Largarde em entrevista à RTP. Portugal "não está inteiramente protegido" do Brexit

por Márcia Rodrigues - RTP
"Portugal não está inteiramente protegido porque há muito comércio entre Portugal e o Reino Unido" Kevin Lamarque - Reuters

Em entrevista exclusiva à RTP, a diretora-geral do FMI fala sobre o Brexit, a recuperação económica de Portugal e o aumento do populismo em véspera de eleições europeias. Christine Lagarde avisa que "Portugal não está inteiramente protegido" em relação às possíveis ondas de choque de uma saída desordenada do Reino Unido da União Europeia.

Márcia Rodrigues: Segundo a senhora, o Brexit é uma das principais nuvens do horizonte. Qual é agora o tamanho dessa nuvem?

Christine Lagarde: Temos várias nuvens, não é a única, mas é certamente a mais urgente e da qual se espera uma resolução, esperemos, no mais curto espaço de tempo. Veremos o que nos reservam os próximos dias em termos de abertura ou afastamento, tranquilamente. O que repetimos várias vezes na nossa análise e relatórios é que quanto mais depressa for resolvido menos incertezas teremos. E quanto mais amigável for o acordo e mais eficaz for o período de transição menos riscos se materializarão para a totalidade do Reino Unido, para a totalidade da União Europeia e, certamente, para Portugal, que é um parceiro do Reino Unido.

Que consequências podemos esperar do FMI em relação ao Brexit? Irá de mau a pior? Pode dar-nos a dimensão, um exemplo?

A nossa avaliação é que haverá más consequências porque quaisquer restrições ou fricções adicionais, em termos de comércio, bens ou serviços, movimento de pessoas ou capitais, será pior do que a atual situação. O grau desse agravamento dependerá do tipo de desfecho alcançado. Que seja com um acordo, sem acordo, com cenários alternativos como foi proposto pelo Conselho Europeu, isso irá determinar a gravidade das consequências.

Mas para o Reino Unido irá haver uma redução do crescimento e, a médio prazo, uma economia que se reduzirá em tamanho. O impacto da União Europeia dependerá da quantidade de comércio e trocas que haverá entre o Reino Unido e membros da Europa. Onde veremos as consequências mais graves será na Irlanda, ou em países com muito comércio, como a Holanda, por exemplo.
Brexit: "Portugal não está inteiramente protegido porque há muito comércio entre Portugal e o Reino Unido"
Portugal não está inteiramente protegido porque há muito comércio entre Portugal e o Reino Unido e têm uma grande atividade de serviços, que é o turismo, amplamente aberto ao Reino Unido. Um bom amigo meu dizia: “Meus senhores, tenham receio do regresso dos vossos sogros”. Imagine se todos os reformados do Reino Unido que vivem em Portugal tivessem agora de voltar para o Reino Unido? Os sogros voltariam (sorrisos). Em termos económicos é uma questão grave.

Sei que é e que se define como uma otimista, mas poderá um Brexit sem acordo levar a uma recessão, a uma crise? Essa possibilidade é concreta ou é pessimista demais?

Não prevemos uma recessão, nem em termos globais nem na União Europeia. Mas é claro que quantas mais nuvens se abrirem, mais riscos se materializam, menos otimistas estaremos e reveremos mais em baixa as nossas previsões. O que sabemos de certeza é que, de momento, existe crescimento, essa dinâmica abrandou no mundo inteiro, e esperemos que alguns desses riscos sejam resolvidos mesmo antes de se materializaram. Há algum otimismo neste momento no setor do comércio porque as tensões comerciais entre os Estados Unidos e a China estão claramente a ser resolvidas, mas ainda estamos para ver com que sucesso, satisfação e brevidade. Mas há progresso em perspetiva.

O FMI está pronto para lidar com um Brexit sem acordo? Está a postos para lidar com isso?

Estamos a postos para ajudar todos os nossos membros, a qualquer momento. Mas penso que o melhor é serem eles a ajudarem-se a si próprios, escolhendo a situação menos danosa e mais consensual com a União Europeia.


Tendo em conta acordos anteriores, nomeadamente entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido, há uma variedade de parâmetros que têm de ser respeitados. Esperemos que tomem a decisão certa. Seria o melhor. Mas estamos a postos para ajudar toda a gente.

Esteve recentemente em Portugal…

Foi um grande prazer.

Pensa que a economia portuguesa está agora mais bem preparada para enfrentar uma crise do que estava em 2011? Mais determinada?

