A sombra da polémica paira sobre a FIFA: pode Blatter sobreviver?

“Os eventos desta semana soltaram uma tempestade e chegou mesmo a ser questionado se a agenda da FIFA seria ou não alterada. Hoje, apelo à unidade e ao espírito de equipa para possamos seguir em frente”. Foi com palavras pesadas que Joseph Blatter deu início ao segundo dia do congresso em Zurique, que terá como ponto alto a votação do próximo presidente da organização que coordena o futebol mundial. Aos 79 anos, o suíço tenta chegar ao quinto mandato de quatro anos, mas conta com a oposição do príncipe jordano Ali bin Al-Hussein e, é claro, do maior escândalo da FIFA nos seus longos 111 anos de história.

Andreia Martins - RTP /
Arnd Wiegmann, Reuters

Joseph Blatter pode não estar entre os suspeitos da operação coordenada pelas autoridades norte-americanas, lançada na última quarta-feira, e que levou à levou à detenção de sete das mais altas figuras da organização entre 14 acusados, dirigentes e parceiros. Mas dificilmente lhe conseguirá escapar.
De qualquer forma, espera-se que Sepp Blatter chegue a um novo mandato por via das votações, seja hoje, seja numa nova volta. Um dos episódios a marcar o segundo dia do congresso da FIFA foi uma ameaça de bomba recebida durante uma interrupção dos trabalhos. Após a pausa para almoço, o secretário-geral da FIFA adiantou que as autoridades revistaram o auditório: "As instalações foram dadas como limpas e o congresso pode continuar".


Apesar de não contar com o apoio das federações europeias, o voto de um afiliado como a Alemanha ou a França tem exatamente o mesmo peso de uma nação recôndita no Sudoeste Asiático, uma igualdade democrática de voto que abona a favor de Blatter.

“Pode nem ser sempre fácil, mas temos de resolver os problemas que foram criados. Estamos cá para os resolver” Sepp Blatter, na abertura do Congresso esta manhã, em Zurique.  “Blatter já perdeu. A FIFA já perdeu”
Nos 17 anos de mandato, a aposta nas federações mais pobres e a redistribuição dos lucros desportivos pelas nações africanas e asiáticas tornou-se, aliás, na imagem de marca do presidente, e também no garante da sua subsistência. Em 1998, quando Sepp Blatter foi eleito pela primeira vez como representante máximo da Federação Internacional de Futebol, a organização contava com 144 membros. Na votação de hoje participam 209 nações, um conjunto colossal de países que poucos órgãos, independentemente da área de intervenção, se podem regozijar.
CAF – 54 países
UEFA – 53 países
AFC – 46 países
COMCACAF - 35 países
OFC – 11 países
CONMEBOL – 10 países

No total, 209 federações afiliadas têm direito a voto único. Os membros estão divididos em seis confederações regionais: UEFA (Europa), CAF (África), OFC (Oceânia), AFC (Ásia), CONMEBOL (América do Sul), CONCACAF (América do Norte, Central e Caraíbas). Para vencer a eleição à primeira volta, os candidatos devem reunir dois terços dos votos entre os 209 membros. Em caso de segunda ronda, uma maioria simples é suficiente para escolher o novo presidente. 

Apesar de contar com o apoio sobretudo das nações africanas e asiáticas, Blatter tem no “amigo” Michel Platini um adversário de peso: “Não é fácil dizer a um amigo que ele deve sair, mas é assim que a história está a avançar. Digo isto com tristeza e com lágrimas nos olhos. Mas já houve demasiados escândalos. Mas acho que ele já perdeu, de qualquer das formas. Acho que a FIFA já perdeu”.
Noé Monteiro, Hugo Neves - RTP

