A face feminina da Revolução Russa. História de uma emancipação efémera

por Andreia Martins - RTP
Manifestação no Dia Internacional da Mulher, em 1917 em São Petersburgo. DR

No centenário da Revolução de Outubro, debruçamo-nos sobre o papel, tantas vezes escondido, das mulheres anónimas que contribuíram para a transformação da sociedade. A conquista de direitos marcou os primeiros anos da Rússia dos revolucionários, numa luta constante contra o preconceito, a intolerância e o esquecimento. A chegada de Estaline ao poder, com a imposição de uma ditadura sanguinária na União Soviética, viria a dissipar muitos destes avanços históricos.

“Uma galinha não é um pássaro e uma mulher não é uma pessoa. Pensei ter visto duas pessoas a caminhar, mas uma era mulher”
Antigo provérbio russo

Em “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”, obra inaugural de Svetlana Alexievich - vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2015 – surgem reunidos relatos pessoais de algumas das mulheres da União Soviética que lutaram direta ou indiretamente contra o nazismo, crónicas tão distantes dos cânones e dos atos heróicos que surgem nos livros de História.

São as vivências particulares do sofrimento individual, histórias que morrem com os seus protagonistas e únicos detentores. Ao Estado pouco interessam as reminiscências que não glorificam a figura do soldado e nada acrescentam às grandiosas vitórias bélicas. Alexievich é acusada pela censura de mostrar a “sujidade” da guerra, de “difamar” um povo heróico com pequenas histórias, de desviar atenções do que realmente importa.

A autora bielorrussa recupera mesmo as palavras de Alexander Púchkin sobre Nadejda Dúrova, uma cavaleira do século XIX que combateu contra Napoleão. Diz que as mulheres que combatem se afastam dos hábitos femininos, da sua educação de formato patriarcal. Que “renunciam ao seu género”, alienadas no espaço que lhes foi destinado pela sociedade.

Tal como acontece na Segunda Guerra Mundial e em tantos outros momentos centrais da História da humanidade, também a Revolução Russa carece de um rosto feminino. Apartada de um papel de sujeito ativo na mudança política e social, a mulher é relegada para o papel secundário que não teve.

Lenine, Trotsky, Estaline, Sverdlov, Kamenev são os nomes que mais depressa afloram à mente quando falamos da ocorrência histórica que por estes dias assinala o seu centenário. São as personalidades masculinas que se destacam, líderes incontestáveis e verdadeiros instigadores de ação.

No entanto, como veremos, é a mulher de caráter mais ou menos anónimo que está no despoletar do processo que desencadeia a revolução bolchevique. Como protagonista mas também como beneficiária da nova ideologia, intervém de forma inédita na alteração de uma realidade social onde tudo muda para voltar a ficar tudo na mesma. É que, apesar de todas as conquistas nos primeiros anos da Rússia pós-imperial, a emancipação feminina só poderá avançar até ao ponto permitido pelos homens fortes da cúpula do partido.
Do anonimato para a ação
No início do século XX, a sociedade russa é anacrónica, quase medieval. O Império Russo foi a derradeira potência europeia a decretar o fim do sistema de servidão, em 1861, e a pobreza é generalizada entre o campesinato. A emancipação dos servos pouco ou nada mudou e o czarismo, com a forte componente religiosa, constituía um regime opressivo e autocrático. Mas se a vida dos camponeses era dura, a das suas mulheres era ainda mais, como revela a historiadora Cathy Porter na obra “Women in Revolutionary Russia”, publicada nos anos 80, ainda antes da queda da União Soviética.

“A vida das mulheres camponesas era duplamente difícil. Tantas vezes maltratada pelos pais, marido e sogros, exausta com gravidezes sem fim e com o trabalho nos campos, era vista como quase-humana, e o seu trabalho era considerado pouco produtivo”, conta Porter, historiadora que se especializou na história da Rússia desde o século XIX.

Mesmo as mulheres de famílias mais abastadas eram vítimas de maridos violentos e o divórcio era praticamente impossível para qualquer classe social. O mesmo cenário é reproduzido em tantos outros países europeus, neste caso agravado pelo enorme atraso económico e político.

Nas cidades, o cenário é praticamente o mesmo. O Império Russo vai iniciar tardiamente o processo de revolução industrial, já em finais do século XIX. As novas fábricas levam ao êxodo rural significativo para os centros urbanos, sem que isso represente uma melhoria das condições de vida. Muitas vezes, as mulheres apenas acompanham os maridos e entregam-se das tarefas domésticas em casas insalubres com condições miseráveis de habitação, em que famílias eram amontoadas em espaços comuns, separadas por cortinas.

