pelo outro.

A máxima de que a cura – confinamento e fecho da economia – pode ser pior do que a própria doença é um argumento que não falta a todos os debates sobre a batalha travada globalmente contra a covid-19. E é precisamente esse o lema que está a levar para as ruas os grupos mais inflamados, com a extrema-direita a juntar-se às manifestações.

As preocupações económicas têm vindo a acompanhar o debate da questão de saúde pública que o novo coronavírus colocou às sociedades de forma global e, de certa forma, as duas questões são assumidas como faces de uma mesma moeda, já que a solução para cada uma delas parece ser o problema da outra.

Combate-se o alastrar da covid-19 com confinamento e paragem das atividades económicas, mas coloca-se assim em perigo a saúde económica dos países. Abre-se a atividade e cresce a produtividade e índices financeiros e laborais, com o restabelecer do mercado de trabalho, mas potencia-se o risco de contágios e agravamento da pandemia, com abertura para uma segunda vaga do coronavírus. Alguns epidemiologistas falam mesmo de mais do que uma vaga, num ciclo que poderá prolongar-se até 2022.

Esta contradição estará a afetar em particular a sociedade norte-americana e se em alguns Estados a população se conforma, com mais ou menos vontade, à ideia e confinamento, começam, à medida que se agravam os números do desemprego, a chegar-se à frente os líderes dos movimentos mais fundamentalistas.

Um exemplo paradigmático é o Estado do Michigan, que levou para as ruas grandes manifestações no final da semana passada. Uma dessas manifestações, organizada pela Coligação Conservadora do Michigan, apontou o dedo diretamente à governadora democrata Gretchen Whitmer, que estipulou até final do mês um confinamento obrigatório como forma de circunscrever a propagação do novo coronavírus.

“Não somos prisioneiros”, podia ler-se nos cartazes dos manifestantes.

Meshawn Maddock, um dos organizadores da manifestação, considerava que “a decisão de fechar as empresas, com o objetivo de levar todos esses trabalhadores à falência, é um autêntico desastre”.

Face à novidade que representa o novo vírus, o terreno em que se movem as discussões é fértil em especulação. Da mesma forma, também as bolsas mundiais se animaram com a chegada do final da semana, não porque tenha havido progressos de assinalar no combate à pandemia, mas fruto de um anúncio do presidente Trump, que acenou com a hipótese de reabertura dos negócios logo no início de Maio, no dia 1, com a normalidade a assentar em Junho. Ajudou aqui o anúncio da Boeing de que pretende retomar a atividade no Estado de Washington com pelo menos 27 mil trabalhadores.

A reação das bolsas foi unânime por todo o mundo. Nos mercados asiáticos e na Europa houve uma recuperação espontânea na ordem dos três, quatro por cento. No Velho Continente, assinalava o espanhol El País, as bolsas recuperaram até um quarto do seu valor desde os mínimos tocados em meados de Março, em plena explosão da crise sanitária.
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