60 anos da Carta constitutiva da ONU assinalados com reforma em pano de fundo
As Nações Unidas celebram domingo o 60/o aniversário da assinatura da sua Carta constitutiva numa atmosfera em que coexistem o orgulho da obra feita e interrogações sobre o futuro da organização e a sua inevitável reforma.
Ao contrário do que se verificou em 1995, não estão previstas grandes comemorações para assinalar a ocasião na sede da ONU, em Nova Iorque, onde apenas se realizará uma breve cerimónia na segunda-feira de manhã.
Em contrapartida, em São Francisco, na Califórnia, onde o documento fundador da organização foi assinado, em 1945, as comemorações estender-se-ão ao resto do ano e serão centradas em eventos culturais.
No próximo fim-de-semana, cerca de 70 ex-chefes de Estado participarão em dois dias de celebrações (discursos, projecções, concertos), a convite da Associação para as Nações Unidas e daquela cidade californiana.
De entre os antigos dirigentes internacionais esperados em São Francisco, contam-se a ex-Presidente irlandesa Mary Robinson e o ex- Presidente mexicano Ernesto Zedillo, bem como os ex-primeiros- ministros canadiano Kim Campbell, francês Michel Rocard e jordano Abdessalam Majali.
Devido a tensões entre a organização e Washington, o Presidente norte-americano, George W. Bush, e a secretária de Estado, Condoleezza Rice, declinaram o convite para as comemorações, sendo a delegação dos Estados Unidos encabeçada por Sichan Siv, representante do seu país no Conselho Económico e Social da ONU.
Na segunda-feira, os senadores democratas bloquearam a nomeação de John Bolton, um conservador escolhido por Bush para embaixador dos Estados Unidos na ONU, mas que não se poupou a críticas à organização no passado.
Além disso, Washington tem pressionado com bastante insistência a ONU a proceder a uma reforma de fundo, depois de esta se ter recusado a apoiar a ofensiva da coligação anglo-norte-americana no Iraque, iniciada em Março de 2003.
"Muitas pessoas sentem que a ONU está a ser alvo de um ataque, não do mundo mas dos Estados Unidos", declarou Gillian Sorenson, membro da Fundação da ONU e ex-subsecretária-geral.
"Existe uma importante disputa, mas devemos olhar para o futuro, para além das próximas eleições [norte-americanas] e para fora das nossas fronteiras", sublinhou, acrescentando que os Estados Unidos deverão compreender que uma ONU forte é muito importante para eles.
"Há uma certa ironia em realizar esta reunião aqui [nos Estados Unidos], mas são o país de nascimento" das Nações Unidas, disse ainda.
Durante dois dias, sábado e domingo, São Francisco será palco de celebrações recordando as circunstâncias da elaboração do texto que criou as bases da organização internacional e de reuniões de reflexão sobre o seu futuro.
A Associação para as Nações Unidas reuniu cerca de 480.000 dólares de donativos para financiar uma série de actividades que culminarão, no domingo, com uma cerimónia que misturará discursos, música e arte numa catedral.
Apesar de o secretário-geral da ONU, Kofi Annan não estar presente, a assistência verá uma mensagem vídeo em que este evocará a história da organização e os desafios que a esperam nos próximos anos.
As celebrações incluirão também reconstituições históricas da assinatura da Carta, com voluntários da Cruz Vermelha de uniforme, enfermeiras da Segunda Guerra Mundial e ardinas apregoando exemplares fac-similados da edição do San Francisco Chronicle que anunciava a assinatura do texto constitutivo da organização.
De acordo com Edward Mortimer, director de Comunicação do gabinete do secretário-geral da ONU, "a verdadeira celebração é a cimeira que decorrerá em Setembro", a reunião anual da Assembleia- Geral da organização.
"Para o 60/o aniversário, é muito mais importante orientar [a organização] para o futuro e incitar os chefes de Estado e de Governo a tomar as decisões que se impõem para que esta organização possa continuar a servir os povos do mundo melhor do que no passado", defendeu.
A Carta da ONU, redigida após dois meses de trabalhos, quando decorria ainda a Segunda Guerra Mundial, constituiu o acto de nascença de um sistema de segurança colectiva que, com altos e baixos, preservou a humanidade de um novo confronto generalizado.
Para Mortimer, o preâmbulo da Carta, que enuncia a vontade dos fundadores de "preservar as gerações futuras do flagelo da guerra" e afirma a sua "fé nos direitos fundamentais do homem", não perdeu a validade.
"O espírito da Carta, que se expressa tão magnificamente neste preâmbulo, é mais actual que nunca", observou.
Assinada a 26 de Junho de 1945 por 50 países - entre os quais os Estados Unidos de Franklin Roosevelt e Harry Truman, que desempenharam um papel motriz - e ratificada a 24 de Outubro do mesmo ano, a Carta define os objectivos e princípios essenciais das Nações Unidas.
Pretendia-se "manter a paz e a segurança internacionais" e "desenvolver entre as nações relações amigáveis fundadas no respeito do princípio da igualdade de direitos dos povos", destacou.
Em 19 capítulos e 111 artigos, o texto cria como órgãos principais uma Assembleia-Geral, um Conselho de Segurança, um Tribunal Internacional de Justiça e um Secretariado.
Mas a ONU, fundada no final de uma guerra convencional, teve dificuldades em adaptar-se às mudanças e aos novos desafios surgidos com o século XXI e foi, além disso, abalada por escândalos que revelaram fragilidades estruturais na sua administração e modo de funcionamento.
Para enfrentar tais problemas de forma mais eficaz, um vasto projecto de reforma está actualmente em discussão entre os 191 Estados membros da organização.