Mundo
A hipérbole chegou ao poder
Boris Trump e Donald Johnson -- perdão Boris Johnson e Donald Trump -- podem ter tido educações bem diferentes (sim, o novo PM britânico é imensamente mais culto e inteligente que o atual Presidente dos EUA). Mas chegaram ao poder pela mesma via disruptiva que desrespeita as melhores tradições democráticas da “Velha Albion” e do “farol da Liberdade”: ambos mentem descaradamente, exploram medos primários e usam o exagero para ludibriar quem está desejoso de acreditar em facilidades. E isso não é perdoável.
Hipérbole: um modo de descrever alguma coisa de uma forma que dê a impressão que é maior e melhor do que realmente é; exagero;
Cambridge Dictionary
Ter medida no que se dizia e prometia foi, durante décadas, uma virtude que ajudava a definir a grandeza de um líder.
Nos tempos disruptivos de “Brexit” e populismos nacionalistas que vivemos, o desbragamento atingiu o estatuto de trunfo eleitoral. Ganha quem fala mais alto, quem promete derrotar o outro lado, quem domina a conversa pelo argumento falacioso.
Foi assim no referendo do Brexit, há três anos, foi assim nos EUA em novembro de 2016, voltou a ser assim no processo de sucessão de Theresa May na liderança do Partido Conservador e, por consequência, em Downing Street N10.
Rory Stewart, dos poucos candidatos que defendiam um processo racional de negociação com Bruxelas que levasse a uma saída ordenada do Reino Unido da UE, chegou a acreditar que poderia vencer, porque “os membros do Partido Conservador têm informação e esclarecimento suficientes para não cair no erro de eleger alguém como Boris Johnson, que nos pode levar para ao abismo do Hard Brexit”.
“Uma saída descontrolada pode ser trágica. Terá inevitavelmente um custo para o nossa Economia muito superior do que um acordo de última hora. Por muito difícil que ainda seja obtê-la, temos que o tentar até ao limite. É essa a atitude racional a ter”, insistia na campanha o até há dias Secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional, que fez parte do gabinete de May mas já não entrou no novo governo de Johnson, dominado por “Brexiteers”.
Foi o que se viu.
Boris ganhou a corrida com quase dois terços dos votos – numa prova de que a mentira e o argumento sonoro e facilitista não tem caminho facilitado apenas junto dos segmentos mais propensos a consumir “fake news”.
O ponto de cansaço e desespero em relação ao impasse do “Brexit” é tal que até ao membros do Partido Conservador preferiram dar carta branca a alguém que, demagogicamente, andou no referendo do Brexit a pregar “Take Back Control”, sabendo perfeitamente que uma saída do Reino Unido da UE em nada beneficiará os britânicos.
Muito diferentes mas quase iguais
Boris Johnson tem um ‘pedigree’ político e social muito diferente de Donald Trump.
Frequentou as melhores universidades britânicas, Eton e Oxford, é brilhante intelectualmente – ao contrário de Donald, que teve percurso académico medíocre e nunca se destacou pelo lado intelectual.
Se olharmos para posições de Boris Johnson em relação ao Acordo Nuclear do Irão (esteve a favor até agora), Acordo de Paris (é a favor e não se lhe conhecem tiradas negacionistas sobre as alterações climáticas) ou a China (defende aprofundamento das relações comerciais entre Londres e Pequim), então poderíamos achar que Boris Johnson é um político mesmo muito diferente de Donald Trump.
Mas em política devemos focar-nos na forma como os líderes de comportam, no modo como agem e nas decisões que tomam.
E, nesse contexto, Boris e Donald têm tido um caminho similar nos últimos anos.
Ambos representam a via mais criticável pela levar avante as suas posições. E ambos têm-se mostrado voláteis e pouco confiáveis nos comprometimentos que assumem.
O “Brexit” abriu caminho à eleição de Trump. A eleição de Trump reforçou uma via populista e nacionalista que o “Brexit” propala. Nas campanhas de junho 2016 (referendo Brexit) e novembro 2016 (eleição presidencial americana), milhões de britânicos e americanos caíram – ou, em muitos casos, quiseram cair – em argumentos factualmente errados e mentirosos, propagados por Boris Johnson e Donald Trump.
Ambos usam o exagero sem qualquer parcimónia ou discrição.
No discurso de posse, Johnson prometeu “fazer do Reino Unido o lugar mais fantástico à face da terra”, uma versão britânica pouco elaborada do “Make America Great Again” de Trump. Boris e Donald prometem aos seus eleitores “coisas maravilhosas”, numa linguagem dual de traço infantil, em que o mundo se divide em “excelente ou péssimo”, “bons e maus”, “fabuloso ou terrível”.