Quando entram nas fábricas, são sujeitas a enormes cargas horárias, salários muito inferiores aos que eram auferidos pelos homens. Acumulavam catorze horas (ou mais) de trabalho nas fábricas às tarefas domésticas e aos cuidados com a família.

A maternidade estava mais que nunca ameaçada: sem direito a licença de maternidade antes ou depois da gravidez, a mulher optava entre deixar de trabalhar ou deixar os filhos ao abandono. Nas primeiras grandes greves de massas, que decorrem em fábricas de têxteis, em maio de 1896, quase metade dos trabalhadores são mulheres.

Neste contexto de greves e contestação começam a destacar-se três figuras femininas: Elena Stasova, futura funcionária do Comintern, Nadezhda Krupskaya, revolucionária que viria a casar com Vladimir Lenine, e Alexandra Kollontai, que se aproximou dos ideais bolcheviques com o início da I Guerra Mundial e viria a ser uma das principais figuras da revolução.

No poder, o czar Nicolau II continuava a impor uma governação nacionalista e autocrática. A situação do povo só piora no início do novo século com a guerra russo-japonesa, em 1904. Para as mulheres, as dificuldades de subsistência nas cidades levam à escalada nos números de prostituição e de pedintes nas ruas.

O regime aposta na repressão violenta de manifestações, a mais conhecida em frente ao Palácio de Inverno: o “Domingo Sangrento”, manifestação pacífica de 200 mil camponeses em janeiro de 1905, termina com a morte de pelo menos 300 pessoas, entre elas mulheres e crianças.

Nesse mesmo ano, os protestos e greves constantes levaram a cedências do regime, ao possibilitar a reforma constitucional e o estabelecimento da Duma. No entanto, pouco ou nada se alterou no nível e condições de vida.

Nos anos seguintes, as mulheres fazem-se cada vez mais ouvir na luta pelos direitos. Os primeiros panfletos exigem licenças de maternidade pagas (quatro semanas antes do nascimento e seis semanas depois do nascimento), tempo livre durante o dia para alimentar as crianças, e infantários nas fábricas. Começam as primeiras reuniões de mulheres próximas dos ideais comunistas, que se juntam com o pretexto de terem aulas e se alfabetizarem.

A historiadora brasileira Maria Orlanda Pinassi define quatro elementos fundamentais para a liberdade feminina, segundo o marxismo bolchevique: a união livre e a formação de uma nova moral revolucionária, a socialização de trabalho doméstico, dissolução da família tradicional e a libertação das mulheres através do trabalho assalariado.
A revolução dentro da revolução
Em 1910 é instituído o Dia Internacional da Mulher, que passa a ser celebrado a 8 de março e que viria a ser tão decisivo para a história da revolução. Em 1913 a data é celebrada na Rússia pela primeira vez.

Flanqueados pelo Pravda, surgem os primeiros jornais afetos à causa feminina: Rabotnitsa (Mulher Trabalhadora), com uma tiragem de enorme sucesso e Golos Rabotnitsy (A Voz da Mulher Trabalhadora) afeto aos mencheviques.

No ano seguinte, a I Guerra Mundial faz aumentar os preços, a especulação, a perda de vidas humanas na frente de batalha. Os protestos mudam de foco. Agora, as mulheres pedem pão para os filhos e o regresso a casa dos seus maridos, alistados no Exército.

A historiadora Megan Trudell conclui que o impacto do conflito mundial foi “decisivo” para incrementar o peso político e económico das mulheres. Se representavam 26,6 por cento do total de população trabalhadora em 1914, três anos mais tarde constituíam praticamente metade (43,4 por cento).

Mesmo nas áreas mais especializadas, a participação das mulheres aumentou dramaticamente. No setor metalúrgico, eram apenas 3 por cento da massa trabalhadora. No ano da revolução, a percentagem já chegava aos 18 por cento.

Em março de 1917 os protestos atingem um ponto de não retorno. As trabalhadoras saem à rua logo a 7 de março, na véspera do Dia Internacional da Mulher a contestação espontânea alastra até ao dia 13, quando os guardas fiéis ao czar perdem o controlo das ruas de Petrogrado. Estava feita a Revolução de Fevereiro, segundo o calendário juliano, que viria a ser trocado pelo gregoriano após 1917.

No entanto, o novo Governo Provisório nomeado pela Duma vai mostrar resistência em retirar a jovem República da I Grande Guerra. Pela primeira vez, a propaganda revolucionária era legal em território russo e os sucessivos líderes de Governo, entre fevereiro e outubro, vêem-se a braços com um país em estado anárquico que lhes exige o fim da beligerância russa.

