A vida suspensa no centro de refugiados: "Não posso aconselhar ninguém a fazer isto"

A RTP esteve em Mineo, Itália, no maior centro para requerentes de asilo da Europa. Vêm de África, passam pela Líbia e chegam à Sicília sem saberem se ficarão no país. Eunice e Suwaibou são dois dos migrantes que já não tinham nada a perder.

"Não posso aconselhar ninguém a fazer isto". Suwaibou Saidy está encostado a uma árvore, à porta da Área de Assuntos Legais. Está à espera para tirar umas dúvidas, saber como está o processo, tentar pressionar o que já não depende dele. Na verdade, a espera já dura há quase ano e meio, altura em que entrou ali e efetivou o pedido de asilo às autoridades italianas. O homem de 32 anos quer obter os documentos para poder sair dali, arranjar um trabalho e fazer a sua vida em Itália.

Suwaibou está num Centro de Acolhimento para Requerentes de Asilo (C.A.R.A) em Mineo, na Sicília. Espaços como este são mais conhecidos como "centros de refugiados" ou "campos de refugiados". 


Este é especial. É o maior da Europa e tem serviços que os campos improvisados não oferecem. O C.A.R.A de Mineo está num terreno que era antes um quartel para soldados americanos. As casas foram aproveitadas e os espaços adaptados. Ali vivem cerca de 4000 requerentes de asilo -- o número varia consoante as entradas e saídas - em 400 habitações. Há aulas, acompanhamento legal e profissional, campos de futebol. Todos os campos têm uma equipa militar do Governo à entrada. 

A crise migratória, que começou em 2015, teve especial impacto na Grécia e em Itália. Os dois países da Europa do Sul tiveram de se adaptar aos grandes fluxos de pessoas que entraram (e ainda entram), e isso significou também adaptar os espaços. 

Em Itália há hotéis vazios que foram transformados em centros para refugiados, o que significa que os migrantes dormem em verdadeiros quartos de hotel e têm acesso a piscina, conta à RTP fonte da ONU no local. Na Grécia há uma aldeia de férias com bungalows que está abandonada e é agora um campo para refugiados. 

Os centros para requerentes de asilo são a primeira casa dos migrantes e refugiados que foram resgatados ao Mar Mediterrâneo na costa italiana. A ideia é que a estadia seja curta, mas nunca dura menos que nove ou dez meses.  

Chegam e fazem o pedido de asilo. Depois, há duas hipóteses. Se o pedido for aprovado, podem ficar a viver, estudar e trabalhar em Itália, bem como circular livremente na União Europeia. Se o pedido for negado, podem pedir recurso. Caso o indeferimento se mantenha, terão de sair do país. Muitos optam por ficar a viver nas ruas ilegalmente, sem documentação. 

Se o migrante for menor, só há uma hipótese: ficar. Salvo raras exceções, a lei italiana estabelece que nenhum menor pode ser expulso do país. Se houver dúvidas sobre a idade da pessoa - e tendo em conta que não têm documentos para a provar - fazem-se testes para a determinar. Analisa-se a pele, os dentes, etc. 


Numa hora falámos com três migrantes a viver no C.A.R.A de Mineo e ouvimos três queixas sobre os processos. "Não é fácil ter os documentos", lamenta Suwaibou. Nasceu na Gâmbia e de lá decidiu sair porque "os jovens não aguentam mais a ditadura". Como tantos outros, fez a primeira parte da viagem pelo interior de África. Passou pelo Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger e chegou à Líbia. 

Na Líbia conseguiu apanhar um barco em direção a Itália mas é precisamente na Líbia que está o perigo: muitos migrantes são ali detidos e sujeitos a trabalhos forçados, as mulheres e crianças são feitas escravas sexuais. Alguns deles são libertados meses depois e ainda completam a viagem até Itália, outros ficam lá para sempre. Muitos dos que são regatados ao Mar Mediterrâneo pela SOS Mediterranée estiveram detidos na Líbia e, por isso, estão debilitados, desidratados e com várias infeções, contaram à RTP responsáveis da organização. 

A viagem de Suwaibou Saidy da Gâmbia até à Sicília

Longa foi também a viagem de Eunice. Veio da Nigéria e conseguiu apanhar um barco na Líbia. Depois foram 3 dias no mar, da Líbia até à Sicília, ela e mais 200 pessoas. Diz que o momento em que pôs o pé em solo italiano determinou o "dia mais feliz" da vida dela. Quando perguntamos por que motivo decidiu sair da Nigéria, responde que não tinha motivos para ficar: "Sou órfã, não tenho pai nem mãe". 

Eunice tem 21 anos e na Nigéria vendia água nas ruas. Fez a viagem até aqui sozinha mas sorri quando sublinha que já fez amigos no centro, onde está há um ano. Há-de repetir várias vezes: "Sou muito feliz aqui", e refere-se ao C.A.R.A de Mineo e ao país. "Aqui tenho liberdade. Só quero ter documentos e arranjar trabalho". Que trabalho?, perguntamos. "Qualquer trabalho que eu consiga fazer. Qualquer coisa". 

Cerca de 60 por cento dos pedidos de asilo são negados, revelam os dados do Dossier Estatístico de Imigração do CSR. Para um pedido ser aceite, é preciso que o requerente prove que está a fugir de um perigo iminente. Quem foge de um conflito amplamente noticiado, como a guerra na Síria, tem mais hipóteses de conseguir asilo do que quem conta apenas com a sua história pessoal. 

Os migrantes contam a sua história, as autoridades cruzam factos e depois decidem. O asilo é desde logo negado se o migrante já tem estatuto de refugiado obtido em outro país, se cometeu crimes de guerra, se pertence a alguma associação terrorista ou se cometeu crimes graves no país de origem ou já em Itália. Cabe às comissões territoriais fazer a investigação. 


Várias organizações de Direitos Humanos que trabalham no local queixam-se da "lentidão do sistema legal" e do impasse em que os migrantes ficam durante o tempo em que esperam pela resposta. "Sem documentos não podem procurar trabalho. A vida fica suspensa durante aquele ano, ano e meio ou mais", diz à RTP uma das ativistas. E continua: "Eles estão isolados, estão nnum gueto bem afastado da população. Mineo é a vila mais próxima e fica a 11 quilómetros", nota. 

Em média, chegam a Mineo dois autocarros por semana com novos moradores. Todos à procura de uma oportunidade para fazerem a sua vida em Itália. Muitos nunca frequentaram uma escola. No C.A.R.A. de Mineo, assistimos a uma aula sobre formas geométricas dada com vídeos do YouTube para alunos com 20 e 30 anos. 

Suwaibou Saidy vai à escola. Corre todos os dias no campo "para passar o tempo". Mais uma vez repete: "Não posso aconselhar ninguém a fazer isto". Assume que foi um risco que decidiu correr, mas que ainda não sabe onde o levará. Poderá acontecer como acontece a tantos outros: o pedido é negado, volta para o país de origem e, passado uns meses, volta a tentar. 


A jornalista viajou a convite do Friedrich Ebert Institute