A matemática da Covid-19 na Bélgica

Fazer contas na Bélgica já era difícil antes da pandemia: regiões com diferenças linguísticas e a reputação de aguentar longos períodos de tempo sem governo central - o recorde vai em 17 meses - tornavam a matemática belga difícil de acompanhar.

Mas a relação com os números está mais complicada desde que a Bélgica se tornou o país do mundo com mais mortes por Covid-19 por milhão de habitantes, mesmo sem ter os hospitais à beira do colapso. Por isso, se a razão para os números elevados não é um serviço de saúde sobrelotado, qual é?




No dia 5 de maio, a Bélgica ultrapassou as oito mil mortes por Covid-19. Mais de metade (53%) aconteceram em lares de idosos. E ainda que nem todas tenham sido confirmadas por testes, o Governo belga contabiliza-as nos seus dados oficiais. A decisão implica liderar a escala de mortes per capita, com 69 vítimas mortais a cada 100 mil habitantes. Apenas 18% dos óbitos em lares foram confirmados com testes em laboratório. Os restantes foram incluídos com base nos sintomas.

Quando explica a decisão do Governo, o virologista Steven Van Gucht pede que se imagine o seguinte cenário: são testadas duas pessoas num lar de idosos e o resultado dá positivo para a SARS-Cov-2. Uma semana depois, dez utentes morrem. Mesmo sem terem sido testadas, as novas vítimas devem contar como mortes por Covid-19? Van Gucht considera que sim. É o responsável pela comissão de saúde do Governo central belga e defende uma política de transparência.

Não se pode "olhar com uma pala" para os dados. "Mesmo que não testemos as pessoas, elas continuam a ser um caso provável".

Medidas de confinamento

A Covid-19 chegou à Bélgica no dia 4 de fevereiro, quando foi detetado o primeiro caso num grupo de repatriados vindos de Wuhan. Foram precisas seis semanas, 553 infetados e três vítimas mortais para as escolas belgas encerrarem, no dia 16 de março.

Em Portugal, os estabelecimentos de ensino fecharam no mesmo dia. Contava-se nessa segunda-feira a história do primeiro óbito registado pelas autoridades portuguesas: um homem com 80 anos que morreu no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Nessa altura, havia em Portugal 78 casos identificados.

No dia 18 de março - quando foi decretado o estado de emergência em Portugal - o Governo belga anunciou o fecho de estabelecimentos não essenciais e a suspensão de visitas às residências para idosos.

Steve Doyen já tinha tomado a decisão de suspender visitas uma semana antes. É o diretor da Residence Christalain, um lar de idosos nos arredores de Bruxelas. Responsabiliza as autoridades de saúde pela resposta tardia que se traduziu numa perseguição à pandemia. "Depois de termos pessoas infetadas, todas as ações se tornam obsoletas".

A meio de março os funcionários da instituição ainda não tinham recebido instrução oficial para trabalharem com máscaras de proteção individual. "Tínhamos uma reserva de 100 máscaras. Guardávamo-las para quem tivesse de cuidar de um residente que voltasse do hospital", explica Steve Doyen.

Para além do pouco material disponível, o diretor do lar queixa-se da falta de informação coordenada. "Toda a informação que temos e a ajuda que estamos a receber agora chega demasiado tarde - uma ou duas semanas atrasada".



A Bélgica tem praticamente a mesma população de Portugal, mas conta o dobro dos casos de Covid-19 e oito vezes mais mortes. Não havendo uma metodologia comum para a contagem de mortes na União Europeia, comparar dados entre países exige cuidado matemático acrescido.

Para responder à preocupação com os paralelos que começavam a ser desenhados, as conferências de imprensa belgas foram atualizadas. Os números diários são agora divididos entre mortes dentro e fora dos hospitais e é feita a distinção entre os que foram testados ou não. Para Steven Van Gucht, esta é a única maneira de criar uma imagem verdadeira do impacto da pandemia.

A Bélgica é também líder noutra escala - uma que aponta na direção certa. É o país europeu com menos discrepância entre o excesso de mortalidade e as mortes registadas por Covid-19.

Um dos caminhos para o panorama completo que Van Gucht procura é cruzar a taxa de mortalidade normal (a registada nos últimos cinco anos) com a acrescida (a que se verificou nas últimas semanas) e verificar se as mortes por Covid-19 justificam o intervalo que existe entre os dois. Se o incremento estiver muito longe dos óbitos reportados, há mortes que estão a ficar à margem da contagem.

Quanto a esses números, a Bélgica tem poucas equações a fazer: 93% do excesso de mortalidade está justificado com mortes por Covid-19. Na Holanda, por exemplo, - um país vizinho com mais seis milhões de habitantes do que a Bélgica -, as mortes registadas por Covid-19 contabilizam menos de metade (48%) do excesso de mortalidade.



Com os números de novos infetados por dia a descer, está em marcha a primeira fase de desconfinamento. No dia 4 de maio foi implementado o uso de máscaras nos transportes públicos, que agora podem ser adquiridas nos supermercados.

A primeira-ministra Sophie Wilmès anunciou também a reabertura das lojas de tecidos para que os cidadãos possam costurar as suas próprias máscaras.

Começou ainda uma fase experimental de rastreio nas regiões de Bruxelas, Flandres e Valónia. Em vez de utilizar uma aplicação, o Governo belga contratou dois mil "detetives" cuja função é mapear as novas infeções. Distribuídos por call-centers nas três regiões, investigadores identificam e alertam potenciais infetados. A cada novo caso confirmado, as pessoas com quem o doente se cruzou nas duas semanas anteriores vão ser alertadas por telemóvel e ser-lhes-á pedido que façam um teste. Depois, é da responsabilidade de cada um entrar em contacto com o seu médico de família e, se necessário, entrar em quarentena.

A reabertura está detalhada em várias fases, com o comércio a reabrir no dia 11 de maio.

As escolas recomeçam no dia 18 de maio com um máximo de dez alunos por turma. Bares e restaurantes só têm previsão para abrir em junho, tal como a possibilidade de viajar para o estrangeiro.

Com as férias de verão em suspenso pelo menos até ao regresso da livre circulação, a ministra do Turismo na região da Flandres tem receio da imagem que o país possa estar a passar para fora
. Zuhal Demir alerta para as consequências de a Bélgica vir a ser considerada um país de alto-risco, em função do número de mortes.

Para a ministra, a matemática da Covid-19 não se faz só de contagens: quando chegar a hora de recuperar o sector, "a luta para atrair turistas vai ser crucial". Para a saúde dos belgas e da economia do país, o cálculo das políticas públicas assenta também nos dados recolhidos. Se estes estiverem próximos da realidade, as políticas têm efeito. Se estiverem longe, podem ser uma "pala" nos olhos - a tal que Van Ducht quis evitar.