É a partir do Smonly, instituto ocupado por raparigas da nobreza em São Petersburgo na época dos czares, transformado no quartel de general dos bolcheviques, que Lenine assume os destinos da Rússia.

Uma das primeiras leis aprovadas pelo novo Governo, logo a 20 de dezembro de 1917, foi um novo decreto sobre o casamento: no novo Código Familiar, homem e mulher são iguais perante a lei, ambos podem pedir divórcio e é erradicado o conceito de filho “ilegítimo”.

A sangrenta guerra civil que se segue à tomada de poder pelos bolcheviques contará novamente com a participação em massa das mulheres. Pelo menos 74 mil são alistadas para combater no Exército Vermelho contra as várias intervenções externas no sentido de ajudar os moderados, nacionalistas e aos apoiantes do czarismo.

As enormes perdas territoriais, económicas e populacionais, decorrentes do tratado Best-Litovsk, em março de 1918, que retira a Rússia da I Grande Guerra, e as invasões de potências externas, no sentido de deter a ameaça bolchevique, apronfundam a crise e ameaçam uma sociedade já de si fragilizada.

Seguem-se outros avanços que em muito ultrapassam o que se registava nos países ocidentais mais desenvolvidos. Durante os anos da guerra civil, milhares de mulheres tinham recorrido ao aborto ilegal, por receio de não conseguirem alimentar os seus filhos em condições tão precárias. Em 1920, numa medida de saúde “temporária” de forma a evitar os riscos inerentes à interrupção da gravidez, a Rússia torna-se no primeiro país do mundo a legalizar o aborto por intercessão do Jenotdel, o departamento criado em 1919, dedicado às mulheres dentro do Partido Comunista.

Não obstante, estas mudanças na lei muito à frente do seu tempo não alteram os preconceitos nem as dificuldades. “A revolução trouxe direitos às mulheres no papel, mas na verdade tornou as suas vidas bastante mais difíceis”, refere Alexandra Kollontai nas suas memórias.

A revolução russa não aboliu o domínio dos homens nem as desigualdades. Poucas mulheres ocupavam cargos administrativos e a mentalidade retrógrada do povo russo continuava não permitir certos avanços.
Instrumentalização da mulher?
Nos primeiros meses da revolução, as mulheres bolcheviques tinham definido as principais prioridades de ação: exigiam direitos no trabalho e condições de vida que ajudassem à maternidade. Mas um problema mais urgente se impunha: os numerosos orfanatos e infantários onde milhares de crianças eram abandonadas à sua sorte, cujo destino mais certo era a rua e uma vida de esmola.

Para dar o exemplo, um grupo de mulheres lideradas por Alexandra Kollontai inicia ainda em 1917 a restauração, limpeza e renovação de um velho orfanato de Petrogrado, o Instituto Kollontai. Esta foi também um investimento com o qual os bolcheviques pretendiam comprovar às mulheres que encaravam as suas preocupações com seriedade.

Com um edifício pintado de fresco, totalmente renovado e equipado com uma enfermaria, laboratório médico e biblioteca, centenas de mulheres grávidas pediam assistência ao novo instituto, o “Palácio para Mães e Bebés”, ainda antes de este abrir portas. O edifício acabaria por ser completamente consumido pelas chamas, horas antes da inauguração. As camadas mais retrógradas da sociedade russa não gostaram de ouvir que, durante a renovação do edifício, todas as imagens religiosas tinham sido retiradas, ou dos rumores que atribuíam às enfermeiras promiscuidade e relações extraconjugais.

A história deste infantário poderia ser a metáfora do caminho que foi percorrido pelas mulheres revolucionárias. Contra o preconceito e os ditames do anterior regime, contra as imposições do próprio bolchevismo. Desde o início do processo revolucionário que a “questão feminina” se havia constituído como contraditória.

A historiadora Cathy Porter conta que, desde finais do século XIX, vozes revolucionárias defendiam que a discussão particular da questão das mulheres deveria ser feita somente depois de consolidadas as mudanças políticas e económicas. Para as mulheres revolucionárias, a melhoria geral das condições de vida e de trabalho era inseparável da libertação da mulher.

Para a investigadora Megan Trudell, que faz a retrospetiva dessa época no artigo “The Women of 1917”, os bolcheviques merecem reconhecimento por terem sido a única força política na Rússia capaz de “levar a sério” a questão da mulher. No entanto, argumenta que “o facto de que os bolcheviques fizeram mais do que outros partidos para atenderem às preocupações das mulheres trabalhadoras não foi necessariamente pelo grande compromisso que tinham para com os seus direitos”.