Portugal melhorou significativamente a sua posição em termos económicos. Ao vermos os números, a dívida de Portugal começou agora a diminuir – ainda é muito elevada, não me interprete mal – mas desloca-se agora na direção contrária, não a subir, mas a descer. Se vir o défice orçamental foi significativamente reduzido. Se vir algumas das reformas que tencionavam fazer, se vir o setor bancário, que está mais forte do que estava, em todos esses critérios, Portugal tem muito melhor desempenho. E os mercados veem isso. Ao vermos os spreads, o retorno dos títulos portugueses, costumavam estar no fundo dos países europeus, e subiram significativamente nessa escala.

Defendeu isso em economias como a portuguesa…

Tentamos ser parceiros juntamente com Portugal.

Os políticos deviam ter um compromisso para fazerem reformas, para continuarem a aprovar reformas. Qual pensa que deverá ser agora a prioridade no caso de Portugal?

Primeiro, penso que Portugal tem de manter este rumo. Mostrou ao mundo e aos mercados financeiros que era capaz de fazer reformas, de aplicar disciplina orçamental, de dar a volta à posição da sua dívida, para baixo e não para cima e penso que essas reformas foram iniciadas. Mas devem continuar nesse caminho, nesse mesmo rumo, o que é fenomenalmente importante. Portugal "mostrou ao mundo e aos mercados financeiros que era capaz de fazer reformas"

O mercado de trabalho é um dos setores, continuar a investir na educação para os jovens em Portugal, garantindo todas as medidas corretas de competências para eles. Penso que isso será muito importante para o futuro.

Acredita que Portugal, agora, está num caminho credível e sustentável?

Penso que demostrou a sua capacidade de se reformar, de se disciplinar, de implementar mudanças e penso que o próximo passo é demonstrar que é capaz de o fazer a longo prazo, sem relaxar ou aproveitar os seus louros e pensar que o mais difícil está feito e que há que voltar a como estava antes. Não, deverão manter a atual atitude e para melhor, mas não como era antes.

O FMI tem as mesmas ferramentas para ajudar Portugal numa próxima crise? Estarão os mesmos instrumentos e ferramentas disponíveis?

Acima de tudo, lembremo-nos que a Europa mudou desde a crise. Existe agora o mecanismo de estabilidade europeu e será chamado a ajudar se houver algum problema. Nós, o FMI, estamos a postos para continuar a ajudar qualquer membro que nos peça ajuda. Portugal é um membro muito antigo da instituição. E sim, o FMI ajudará se Portugal nos pedir, mas penso que estão num ponto em que deverão ter força suficiente e proteções suficientes para resistir ao próximo choque.

Referiu que o sistema bancário foi um problema e continua a ser, de certa forma, um problema. Pensa que é um dos principais problemas em Portugal?

Comparando com há seis, sete anos, melhorou grandemente. Lembro-me de discussões muito difíceis na altura com o governador do Banco Central, com o ministro das Finanças e também com banqueiros. Melhorou significativamente, mas ainda não está num ponto de total segurança, com excelentes mecanismo de proteção, como poderia estar. Penso que o trabalho de limpeza, de remoção de créditos mal parados e tornarem os bancos absolutamente seguros tem de continuar."Penso que o trabalho de limpeza, de remoção de créditos mal parados (...) tem de continuar"


É uma questão controversa, no sentido de que o modelo continua a ser: se houver um problema com os bancos, os governos defenderão os bancos e os contribuintes acabarão por pagar isso no final. Existe algum outro modelo para resolver os problemas do sistema bancário sem o dinheiro dos contribuintes? Há alguma forma de resolver isto?

Penso que há formas diferentes de resolver esse problema. Primeiro, os depositantes, os clientes dos bancos, os agregados familiares, as pessoas que fazem os seus depósitos, têm o benefício de uma garantia. No que lhes diz respeito, existe o elemento da rede de segurança. Isso é bom e deve continuar.

Mas no que diz respeito à resolução dos bancos, existe um mecanismo europeu que foi agora adotado e que está implementado, que se aplica, acima de tudo, às instituições sistémicas, mas que também se aplicará ao longo do tempo a todos os bancos. E é assim que deverá ser feito. Deverá haver acionistas, obrigacionistas que deverão suportar o primeiro choque e que serão eliminados primeiro.

