Arqueólogos em Gaza correm para salvar património cristão antes de ataque israelita

Os arqueólogos de Gaza, auxiliados por equipas de ajuda humanitária, salvaram 70 por cento de um dos acervos arqueológicos mais ricos da Faixa de Gaza. Com o avanço israelita para o interior da Cidade de Gaza nos últimos dias, foram destruídos pelo menos 30 por cento do espólio dos primeiros registos arqueológicos da religião cristã no Oriente Médio, com cerca de 1800 anos.

Carla Quirino - RTP /
Premiere Urgence Internationale

A intensificação da ofensiva militar israelita à Cidade de Gaza da última semana tornou-se, ainda mais, uma ameaça para a população palestiniana, alertaram pelo menos 51 organizações humanitárias.

Os Médicos do Mundo descreveram estes ataques como “uma sentença de morte” para o povo palestiniano.

Perante as ordens de Israel para as pessoas abandonarem a Cidade de Gaza e a iminência de destruição total dos edifícios, arqueólogos ajudados por equipas humanitárias da Premiere Urgence Internationale - PUI - (organização humanitária e de proteção de património cultural de Gaza desde 2009), em colaboração com o Patriarcado Latino de Jerusalém, acorreram a um depósito de 80 metros quadrados para resgatar um dos acervos arqueológicos mais ricos da Faixa de Gaza.
Mais de 25 anos de escavações
O acervo arqueológico compreende dezenas de milhares de artefatos de importantes sítios cristãos em território palestiniano, incluindo a Igreja de Mukheitim, a Igreja de Al-Bureijh, a necrópole romana de Ard-Moarbin e Anthedon (Lista Provisória da UNESCO).

Entre os materiais arqueológicos estão cerâmicas, mosaicos, moedas, gesso pintado, inscrições, restos humanos e animais.

Este espólio representa uma componente essencial do património palestiniano e é vital para a compreensão da história cristã primitiva e antiga do Oriente Médio. A sua destruição representaria uma perda irreparável para o património global”, de acordo com a French Biblical and Archaeological School of Jerusalem (EBAF), que defende não ser apenas a história de Gaza que está em jogo, mas a do mundo.

Os trabalhadores humanitários não tiveram tempo suficiente para traçar um plano adequado no transporte de artefatos tão sensíveis, disseram os arqueólogos | Premiere Urgence Internationale

Apesar de o edifício que albergava a coleção de artefactos beneficiar de proteção da ONU, além de ser administrado pela EBAF de Jerusalém, o exército israelita deixou claro aos arqueólogos que o armazém não seria poupado, enfatizando que o Hamas usa os civis de Gaza como escudos humanos, assim como casas, hospitais, escolas, mesquitas e mesmo áreas culturais.

De acordo com a publicação The Times of Israel, os militares acrescentaram que o prédio abrigava instalações vigilância do Hamas.
Resgate improvisado e em contrarrelógio

O arqueólogo Fadel al-Otol, com outros colegas, organizou um grupo de trabalho para retirar os materiais arqueológicos do edifício al-Kawthar.

“Nunca passou pela minha cabeça que sítios arqueológicos, museus e armazéns seriam destruídos um dia. Esses objetos são o fruto do nosso trabalho em Gaza nos últimos 30 anos. O meu coração está partido”, sublinhou Otol em entrevista ao L’Orient Today e à BBC News.

“Este resgate simboliza o nosso compromisso em proteger não apenas a vida, mas também a memória e o património de um povo
. Desde 2017,os nossos programas têm como objetivo preservar esse património histórico, ao mesmo tempo que oferecemos treino e meios de subsistência para os jovens palestinianos”, explicou a equipa Première Urgence Internationale, que geriu a segurança do local, negociando mais tempo com as forças de Telavive para procurar parceiros capazes de transferir o acervo.

Após nove horas de negociação com os militares israelitas as equipas de ajuda humanitárias também enfrentaram a dificuldade para encontrar camiões numa Faixa de Gaza devastada, onde o combustível é quase inexistente.

“Cinco minutos antes de eu aceitar que todo este património seria obliterado na nossa frente, um parceiro ofereceu-nos transporte”, relatou Kevin Charbel, coordenador de campo de emergência da Premiére Urgence Internationalel. A PUI trabalhou com o Patriarcado Latino de Jerusalém para conseguir transferir os artefatos para um local mais seguro na cidade de Gaza, cujo o sítio não foi divulgado por razões de segurança.

Com um ataque aéreo israelita a aproximar-se, os trabalhadores humanitários realizaram a missão de resgate contra o tempo. Os arqueólogos tiveram seis horas para “embalarem milhares de peças e empilharem cuidadosamente caixas de papelão em veículos de caixa aberta", descreveu a PUI.

Olivier Poquillon, diretor da EBAF, relatou que a mobilização foi feita “com quase nenhum ator internacional dos que restam no território, nenhuma infraestrutura, tendo que improvisar transporte, mão de obra e logística” | Premiere Urgence Internationale

Os militares israelitas não permitem o uso de contentores fechados, expondo os artefatos a perigos adicionais. Alguns materiais arqueológicos partiram-se no transporte e perto de 30 por cento tiveram que ser deixados para trás, sendo apenas fotografados e catalogados. 

Israel destruiu o prédio três dias depois.
Porquê salvar a riqueza arqueológica de Gaza?

Gaza é um importante centro cultural e histórico por ser palco das rotas comerciais antigas entre o Egito e o Levante e dar chão a milhares de sítios arqueológicos associados a diferentes povos milenares, como egípcios, cananeus, israelitas, persas, romanos e bizantinos. 

Alguns templos, mosteiros, palácios e mesquitas datam de 6 mil anos, sendo que muitos dos artefatos encontrados estão indicados pela UNESCO como património a ser preservado.

A UNESCO também avançou que Israel já danificou, pelo menos, 110 locais culturais em toda a Faixa de Gaza, incluindo 13 locais religiosos, 77 edifícios de interesse histórico ou artístico, um museu e sete sítios arqueológicos, desde o início da guerra em outubro de 2023.

Enquanto a população enfrenta uma crise humanitária e precisa de negociar água, alimentos e medicamentos para salvar vidas, Charbel refletiu sobre a necessidade de salvar também os artefatos arqueológicos, salientando que o resgate dos artefatos do edifício al-Kawthar acabou por ser uma conquista perante um cenário de devastação de sítios históricos em Gaza.

“Nós aceitámos fazer este resgate, porque o espólio é tão valioso,
estes objetos únicos milenares representam uma tal importância, tanto para a história mundial como também para a história de Palestina”.

“Destruir as primeiras provas da história cristã na Palestina iria apagar essa etapa da humanidade para sempre”, exaltou.
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