Para além de pedir o adiamento das eleições no espaço máximo de seis meses, Platini revelou ontem que pediu a Blatter que retirasse a atual candidatura. Em resposta, o suíço terá dito que compreendia o pedido, mas que já seria “tarde demais”.
40 anos de FIFA
Na primeira declaração oficial em reação às detenções, o responsável pela Comunicação na FIFA, Walter de Gregorio, dizia: “Blatter não está diretamente envolvido no caso, mas também não está propriamente a dançar no seu gabinete”. E, compreensivelmente, não estaria de facto. É que o timing desta polémica levantada no âmago da FIFA não podia ter sido mais indesejado para a candidatura de Blatter. Apesar das nuvens que sempre pairaram sob a sua presidência e suspeitas de corrupção, designadamente na contestada escolha do Qatar como país organizador do Campeonato de Futebol de 2022, em novembro de 2010, nunca o principal representante do futebol mundial enfrentou tal ameaça à reputação, que está inclusive a abalar a confiança dos principais patrocinadores e investidores multimilionários.Os responsáveis pela candidatura de Ali bin Al-Hussein, opositor único a Blatter após a desistência de Luís Figo e Michael van Praag, garantem que 60 federações já decidiram mudar o sentido de voto e querem agora declarar o apoio ao príncipe jordano.

A ser eleito, o jordano, atualmente um dos vice-presidentes do Comité Executivo da FIFA, seria o primeiro presidente asiático da organização.


É que o escândalo que acordou de sobressalto o coração do futebol mundial poderá empurrar a eleição para uma segunda volta, retirando muita da legitimidade que Blatter veio conquistando nas últimas décadas.

O mandato de Blatter é já o terceiro mais longo da história da FIFA, atrás do antigo presidente, o brasileiro João Havelange (no poder durante 24 anos, entre 1974 e 1998) e Jules Rimet (à frente da FIFA durante 33 anos, entre 1921 e 1954).

Mas a engrenagem de Blatter será muito dificilmente travada. Em 17 anos e quatro diferentes eleições, Joseph Blatter nunca foi obrigado a recorrer a uma segunda ronda, até porque a preparação do mandato começou muito antes de 1998.

O dirigente natural de Visp, no cantão suíço de Valais, formado em economia pela Universidade de Lausanne, chegou a desempenhar funções na cidade natal como chefe de Relações Públicas na área turística, passou depois pela Federação Suíça de Hóquei e esteve envolvido na organização dos Jogos Olímpicos de 1972 e 1976.
Adepto e jogador amador de futebol desde os tempos de criança, Blatter dedica-se por completo à modalidade predileta a partir de 1975, onde ocupa o cargo de diretor técnico na FIFA, até 1981, ano em que chega a secretário-geral, braço direito de Havelange. O brasileiro que precedeu a Blatter, viu-se obrigado a renunciar ao cargo de presidente honorário em 2013, acusado de graves casos de corrupção e extorsão.No El País, João Havelange é lembrado como o homem que “converteu a FIFA naquilo que é hoje: uma máquina de fazer dinheiro”, pela gestão de patrocínios e direitos televisivos. Uma investigação interna da FIFA concluída em 2012 comprovou que o brasileiro aceitou subornos de forma “sistemática” durante oito anos.

Ao fim de quatro décadas nos mais altos quadros na FIFA, Blatter pede um novo mandato com os argumentos que tem apresentado em todas as restantes eleições: a necessidade urgente de reformas. Agora, acrescenta uma nova máxima à candidatura: quer afastar todos os corruptos e devolver ao futebol e à FIFA uma transparência que a organização nunca teve.

Como terão tantos e tão graves casos escapado à vigilância de Blatter? Tendo ou não conhecimento antecipado dos esquemas perpetrados pelos “vices” e outras altas figuras do organismo, o comandante da FIFA parecia ciente, na abertura do Congresso de Zurique, de que a atual polémica veio abrir uma importante brecha que lhe poderá dificultar o previsível mandato que, mesmo assim, deverá conquistar: “Os próximos meses não serão fáceis. Estou certo de que mais más notícias virão”.
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