Claro que deverá haver respeito pelos mecanismos de resolução, para que não acabem por ser os contribuintes a pagarem a conta. Um progresso que temos defendido e que esperemos que complete a união bancária é esse mecanismo de garantia, que estará implementado, e que irá cobrir todos os bancos da Europa, que será financiado coletivamente pelos próprios bancos e que evitará que sejam os contribuintes a pagarem a despesa.

Estamos na véspera de eleições europeias e uma das principais questões é a clara ascensão do populismo. Num momento em que a União Europeia está ainda em construção, qual seria o seu conselho aos políticos para lidarem com o aumento do populismo? Como podem eles elevar o nível de vida da população? Porque essa parece ser uma das principais questões de norte a sul, de este a oeste na União Europeia.


Não podemos reescrever a história, mas julgo que a forma como se lidou com a crise financeira podia ter sido melhorada, e deveria ter-se centrado na melhoria da situação das pessoas. Mas nós estamos onde estamos, e penso que urge concentramo-nos, primeiro, em assegurar que há empregos disponíveis para todos.

Temos ainda países onde a taxa de desemprego para pessoas com menos de 25 anos, que estão no mercado de emprego, é de 25%. Um jovem desempregado europeu precisa de esperança, precisa da expetativa de que haverá trabalho para fazer, de que irá acrescentar valor ao seu país e à Europa. "Um jovem desempregado europeu precisa de esperança, precisa da expetativa de que haverá trabalho para fazer, de que irá acrescentar valor ao seu país e à Europa"

Penso pois que centrarmo-nos no emprego, no conjunto de capacidades que os jovens precisam de ter para obter tais empregos, é a primeira prioridade. Porque ao fazermos isso reduzimos a primeira desigualdade: aqueles que têm emprego, aqueles que o procuram.

Há desigualdades excessivas que cresceram em certos países, entre os que detêm uma enorme riqueza e, em geral, rendimentos muito, muito elevados, e aqueles que pouco têm. E urge lidar com esse fosso noutros aspetos além de nos centrarmos no emprego e na mulher. E para fazer isso há que criar oportunidades, usar ferramentas orçamentais, sendo uma delas os impostos. Garantir que há benefícios disponíveis para que as pessoas possam alcançar e cumprir o seu potencial. Julgo que seriam essas as minhas prioridades.

E depois há toda uma lista de coisas que podem ser melhoradas. Começamos pelas finanças pois queremos que sejam sólidas. Concluímos a união bancária, concluímos o mercado de capitais a nível europeu, atentamos na nossa dependência energética e tentamos criar alianças entre todos os membros da União Europeia, em especial da Zona Euro, por forma a existir uma política energética comum que dê resposta à questão da energia limpa, à questão da redução da dependência de combustíveis fósseis, etc.

Atentamos depois na segurança. São esses, quanto a mim, os três pilares: finanças fortes, política energética comum centrada na poupança e num uso equilibrado e, em terceiro lugar, segurança a todos os níveis, interno e também regional.

O combate contra a discriminação é um causa que tem defendido...

Focar-me-ia na mulher. Lamento, mas esta tem sido a minha causa célebre. Penso que uma das principais desigualdades que existem prende-se com a discriminação entre o homem e a mulher – nos salários, na participação no mercado laboral, no acesso a financiamento e a lista é muito extensa…

Que conselho daria às mulheres que gostassem de se afirmar na esfera pública?

Em primeiro lugar unirem-se a outros. E refiro-me aqui a outras mulheres e outros homens, pois não creio que seja só uma questão da mulher. É uma questão humana. E isso aplica-se a todas as discriminações, de género e outras. Assim, diz respeito a todos, e diria então que devem forjar alianças com todos os que apoiarem a causa. E não desistam. Defendam a igualdade de tratamento, a todos os níveis.

E diria, em segundo lugar – e disse-o a presidentes de empresas e a políticos – atentem no essencial, nos pormenores, nos números, nas diferenças, não olhem o topo das estatísticas que vos dão bons números por alto. Analisem a formação contínua, a disponibilidade de promoções, a exata igualdade nas indemnizações. Falo aqui do mercado laboral.

Há uma diferença enorme…

Sim, há uma diferença enorme. E diria mais uma coisa, provavelmente às raparigas em especial. Diria para não recearem as tecnologias, as ciências, abracem-nas, pois isso irá dar-lhes uma chave para mais oportunidades, mais liberdade e independência. Não queiram ser dependentes de nada. Descubram essas áreas, adotem-nas, controlem-nas, dominem-nas.
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