Mal refeita de uma pandemia que abalou economias inteiras e a tentar reparar à pressa os buracos deixados pela guerra na Ucrânia nos abastecimentos de energia, a Europa enfrenta agora a ameaça da seca extrema, com as suas bacias hidrográficas em sérias dificuldades, pondo em risco produções agrícolas e o transporte de bens.
A maioria da Inglaterra foi declarada em seca, França vive a sua pior seca de sempre e outros pesos pesados do setor agrícola europeu, como a Roménia, a Itália e a Alemanha, sofrem com baixa precipitação e altas temperaturas.
O impacto devastador em cursos de água vitais para a irrigação e a navegação do continente salta à vista, depois de um inverno e primavera anormalmente secos e das vagas de calor extremo do verão.
Quebras e mais quebras
Em Itália, o “rei dos rios”, o Pó, responsável por 30 a 40 por cento da produção agrícola italiana e afetado pela falta de chuva desde novembro, está dois metros abaixo do nível normal, levando a alertas de que o ano agrícola está praticamente perdido, sobretudo nos arrozais, milharais e na produção de amêijoas.
Por toda a Europa central e do sul é visível o impacto da seca. Até meados de agosto, o continente tinha perdido desde janeiro para as chamas mais de 660 mil hectares sendo a Península Ibérica a região mais afetada.
As ondas de calor e o verão seco já estão a ditar quebras na produção de azeite, que pode por exemplo chegar aos 70 por cento nos olivais portugueses mais antigos, isto depois de um ano de produção recorde. Metade do azeite mundial é produzido em Espanha e um dos seus principais exportadores, a Acesur, que produz mais de 200 mil toneladas métricas e as envia para mais de 100 países, já avisou para um aumento de preços nos próximos meses, incluindo devido à escassez de óleo de girassol. Um problema que não deverá contudo afetar grandemente o nosso país devido às reservas nacionais.
Também o setor vitivinícola europeu irá registar grandes perdas de produção devido ao calor e à falta de água.
No Reino Unido, por exemplo, um produtor antevê um acréscimo de 10 por cento por garrafa no próximo ano, devido não só à falta de matéria-prima como à inflação e aos custos crescentes de energia, embalagem, entrega, materiais, salários e reciclagem.
“Tempo quente e falta de chuva tendem a baixar a produção, o que leva a preços mais altos. Em cima disso temos outros investimentos e elementos como garrafas e caixas de cartão estão significativamente mais caros devido a problemas de abastecimento e de custos energéticos”, afirmou David Gates, diretor executivo de Direct Wines ao Daily Telegraph.
Os problemas invocados por Gates repetem-se um pouco por toda a Europa e nos mais variados setores.
Outros são vítimas diretas da escassez da água. Por exemplo, as trutas da Baviera estão ameaçadas pelo aumento da temperatura do Danúbio, que atingiu 25º no início de agosto e que poderia chegar a 26.5º nos próximos dias, implicando que o conteúdo de oxigénio cairia abaixo das seis partes por milhão, algo fatal para aquela espécie de peixe.
“Necessitamos de medidas extraordinárias para garantir a segurança do abastecimento”, avisou o ministro da economia alemã, Robert Habeck.
Carne, leite e queijo mais caros
A agência Bloomberg antevê por seu lado a subida dos preços da carne, leite e queijo, devido à perda de pastos e de colheitas de cereais destinados a alimentar o gado.
Fez notar, por exemplo, que os criadores britânicos já estão a recorrer às reservas de inverno para alimentar as reses, uma vez que os pastos estão completamente secos. Os milharais em França, sublinha, estão no seu ponto mais baixo numa década e a secar noutros pontos, agravando o problema das rações para os próximos meses. A produção europeia de cereais deverá ser a menor desde 2007 e não há garantias de que os carregamentos da Ucrânia se mantenham apesar dos acordos mediados pela Turquia. Países europeus têm procurado fornecer-se noutros mercados, como a Itália que adquiriu 105 mil toneladas aos Estados Unidos para 2022-23, a maior encomenda do país em pelo menos 20 anos.
A União Europeia é a maior exportadora mundial em carne de porco e em queijos, mas os custos crescentes em rações além da escassez de mão-de-obra e surtos de doenças ameaçam ambos os setores. Muitos produtores têm misturado trigo ao milho para alimentar os animais, uma vez que o primeiro ainda está mais barato.
A diminuição das varas de suínos levou a um aumento de 12 por cento do preço da carne de porco em junho, face ao mês homólogo do ano transato, o maior aumento jamais registado.
Nesse mesmo mês os preços dos alimentos subiram em média 11 por cento face a 2021, o maior salto numa década, para não mencionar os custos agravados de bens essenciais como a energia.
Os produtores de leite enfrentam problemas similares. Não só o tempo quente como o recurso a rações leva a diminuição de produção.
“Nesta altura do ano, todos os animais deveriam estar no exterior a pastar erva, que é a forma mais barata de os alimentar", referiu Richard Findlay, presidente do Sindicato de Produtores Agrícolas britânico. “Como não estão a fazê-lo, isso vai refletir-se de certeza nos custos”.
Transporte logístico parado
Além de providenciarem água para a agricultura e as comunidades, os rios e canais europeus são ainda usados para transportar anualmente mais de uma tonelada métrica por residente da União Europeia, contribuindo em cerca de 78.57 mil milhões de euros para a economia da região, de acordo com cálculos do Eurostat.
A descida da água está a deixa-los intransitáveis, mesmo para barcaças. Sérvia, Roménia e Bulgária estão a cavar canais no rio Danúbio, que percorre 1.400 quilómetros pela Europa central antes de desaguar no Mar Negro, para possibilitar o habitual transporte.
O Reno, uma das principais vias europeias para o transporte de bens alimentares, como cereais, está a ficar impassável e a empresa de logística Contago espera que o nível da água desça ainda mais uns 40 centímetros até ao final do mês. “Nessa altura, as nossas barcaças não poderão navegar sem riscos e por questões de segurança teremos de em larga medida interromper a nossa navegação” advertiu a empresa.
Em causa os segmentos de Kaub Gauge e de Duisburg-Ruhrort, que abrangem o cimo e o meio do Reno e que deverão ficar abaixo dos 81 cm e dos 181 cm respetivamente. Condições que eximem a empresa das suas obrigações “contratuais de transporte,” alertou a Contago.
De forma geral todos os setores, do transporte à energia e à produção agrícola estão a emitir alertas de consequências dramáticas, coincidentes com a quebra de abastecimentos e aumentos de preços devido à invasão russa da Ucrânia.
O impacto das condições climatéricas adversas deste ano deverá ser ainda mais grave do que o dos cinco mil milhões de euros em prejuízos devido à falta de navigabilidade do Reno em 2018, acredita Albert Jan Swart, especialista em transporte no Banco ABN Amro.
“A capacidade para o transporte marítimo terrestre vai ser gravemente afetada enquanto não chover o suficiente na área”, referiu. “Também temos de ter em conta o prejuízo causado à Alemanha pela alta dos preços de eletricidade. Falamos em milhares de milhões”.
A Contargo admite o transporte por via terrestre entre troços com menor nível de água, mas alerta para as capacidades limitadas da solução.
Os custos das barcaças já estão a subir em flecha, com uma subida de 30 por cento registada de um dia para o outro, uma vez que a carga que podem transportar diminui com o nível da água.