E é nessa dualidade primária que o populismo floresce – quem não é “nosso” é “contra nós”; o “outro” e o “diferente” são ameaças ao que “nós” representamos.
Donald Trump, no livre “Art of the Deal”, gaba-se de ter enganado os compradores dos andares da sua Torre Trump, em Nova Iorque, mentindo no número dos andares para aumentar o valor total do que era vendido (a quem comprou no andar 40, dizia que era no 48, sendo que quanto mais alto, mais vale). Chamou a esse truque “hipérbole verídica” – uma óbvia contradição nos termos, está claro.
Ao ter feito isso várias vezes, obteve um lucro muito superior à soma do valor de mercado de todos os espaços disponíveis.
O senso comum diria que isso é típico de um mentiroso estilo “vendedor de banha da cobra”.
Trump acha que isso é ter “arte para negociar” – e conseguiu convencer mais de 63 milhões de americanos a adotar esse estilo na Casa Branca.
Boris prometia, na campanha para o referendo, que os britânicos iam ganhar muito com a saída da União Europeia – incluindo supostos 350 milhões de libras que Londres enviaria todas as semanas para Bruxelas para “pagar a saúde dos europeus”.
O agora PM britânico passeou-se pelo Reino Unido num autocarro que tinha escrito a letras garrafais: “Enviamos 35 milhões de libras para a UE/vamos financiar o nosso sistema nacional de saúde com esse dinheiro”.
A acusação era obviamente falsa e depois da surpresa do triunfo do “Leave” quem propagou tal farsa apressou-se a dizer que “afinal não é bem assim”.
Ora, neste final de julho de 2019, quando olhamos para a Casa Branca em Washington e para Downing Street em Londres, vemos dois mentirosos nos postos de liderança.
Uma tristeza.
Não é ser “politicamente incorreto” – é mentir, mesmo.
Quem gosta de “punir o politicamente correto votando em politicamente incorretos” vê nos comportamentos de Boris Johnson e Donald Trump meros usos da “hipérbole” (foi “um exagero”, “não é para levar à letra”).
Ora, para falar de modo claro e direto: quem usa a “hipérbole” falta à verdade.
Premiar o comportamento mentiroso de Boris Johnson e Donald Trump não é “preferir o politicamente incorreto” porque se está “farto do politicamente correto”.
É mesmo só premiar quem mente.
A “hipérbole” chegou ao poder. Não é preciso ser perito em linguagem para concluir que a mentira passou a mandar.
Cambridge Dictionary
Ter medida no que se dizia e prometia foi, durante décadas, uma virtude que ajudava a definir a grandeza de um líder.
Nos tempos disruptivos de “Brexit” e populismos nacionalistas que vivemos, o desbragamento atingiu o estatuto de trunfo eleitoral. Ganha quem fala mais alto, quem promete derrotar o outro lado, quem domina a conversa pelo argumento falacioso.
Foi assim no referendo do Brexit, há três anos, foi assim nos EUA em novembro de 2016, voltou a ser assim no processo de sucessão de Theresa May na liderança do Partido Conservador e, por consequência, em Downing Street N10.
Rory Stewart, dos poucos candidatos que defendiam um processo racional de negociação com Bruxelas que levasse a uma saída ordenada do Reino Unido da UE, chegou a acreditar que poderia vencer, porque “os membros do Partido Conservador têm informação e esclarecimento suficientes para não cair no erro de eleger alguém como Boris Johnson, que nos pode levar para ao abismo do Hard Brexit”.
“Uma saída descontrolada pode ser trágica. Terá inevitavelmente um custo para o nossa Economia muito superior do que um acordo de última hora. Por muito difícil que ainda seja obtê-la, temos que o tentar até ao limite. É essa a atitude racional a ter”, insistia na campanha o até há dias Secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional, que fez parte do gabinete de May mas já não entrou no novo governo de Johnson, dominado por “Brexiteers”.
Foi o que se viu.
Boris ganhou a corrida com quase dois terços dos votos – numa prova de que a mentira e o argumento sonoro e facilitista não tem caminho facilitado apenas junto dos segmentos mais propensos a consumir “fake news”.
O ponto de cansaço e desespero em relação ao impasse do “Brexit” é tal que até ao membros do Partido Conservador preferiram dar carta branca a alguém que, demagogicamente, andou no referendo do Brexit a pregar “Take Back Control”, sabendo perfeitamente que uma saída do Reino Unido da UE em nada beneficiará os britânicos.