Vários historiadores entendem que a dinâmica do movimento feminista é assimilada logo nos primeiros meses após a revolução. Clara Zetkin, figura histórica do feminismo alemão, anos antes tinha proposto, na I Conferencia Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em Basileia, na Suíça, em 1910, que o dia 8 de março fosse adotado como o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora.

Ela relata dois encontros que teve com o primeiro líder soviético em “Recordações de Lenine”. Recorda destes dois episódios os largos elogios à mulher no processo revolucionário: “Nas cidades e nos centros industriais mais distantes, o comportamento das proletárias durante a revolução foi notável. Sem elas, não teríamos vencido. É o que penso. Que coragem mostraram e mostram elas ainda!”.

Mas a memória de Zetkin também registou as preocupações do então líder soviético sobre as prioridades para as mulheres daquele tempo. Nos escritos sobre esse encontro, Clara Zetkin relembra a fúria de Lenine quando confrontado com a importância dada aos “problemas do casamento” na discussão da questão feminina na Alemanha.

“O essencial é relegado para último plano como uma coisa secundária. Isto não só prejudica a compreensão do problema, como obscurece em geral o pensamento, a consciência de classe das operárias. (...) Já Salomão, o Sábio, dizia que há um tempo para cada coisa. Diga-me por favor se é agora o tempo de as operárias se ocuparem durante meses inteiros da maneira de amar e de ser amada, de cortejar e de receber galanteios". Para Lenine, todos os pensamentos das operárias deveriam "ser orientados para a revolução proletária”.

“É preciso deixar bem clara a questão do laço indiscutível que há entre a situação da mulher, enquanto ser humano e membro sociedade, e a propriedade privada dos meios de produção. Deste modo temos a certeza de nos demarcarmos do movimento burguês em favor da emancipação da mulher. (...) Cabe-nos educar as mulheres arrancadas à sua passividade, recrutá-las para tomarem parte na luta de classes sob a direção do partido comunista”, são algumas das palavras recordadas por Zetkin de um dos encontros que teve com Lenine.

Thaiz Senna, historiadora brasileira que se dedica a estudar as representações femininas durante a Grande Guerra Patriótica – designação russa para a luta contra o nazismo durante a II Guerra Mundial – argumenta no artigo “Questão feminina, resposta geral: o Jenotdel como metonímia na Rússia revolucionária”, que o Partido Comunista vai incluir a mulher nas suas prioridades iniciais não por uma questão de princípio, mas por “necessidade tática”.
Estalinismo e fim do Jenotdel
Para Senna, o trajeto do Jenotdel é o reflexo da questão feminina na Rússia. Se Lenine via o departamento dedicado às mulheres como um “aparato partidário” que serviria os interesses do partido e da Revolução, líderes femininas como Alexandra Kollantai entendiam que a função primária desse departamento era, não a popularização da linha geral do partido entre as mulheres, mas introdução na construção do novo Estado de “princípios baseados nos interesses das mulheres”. “Lenine via o departamento como representante do partido entre as mulheres, Kollontai transformou essa fórmula no seu oposto”, argumenta a historiadora.

Criado em 1919 sob a liderança de Inessa Armand e depois de Alexandra Kollontai, com o principal propósito de ajudar mulheres viúvas ou que se encontravam na miséria, o Jenotdel viria a durar apenas alguns anos após a doença e morte de Lenine. Uma das funções desta secção era também a de combater o preconceito no trabalho, incentivando os homens trabalhadores a escolherem mulheres como suas representantes das fábricas.

O Jenotdel conseguiu que, durante algum tempo, pelo menos uma mulher controlasse as condições de trabalho em cada uma das fábricas, de forma a serem atendidas as queixas das restantes. Mas nas reuniões gerais do partido, os temas trazidos à mesa pelo departamento feminino eram progressivamente deixados para último lugar nas discussões.

A tomada de poder por Estaline só tornou o assunto ainda menos relevante. Segundo o novo líder soviético, a questão histórica da mulher já fora resolvida. Em 1930, Estaline dá por encerradas as funções do departamento.

Em poucos anos depois da subida ao poder de Estaline, as mulheres perdem muitos dos direitos conquistados após a revolução, entre elas a permissão do aborto ou a liberalização do divórcio, alguns dos quais só viriam a recuperar após a participação decisiva na II Guerra Mundial. No entanto, e como sublinha Thaiz Senna, "é inegável a transformação social, política e cultural das mulheres após a revolução. Mulheres essas que antes se encontravam em condições muito piores do que a de outros Estados europeus”.
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