Muito diferentes mas quase iguais
Boris Johnson tem um ‘pedigree’ político e social muito diferente de Donald Trump.
Frequentou as melhores universidades britânicas, Eton e Oxford, é brilhante intelectualmente – ao contrário de Donald, que teve percurso académico medíocre e nunca se destacou pelo lado intelectual.
Se olharmos para posições de Boris Johnson em relação ao Acordo Nuclear do Irão (esteve a favor até agora), Acordo de Paris (é a favor e não se lhe conhecem tiradas negacionistas sobre as alterações climáticas) ou a China (defende aprofundamento das relações comerciais entre Londres e Pequim), então poderíamos achar que Boris Johnson é um político mesmo muito diferente de Donald Trump.
Mas em política devemos focar-nos na forma como os líderes de comportam, no modo como agem e nas decisões que tomam.
E, nesse contexto, Boris e Donald têm tido um caminho similar nos últimos anos.
Ambos representam a via mais criticável pela levar avante as suas posições. E ambos têm-se mostrado voláteis e pouco confiáveis nos comprometimentos que assumem.
O “Brexit” abriu caminho à eleição de Trump. A eleição de Trump reforçou uma via populista e nacionalista que o “Brexit” propala. Nas campanhas de junho 2016 (referendo Brexit) e novembro 2016 (eleição presidencial americana), milhões de britânicos e americanos caíram – ou, em muitos casos, quiseram cair – em argumentos factualmente errados e mentirosos, propagados por Boris Johnson e Donald Trump.
Ambos usam o exagero sem qualquer parcimónia ou discrição.
No discurso de posse, Johnson prometeu “fazer do Reino Unido o lugar mais fantástico à face da terra”, uma versão britânica pouco elaborada do “Make America Great Again” de Trump. Boris e Donald prometem aos seus eleitores “coisas maravilhosas”, numa linguagem dual de traço infantil, em que o mundo se divide em “excelente ou péssimo”, “bons e maus”, “fabuloso ou terrível”.
E é nessa dualidade primária que o populismo floresce – quem não é “nosso” é “contra nós”; o “outro” e o “diferente” são ameaças ao que “nós” representamos.
Donald Trump, no livre “Art of the Deal”, gaba-se de ter enganado os compradores dos andares da sua Torre Trump, em Nova Iorque, mentindo no número dos andares para aumentar o valor total do que era vendido (a quem comprou no andar 40, dizia que era no 48, sendo que quanto mais alto, mais vale). Chamou a esse truque “hipérbole verídica” – uma óbvia contradição nos termos, está claro.
Ao ter feito isso várias vezes, obteve um lucro muito superior à soma do valor de mercado de todos os espaços disponíveis.
O senso comum diria que isso é típico de um mentiroso estilo “vendedor de banha da cobra”.
Trump acha que isso é ter “arte para negociar” – e conseguiu convencer mais de 63 milhões de americanos a adotar esse estilo na Casa Branca.
Boris prometia, na campanha para o referendo, que os britânicos iam ganhar muito com a saída da União Europeia – incluindo supostos 350 milhões de libras que Londres enviaria todas as semanas para Bruxelas para “pagar a saúde dos europeus”.
O agora PM britânico passeou-se pelo Reino Unido num autocarro que tinha escrito a letras garrafais: “Enviamos 35 milhões de libras para a UE/vamos financiar o nosso sistema nacional de saúde com esse dinheiro”.
A acusação era obviamente falsa e depois da surpresa do triunfo do “Leave” quem propagou tal farsa apressou-se a dizer que “afinal não é bem assim”.
Ora, neste final de julho de 2019, quando olhamos para a Casa Branca em Washington e para Downing Street em Londres, vemos dois mentirosos nos postos de liderança.
Uma tristeza.
Não é ser “politicamente incorreto” – é mentir, mesmo.
Quem gosta de “punir o politicamente correto votando em politicamente incorretos” vê nos comportamentos de Boris Johnson e Donald Trump meros usos da “hipérbole” (foi “um exagero”, “não é para levar à letra”).
Ora, para falar de modo claro e direto: quem usa a “hipérbole” falta à verdade.
Premiar o comportamento mentiroso de Boris Johnson e Donald Trump não é “preferir o politicamente incorreto” porque se está “farto do politicamente correto”.
É mesmo só premiar quem mente.
A “hipérbole” chegou ao poder. Não é preciso ser perito em linguagem para concluir que a mentira passou a mandar.